domingo, 18 de novembro de 2007

AQUELA VALEU, TIÃO!

Reencontro Tião depois de muitos anos. Recordamos uma viagem, faz tempo, em meio a um grupo de outros jornalistas das boas casas do ramo. Chamam de famtur, “viagem de familiarização”. É quando os operadores de turismo levam o pessoal da mídia aos lugares que eles querem promover.

Aquela nossa viagem foi às Maldivas -- não confundir com Malvinas. Trata-se de um arquipélago no Oceano Índico, com mais de mil ilhas de coral, em grande parte desabitadas. Águas mornas, translúcidas, pontilhadas por filetes de terra com farfalhantes coqueirais. Entre os lugares que conheci, esse foi o único ao qual tive peito de aplicar, sem pejo, o adjetivo paradisíaco. Tião concorda comigo.

Relembramos um fato curioso. Passávamos de barco ao lado de uma ilha onde se via um sujeito sozinho. Era um alemão. Cumpria pena por um crime que teria algo a ver com droga, cousa esta satanizada num país islâmico. Mas lá estava ele, em seu bronzeado equatorial, tranqüilo como água de poço, dir-se-ia no Sul, e faceiro que nem gordo em camiseta regata.

Então cumprir pena, nas Maldivas, era aquela moleza? Um gringo solto na praia, de bermuda, sustentado pelo governo. Segundo Tião, o prisioneiro fora procurado por um representante do governo alemão disposto a repatriá-lo. Recusou. Casara com uma jovem maldívia. Familiarizara-se, digamos. Não pretendia sair dali. Enfim, estava muito bem, obrigado.

Então nos perguntamos: não seria o caso de cometer um pequeno assassinato, que fosse, para ganhar o direito de ser confinado a uma daquelas incontáveis ilhas que ainda estavam vagas? Aquilo é cumprir cena. Cumprir pena, mesmo, é ficar imobilizado ao volante de um carro na fuligem de um túnel engarrafado, com hordas de motoqueiros azucrinando a vida. São Paulo às seis da tarde.

Passaram-se mais de dez anos desde a nossa viagem. O alemão ainda estará por lá? Penso nas Maldivas quando leio sobre o efeito-estufa. Ontem o jornal disse que, com acréscimo de 5ºC no aquecimento global, o mar fustigaria Londres e Tóquio. Maldivas, ele nem cita, claro. Com muito menos aquecimento, aquelas finas lâminas de areia ficariam submersas. Sumiriam do mapa. Será que o alemão já sabe? O paraíso não existe, Tião.

sábado, 3 de novembro de 2007

LAIKA NO SPUTNIK

Ontem homenageamos os mortos. Hoje proponho outra homenagem. Faz 50 anos, exatos, que os russos lançaram ao espaço o primeiro ser vivo: uma cachorrinha de 3 anos de idade. Chamava-se Kudryavka (“crespinha”, na língua de Tolstói), mas se tornaria famosa pelo nome de sua raça de origem siberiana, Laika (“ladradora”), pertencente ou aparentada, creio, à família terrier.

Laika foi abduzida em 3 de novembro de 1957, a bordo do segundo satélite da série Sputnik (“companheiro de viagem”). Resistiu menos do que se esperava. Morreu sufocada dez dias depois. Até então nenhum terráqueo, e muito menos um terrier, havia sido submetido a uma situação de microgravidade. Se naquela época me tivessem pedido a opinião, eu diria que no lugar de Laika botassem Nikita Kruschev, um careca de nome sinistro que eu tremia só de ouvir no Repórter Esso.

Eram os tempos da Guerra Fria, ou seja, de paranóia geral. Mas também do Gumex e das galochas. Eu tinha 4 anos. Dei o nome Laika a uma cachorra vira-lata que apareceu lá em casa. Era um tributo à original, detonada por Kruschev. De noite, na cama, eu pensava na solidão de Laika, perdida no espaço.

“A Terra é azul e eu não vi Deus”, declararia em 1962 o astronauta Yuri Gagárin, que orbitou o planeta. E Neil Armstrong, ao caminhar na Lua, em 1969, cravou: “Este é um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade”. Frases de almanaque. Devem ter sido cunhadas bem antes por assessores de imprensa. Sabe-se lá o que Gagárin e Armstrong de fato pensaram lá em cima. No entanto, o que eu gostaria de saber, mesmo, foi o que Laika pensou, nos dez dias de pânico, a respeito dos russos que a fizeram de cobaia.

Vou mais longe. Gostaria de saber o que o touro pensa dos espanhóis; a raposa, dos ingleses; o lobo, dos franceses; a baleia, dos japoneses; a cobra, dos chineses; o camelo, dos marroquinos; o boi, dos catarinenses; a capivara, dos caçadores do Taim; os elefantes, dos donos de circo.

Mas não farei desta crônica num libelo zoomaníaco. Deixo de lado outros tantos animais sacrificados para pensar só em Laika. Ainda estará girando em torno da Terra? Só sei que, meio século depois, cá estou eu, sem Gumex, que de resto já não me seria necessário. Estou cada vez mais parecido com Kruschev.