domingo, 27 de julho de 2008

NOOTEBOOM E O VAZIO

O escritor holandês Cees Nooteboom, que há pouco esteve no Brasil, é um globe-trotter. Deixou seu país aos dezessete anos em busca dos cenários luminosos da Europa meridional: Provença, Itália e por fim a Espanha, onde se fixou. Mora lá boa parte do ano, quando não está em trânsito por outras longitudes.

Seu livro Caminhos para Santiago – Desvios pelas terras e pela história da Espanha é uma obra formidável no gênero narrativas de viagem. Poucas vezes alguém conseguiu penetrar tão fundo nas veredas de um sertão que não é o seu, de nascença.

Numa entrevista em Paraty, perguntei a Nooteboom por que se encantou com a Espanha. Ele saiu pela tangente. Refletiu: nós nos apaixonamos por um país assim como por uma mulher, sem saber bem por que esta, e não aquela. Depois, respondeu a contento. Disse que a Espanha o fascina por ter uma zona quase desabitada no centro, em contraste com sua superpovoada Holanda. Para ele, encontrar esse vazio foi encontrar a liberdade.

No último romance de Nooteboom, Paraíso perdido, duas garotas de São Paulo se aventuram pela Austrália. Uma delas se envolve com um aborígene e sente uma atração irresistível pelo deserto (o vazio) que há no meio do país.

Não vou abusar da paciência de ninguém com a hipótese de que essa garota possa ser o alter ego do autor. Nem forçar a barra ao comparar o vazio demográfico, que atrai Nooteboom e sua personagem, ao vazio de que falam os budistas, o almejado estado mental em que cessam as necessidades e pensamentos.

Porém não deixa de ser significativo que viajantes sensíveis consigam se mover em busca de espaços amplos e desabitados. Ali deve haver energias sutis que as agências de turismo ainda não conseguiram empacotar.

Quantos vazios nos restam neste mundo globalizado por Deus, e bonito por natureza? Muitos, segundo Nooteboom. Ele viaja, viaja, viaja, e se dá conta de que cada vez viajou menos, pois ao viajar detecta vazios insuspeitados, na contramão do turismo.

O turista comum vive na ânsia ou na ilusão de que é possível conhecer tudo, ou quase tudo. Não dá valor ao vazio, nem se importa com isso. Vai ver, lá estão as vozes que o cara não quer ouvir.

domingo, 13 de julho de 2008

PARATY E PARA TODOS

O primeiro milagre da Flip é transformar o centro histórico de Paraty no umbigo do mundo. Esquecemos que logo ali, do outro lado das correntes, está uma cidade brasileira (veja a foto) como qualquer outra: poluição visual, cheiro de esgoto, mamitex, igrejas evangélicas e antenas parabólicas. Ora, direis, às favas com a realidade!

Quando cheguei para cobrir a Flip, notei uma dúzia de traineiras atracadas defronte à praça. Vazias. Formavam uma seqüência de cores que tinha algo de irreal. Pensei: alguém deve ter disposto os barcos desse modo para compor o cenário da festa.

Dias antes, em São Paulo, uma amiga italiana me dizia que os panoramas rurais da Toscana são encantadores porque cada coisa que se vê (um bosque, um muro, um caminho) está ali por opção estética, e não prática. A Toscana não foi feita por camponeses, mas por artistas. Do mesmo modo, os barcos de Paraty, supus, não estariam dispostos daquele jeito por causa dos pescadores, mas dos decoradores.

Nada contra. Se a vida não vale pelas astúcias, pelas estratégias, pelas fantasias, vai valer pelo quê? E o que fazem, com palavras e frases, aqueles autores da Flip que aplaudimos com fervor, em alguns casos, senão arrumar os bosques, os barcos, os muros, os caminhos de um jeito que seus textos nos interessem mais que a vida cotidiana?

Eis o segundo milagre da Flip. Mergulhamos por cinco dias num alegre rebuliço de idéias, e até parece que no Brasil, em cada quarteirão, há um escritor para quatro leitores. Mesmo sabendo que, na realidade, a proporção é inversa: temos quatro escritores para cada leitor. O IBGE o provaria com um pé nas costas, se quisesse. Espero que não queira.

No período colonial, até o IBGE teria sido ludibriado pelo senso ficcional de Paraty. Alguém me contou que aquela profusão de portas e janelas, às vezes incrustados em fachadas soltas, sem nada atrás, já era um jeitinho brasileiro para dar um upgrade no orçamento. Contavam portas e janelas, não pessoas, para fazer uma localidade passar de freguesia a vila, ou algo assim.

Se é verdade, não sei. Importa? Paraty (a começar pelo ípsilon) é pura ficção. Com a Flip, mais ainda. Aqueles barcos arrumadinhos para a festa já eram uma história que alguém tentava contar.