sábado, 19 de dezembro de 2009

ARRIVEDERCI, FAREWELL, 辞别

Quando lancei meu blogue, em agosto de 2006, senti-me como um adolescente que recebe a chave de casa. Ter autonomia para fazer meus textos chegarem a um certo público, ainda que diminuto, sem depender de terceiros, era como um passe de mágica. Algo assim eu não conhecera em décadas de trabalho como jornalista e como escritor. Neste ponto, a internet representava a libertação.

Esta experiência nova, no entanto, implicava um limite que eu próprio me impus: usar com parcimônia um espaço ilimitado. Não deixar-me embriagar pela vastidão. Meu desafio era produzir textos concisos que não fossem superficiais. Trocando em miúdos, não ir muito além dos 2 mil caracteres que correspondem
a uma página de livro ou a uma crônica de jornal. Seria um exercício para aprimorar o poder de síntese, como o de um solitário motorista que, numa tarde de inverno, treina baliza na areia da maior praia do mundo.

Sim, a internet tem quase o tamanho do Cassino. Revivi o hotel do meu pai na forma de um blogue. Captei visitantes fiéis e outros eventuais. Alguns deixaram marcas de qualidade superior à dos meus textos. Sou grato a quem doou um pouco de si aos leitores de Adjazzcências.

Ao longo desses três anos e quatro meses, não faltou quem discordasse de mim ou concordasse comigo sobre isso ou aquilo. É confortante receber apoio, claro. Mas o que de fato justifica meu trabalho é algo diferente da aprovação. É ter lido em alguns comentários algo assim: "Eu nunca havia pensado nisso sob esse ângulo".

Nunca desejei atuar como se fosse um rebocador, ou seja, arrastar navios por um caminho determinado. Isto é coisa para os políticos. Desejo, se tanto, ser um farol, emitir um sinal. O melhor que eu puder. Os outros que façam o uso que quiserem desse sinal. E naveguem por onde acharem que devem navegar.

Esta centésima crônica, hoje, fecha um ciclo. Não sei se vou reformular ou suprimir o blogue. Se continuar, terá periodicidade maior, mensal ou bimestral, quem sabe esporádica.
Meu tempo torna-se escasso. Como pretendo dedicar-me a um projeto de livro que está engavetado há anos, isto só poderá ser feito em detrimento do Adjazzcências. Mas não é uma despedida cabal. Portanto, arrivederci. Bom fim de ano a todos.

sábado, 5 de dezembro de 2009

UMA CRÔNICA DE VERÃO

Uns acham que a comunicação on-line empobrece o idioma. Que nem quando o rapaz digita à moça: "Qr tc cmg?". Ou será o contrário? Na tela do computador, todos os gt são prd, constataria o pesquisador Luís da Câmara Cascudo, se tivesse vivido a era da internet.

O internetês é só um modismo inócuo. Pode até ter certo grau de criatividade em suas simplificações. Suponho que a tendência à abreviação informal de palavras tenha existido sempre.
Há quarenta anos, para driblar a censura, o Pasquim cunhou expressões minimalistas como sifu e pqp! Hoje, coisas assim surgem aos borbotões, na tela. As simplificações se tornam mais visíveis, como tudo o mais a que temos acesso com um clique no teclado. Mas existiriam com ou sem a internet.

A língua, como a água, procura naturalmente o caminho menos íngreme, de preferência um declive, para ganhar velocidade. Não podemos condenar o uso do internetês pelos jovens, mesmo se parecem abusados quando deixam escapar abreviações como vc ou pq num texto acadêmico. Os mais aptos sobreviverão. Como sempre. Os jovens de hoje são apenas apressados e
ávidos por marcar sua presença no mundo, como nós também fomos. Até o dia em que se descobre que abreviar palavras não é o mesmo que criar atalhos no conhecimento.

Não temo que o internetês seja uma ameaça séria à saúde física e mental do idioma. Se fosse de fato uma invasão bárbara, com alto poder de contaminação, como temem os puristas, ainda assim não seria mais danoso que outros dialetos escabrosos que contam com a tolerância da sociedade. Um bom exemplo é o jargão da advocacia.

Tenho para mim que a lentidão da Justiça deve ser, em certa medida, uma lentidão de linguagem. O dito jurisdiquês, empolado e imperial, é o entulho linguístico de alguns séculos em que o Brasil foi pilotado pelos bacharéis.
O resultado disso é que nos textos judiciais ainda hoje pululam pérolas do tipo "o competente instrumento procuratório", "devolvo os autos à consideração superior" e "renovo a Vossa Excelência os protestos da mais elevada estima e consideração". Um moleque interneteiro, desses com a aba do boné virada para trás, daria um jeito nisso em dois tempos. Ou melhor, em duas teclas.

domingo, 22 de novembro de 2009

AO MESTRE, COM CARINHO

Cada geração traz à sociedade um certo desconforto. Faz parte do jogo. Desconfortáveis (e geniais) também foram as inovações de Piazzolla no tango tradicional.

Imaginemos
o fole do bandoneón como sendo o curso da vida humana. Sabemos que sua duração média se expande, mas isso não implica que nos tornemos melhores ou mais criativos. A expansão se concentra nas extremidades. Embaixo, junto à mão esquerda de Piazzolla, situa-se a velhice, que a linguagem corporativa escamoteia com essa bobagem de "terceira idade". No alto, a adolescência, rompante.

Ah, não é fácil adolescer. Já é envelhecer, sem saber. E como saber? A universidade empapuça os jovens de informações, mas fracassa no que deveria ser sua missão essencial: acolher pirralhos e desovar adultos. A alquimia não acontece. Marmanjos continuam a se portar como infantes travessos, mesmo com diploma na mão. Não sobreviveriam um dia sem seu suspensório financeiro, a mesada, ou sem essa mamadeira moderna, o telefone celular.

Fala-se na "geração canguru", jovens que se recusam a deixar a casa dos pais. Ao protelar o conhecimento que gerações anteriores semearam nos caminhos do mundo (tabus, desafios, tradições e contradições) eles cultivam uma espécie de esquecimento cultural. Um Alzheimer coletivo, digamos. Isto torna a adolescência cada vez mais longa.

No outro extremo do bandoneón, a velhice também está, por assim dizer, inflacionada. Vive-se cada vez mais, porém (é claro) cada vez menos como se vivia antes. Toca-se o barco com um crescente grau de dependência
em relação aos que estão em idade produtiva, na forma de cuidados, consolo, assistência, pensões, remédios, aparelhos. Outra "geração canguru", semelhante à adolescência, se espicha na parte de baixo do fole, junto à mão esquerda de Piazzolla.

Já o segmento central do bandoneón não se expande muito. Permanece mais ou menos como sempre foi. No entanto é ali, nas décadas velozes que correspondem à vida adulta de uma pessoa, que brotam os pilares da civilização: a pirâmide, a semente, o metrô, o remédio, o tempero, a teoria, a pintura, o verso inspirado, a sinfonia, a ponte pênsil.

Sustentar extremos não é tarefa fácil. Bem, fazer o que Piazzolla fez com o tango, convenhamos, também não era.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

NÃO VER PARA CRER

Jantar a luz de velas pode ser romântico. Jantar no breu total, disso nunca se ouvira falar. Nem na Rio Grande de outrora, no tempo das galochas.

Agora, essa. De Paris, a cousa se espalhou para outras cidades do mundo, entre as quais São Paulo. A premissa do jantar no escuro é que desativar a visão potencializa o paladar e o olfato. De olhos vendados, somos apresentados a sabores indecifráveis e a pessoas estranhas. Apenas vozes, é verdade. Porém, com a preponderância da voz, uma pessoa ganha densidade. Deixa de ser uma figura para se tornar uma presença.

Nas noites da minha infância, a cidade de Rio Grande sofria frequentes cortes de energia elétrica. Os adultos chamavam a trôpega CEEE de "Companhia Encarregada de Escurecer o Estado". As crianças saíam à rua excitadas com a chance de fazer o que seria incabível com luz nos postes e adultos vigilantes.

Mas o que nos movia não era apenas a sensação de liberdade ou, se quiserem, de impunidade. Era também um fato mais profundo: o escuro estimula a imaginação. Sem luz, a cidade se tornava uma aventura. Quem ouve futebol pelo rádio, debaixo do cobertor, sabe que ali qualquer pelada ganha a emoção de uma final de copa do mundo.

A visão pode atrapalhar. Até mesmo ao jornalista, que é um ser apressado. A pressa nos faz confiar demais no que vemos. O olhar tende a embotar os outros sentidos. Na ECA, o professor Edvaldo Lima certa vez nos passou o exercício de captar os detalhes do tronco de uma árvore usando apenas o tato, para depois descrevê-lo. Metade dos alunos, de olhos vendados, era conduzida ao jardim pela outra metade, que orientava seus passos e seus movimentos. Assim como o pessoal que serve os comensais em um jantar no escuro. Foi uma noite inesquecível.

Se é um modismo? É possível. Mas para mim, francamente, o fato sociológico vale menos que a experiência sensorial. Fechar os olhos de vez em quando pode ser um hábito saudável. Senão na mesa de jantar, ao menos diante da TV. O olhar é um dos
tiranos da vida moderna. E gostamos demais dos tiranos.

domingo, 25 de outubro de 2009

DAS RELAÇÕES MODERNAS

Não é novidade que as relações humanas estão mudando bem rápido. Que essas mudanças sejam para melhor ou para pior, isso já é por conta do freguês. Ou do leitor.

Um conhecido meu, no Sul, tem uma filha adolescente, loira e muito bonita, que arrumou seu primeiro namorado firme. O pai só conhecia o rapaz de passagem, s
ocialmente, como se diz. Mas uma noite chegou em casa e encontrou um silêncio fora do habitual, instável, suspeito, diferente daquele de quando se está sozinho. Percebeu que a filha estava trancada no quarto. Havia algo estranho no ar. Olhou para a mesa da sala e, estupefacto, deparou com um capacete.

Sim, um capacete. Elemento estranho à ordem da casa. Até aquele momento, claro. Pois o pai logo percebeu que ia ter de engolir aquele capacete. Claro que poderia, em vez disso, enfiá-lo na cabeça e invadir o quarto da filha, como faria um capitão da tropa de choque. Mas já não estamos no século XX.

Contemplar um imprevisto capacete de motoqueiro dentro da própria casa permite a um cristão supor que a juventude, oje como hontem, tem a cabeça oca. Mais realista, no entanto, é aceitar que a invasão bárbara já aconteceu. Ali está o elmo, sobre a mesa. E a porta do quarto, fechada, informa que a filhota prefere a fibra de um jovem guerreiro à sabedoria grisalha do papai.

Menos inquietante, mas também surpreendente, é o que um amigo de São Paulo me contou. Seu grande barato, nos últimos tempos, era contar histórias à neta de 3 anos. Mas a nora se mudou para Paris, levando a menina. O ritual das histórias parecia uma página virada na relação entre o avô e a neta.

Aí entrou o Skype para respaldar a tradição. Meu amigo me contou, empolgado, que fizera a neta dormir
(em Paris) lendo para ela (em São Paulo) um livrinho de histórias e mostrando cada página pela câmera. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. Antes de dormir, a menina pediu para ver o cachorro do avô. O labrador marrom também entrou na história. Suponho que a saudade que essa menina possa vir a sentir do avô deva ser bem diferente daquilo que entendemos por saudade.

Esses dois episódios acabaram por me convencer de que estamos, de facto, no século XXI. Até duas semanas atrás, eu tinha dúvidas.

domingo, 11 de outubro de 2009

ISSO É COM O ZECA

A novela tem um nome meio batido, Cama de gato. É o título da tradução brasileira de Cat's Cradle, de Kurt Vonnegut, e de um filme de Alexandre Stokler. João Bosco usou a expressão na letra de uma canção.


Na novela da Globo, cama de gato sugere a brincadeira de enlaçar um barbante nos dedos para formar figuras. No futebol, porém, identifica uma jogada que no passado gerou polêmica. Antes não era falta, agora é.

O esplêndido Museu do Futebol, no Pacaembu, pisa na bola ao descrever a cama de gato. Informa erradamente tratar-se de um lance no qual um jogador, ao saltar na disputa da bola aérea, cometeria falta sobre o que fica por baixo dele. Na verdade, é o contrário. O faltoso é o que, por não saltar, não serve de anteparo ao outro, que se desequilibra no ar.

Os dicionários Houaiss, Aurélio e Aulete acertam ao descrever o lance, mas não coincidem na grafia. Só o Aulete aplica hífens: cama-de-gato. A meu ver, é o correto. Trata-se de uma expressão de sentido figurado. Que eu saiba, gatos não têm cama. Bem, para mim, admito, todos eles são pardos.

Regras ortográficas como a do uso do hífen podem ser tão controversas e sutis quanto as ditas coisas do futebol. É puro chute, a meu ver, supor se um jogador teve ou não a intenção de fazer a falta. Como sabê-lo? Gostaria de ouvir o grande Zeca, que já foi juiz de verdade. Mas ele há muito já não nos dá a honra de sua companhia e de sua sensatez no café da manhã (que antes não tinha hífens, depois teve, agora perdeu).

A cama-de-gato, que prefiro hifenizar, não devia ser falta. O jogador que não se move, ora bolas, não pode ser penalizado por algo que não fez. Se o de cima cai, é com seu próprio impulso. Foi sua opção tentar subir mais alto e se apossar da bola. O de baixo pode até propiciar a queda do outro, mas não a provoca.

Em suma, o jogador que salta, que nem faz o gato, é que devia ser tido como o verdadeiro autor da cama-de-gato. O de baixo, quando muito, entra com os hífens. Aí é falta, claro. Nem precisamos ouvir o Zeca. Basta olhar no Caldas Aulete.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

DAS NÚPCIAS E OUTRAS AVENÇAS

Está provado: a maior causa das separações é mesmo o casamento. Vi isso, faz pouco, no trailer de um filme argentino. Mas havia muito suspeitava do facto.

Na manhã chuvosa da segunda-feira, uma oficial de justiça veio brindar-me com um documento de sete páginas. Nele, uma senhora com a qual coabitei, anos atrás, pleiteia que eu quase triplique a pensão que lhe pago pontualmente para o sustento de uma filha. Como se sabe, no Brasil, professores ganham rios de dinheiro. Temos contas na Suíça e em todos os paraísos fiscais.


A alegação é frouxa. Porém, para meu assombro, a juíza intima-me a pagar a quantia reajustada antes mesmo da primeira audiência. Incrível, esse escorchamento tem amparo legal. É uma lei do tempo do Gumex: dura lex sed lex.


Sou zero em Direito, mas interpreto a medida como um prejulgamento. Sempre ouvi os ilustres sentenciarem: in dubio pro reo. Nas peladas da praia do Cassino não se falava latim, mas mesmo lá não havia dúvida: bola prensada é da defesa. O problema é que a mulher, pelo mero atributo da maternidade, é presumida como sendo a parte defensiva, mesmo quando ataca.


O feminismo foi um avanço, mas impregnou a mentalidade moderna com uma premissa arcaica: todo homem tem algo de Pôncio Pilatos, toda mulher tem algo de Maria Santíssima. É como se a maternidade fosse um valor em si, acima do bem e do mal. Não raro, vemos mulheres usarem os filhos como escudo.


Para uma mulher, é fácil provar ao juiz que um homem prejudica os filhos por conta da tirania ou do abandono, quando não lhes provê o sustento. Para um homem, é quase impossível demonstrar que uma mulher causa danos equivalentes aos filhos, ou talvez maiores, pela chantagem emocional, pela manipulação minimalista do cotidiano, por guardar o rancor num frasco de perfume. São os venenos sutis.

Esses mesmos venenos sutis podem minar um casamento. Quem sabe a solução seja cortar o mal pela raiz. Solteirão empedernido, o compositor Johannes Brahms disse uma vez: "Infelizmente nunca casei e, graças a Deus, ainda estou solteiro". Ainda mais perspicaz foi meu ilustre conterrâneo papa-areia, o Barão de Itararé: "A mulher deve casar. O homem, não".

domingo, 13 de setembro de 2009

O DOCE DO REI ALPINISTA

Acharam meus últimos textos amargos. Vou falar de doces. Assunto relevante, por sinal. Lorca disse que para entender um povo é preciso conhecer suas canções de ninar e seus doces. Guimarães Rosa, ao receber um visitante de longe em seu gabinete no Itamaraty, pedia-lhe para falar sobre doces de sua região.

Na cidade de Rio Grande, muitos ainda acham que a Confeitaria Sol de Ouro foi a melhor do mundo. Bem, o mundo não foi consultado sobre isso. Talvez encontrássemos objeções já ali ao lado, em Pelotas. Em ambas as cidades, rivais, pululam toscas imitações
do creme rei Alberto, conhecido em São Paulo como creme belga .

O doce foi inventado para paparicar os soberanos belgas que visitaram o Brasil em
1920 e 1922, no centenário da independência. O rei Alberto I, herói da Primeira Guerra, alpinista, celebridade mundial, foi acolhido com entusiasmo e doou uma locomotiva a vapor modelo Pacific 370 à Estrada de Ferro Central do Brasil. Conheceu fazendas de café, usinas de açúcar e assistiu a um "match de football" no campo do Fluminense. Em um banquete, quebrou o protocolo e repetiu a sobremesa: o creme tricolor que ganhou seu nome. Morreria em 1934, de uma queda em um rapel, levando consigo a lembrança daquele doce de sabor inigualável que conhecera no trópico.

O creme rei Alberto que hoje encontro em minha cidade é um simulacro daquele que a Sol de Ouro fazia. Explica-se. Tornou-se difícil achar gelatina em folhas
para fazer a camada vermelha comme il faut. A camada amarela, feita de baba-de-moça, ressente-se dessas gemas pálidas que minha avó napolitana Luigia, doceira de mão cheia, teria jogado no lixo. Os tempos mudaram. Mas isto não justifica que cubram o doce com merengue. O branco não existe na bandeira da Bélgica. É uma heresia. Às vezes nem colocam a ameixa em cima.

O mundo preservou a versão original napolitana da pizza Margherita, com
as cores da bandeira italiana. Mas minha cidade aviltou uma receita clássica da Confeitaria Sol de Ouro e, por extensão, o pavilhão belga. Se isso gerasse uma questão diplomática com a Bélgica, o Itamaraty estaria em palpos de aranha. Não sei se pode contar hoje com um diplomata de visão abrangente como Guimarães Rosa. Ele sabia até os doces do sertão.

domingo, 30 de agosto de 2009

DANTE E AS FERAS

Li em algum lugar que a marca de 36 graus centígrados, cravados, provou ser a mais propícia à reprodução da vida no nosso planeta. É a temperatura que predomina nos processos biológicos.

Na evolução dos seres humanos, porém, não se sabe bem por que, esse patamar de normalidade deu um pequeno salto para 36,5 graus. Em outras palavras, vivemos todos em um tênue e contínuo estado febril. Nem o levamos em conta, pois o assumimos como padrão de normalidade.

Vamos abordar a questão não apenas pelo lado biológico, mas também musical. Assim sendo, podemos considerar esse excesso de meio grau de temperatura como equivalente a um semitom. Um fá sustenido, por exemplo. Coisa pouca, nem sentimos a diferença. Assim como não sentimos que, em termos de condições emocionais, já nos habituamos a um patamar abaixo das outras espécies.
Estamos, por assim dizer, em ré bemol.

Pode parecer estranho. Mas não vivem dizendo que a depressão é a epidemia da modernidade? Se alguém duvida, basta lembrar que, só no Brasil, a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária contabiliza 130 tipos de antidepressivos. Muito mais, imagino, do que as marcas de cerveja existentes no mercado, e que os comerciais de TV nos apresentam como o elixir da alegria.

Enfim, o corpo em fá sustenido, a alma em ré bemol. Quem sabe a civilização inteira tenha resultado da ação combinada desses dois semitons. Eles
nos permitiram proezas como sair da caverna, dominar o fogo e, em tempos mais recentes, estourar pipocas no micro-ondas, cousa esta que deve intrigar os cachorros e os gatos. Mas o facto é que as dissonâncias de temperatura nos deram uma afinação diferente das dos outros seres vivos.

Não sei se somos mais felizes do que a pantera, a loba e o leão, animais que bloquearam o caminho de Dante para a colina luminosa quando ele se viu perdido na selva escura. Os atributos associados às três feras que o poeta teve de encarar são respectivamente a
luxúria, a avareza e o orgulho. Cousas estas que, por sua vez, podem ter sua origem nas pequenas variações de temperatura com as quais, aos poucos, fomos nos acostumando a conviver.

domingo, 16 de agosto de 2009

LEMBRANÇAS DA TIA MICHELINA

A gripe espanhola matou milhões. Tia Michelina não morreu, mas ficou surda. Zero. Nada mais ouviu depois. Mas ao contrair o vírus, imagino, pode ter ouvido do médico estas sábias palavras:
< Repouso e canja de galinha.

A canja, prato predileto de sua majestade, o imperador Pedro II,
como remédio contra a gripe não foi inventado por minha tia, ao contrário do que parece, nem pela tia de ninguém. Os médicos é que passaram a receitá-la quando viram que nem o quinino era capaz de enfrentar o vírus da gripe espanhola, cujo sobrinho agora nos atormenta.

Hontem como oje, o doutor deve ter sempre algo a nos dizer, ainda que seja um disparate. O que não pode é calar. Na semana passada, a Carta Capital falou das incertezas das autoridades diante da pandemia de gripe suína: "A autonomia dada aos médicos parece, portanto, uma forma de livrá-los de uma cobrança posterior. Ninguém quer ser acusado de provocar uma morte por negligência. O melhor, para os médicos, é poder receitar algo, nem que seja um placebo".

Cada um tem sua receita para prevenir ou combater a gripe: alho, limão, gengibre, cachaça, mel, um monte de coisas. Só a canja é consensual. Um amigo meu que se gripava a três por quatro resolveu o problema quando se habituou a tomar banho frio. Segui seu exemplo, durante um tempo, e deu certo. Naquele ano, não me gripei.

Tomar banho frio é que nem comer peixe cru: apavorante de início, gratificante depois. Trata-se de um hábito que aumenta a nossa resistência física e também nossa autoestima, como ato de heroísmo. Se não recomendo a todos, é para não ser apedrejado na rua.

Soluções caseiras são inviáveis, em grande escala, porque se baseiam no bom senso. O banho frio jamais vai emplacar no Brasil porque
representaria enorme economia energética. Além disso, ameaçaria os interesses da indústria farmacêutica, que vive a nos empurrar tranqueiras contra a gripe.

Para piorar, uma elevação no padrão imunológico nos tornaria menos dependentes do médico. No fundo, queremos uma figura de avental branco para nos receitar uns compimidos coloridos, quem sabe uma injeção. Qualquer coisa
, menos banho frio. Nossa verdadeira enfermidade é querer que alguém tome decisões por nós. Alguém que saiba preparar uma canja. Como a tia Michelina, por exemplo.

terça-feira, 28 de julho de 2009

SEBALD E O TEASMAID

Devo ao amigo Francisco Moura, entre tantas coisas, meu primeiro contato com a prosa de Winfred Georg Sebald (1944-2001). Esse autor alemão, que ensinou em universidades inglesas, produziu narrativas de viagem que articulam diversos gêneros da escrita.

Sebald é um portento ao descrever pessoas e lugares. As coisas e a história das coisas. E, em cada coisa, a história do mundo. Como outros autores magistrais, ele de início nos impõe um estado de incerteza que aos poucos se torna delicioso, como a mim também ocorre nos filmes de Lars von Trier. Se perguntado, eu demoraria a responder se estou gostando ou não. Mas é isso. Uma grande obra vem para nos ensinar o jeito de gostar dela. Isso também ocorre com certas mulheres.

Em Os emigrantes (Die ausgewanderten), Sebald chega no quarto de uma hospedaria em Manchester e dá de cara com o curioso teasmaid, engenhoca que combina as funções de despertador e máquina de fazer chá. Escreve: "Quando soltava o vapor do cozimento, o aparelho, construído sobre um consolo de lata cor de marfim, de aço brilhante inoxidável, parecia uma usina em miniatura, e quando escureceu vi que o mostrador do despertador era fosforescente, num sossegado tom verde-claro que eu conhecia da infância, e que inexplicavelmente sempre me parecera proteger as minhas noites".

Um aparelho desses, imagino, só podia mesmo ter sido bolado na Inglaterra. Ele conjuga duas obsessões
que se entrelaçam na cultura britânica: o chá e a hora do chá. O sabor e o tempo. Coisas díspares, em princípio, mas que juntas constituem como que um marco existencial.

Os jornalistas da minha geração amavam suas máquinas de escrever.
Aquelas nossas usinas em miniatura (com a licença de Sebald) eram capazes de realizar, ao mesmo tempo, duas operações indissociáveis: formar palavras e imprimi-las. O chá na hora do chá. Hoje os computadores refletem textos na tela, mas depois somem com eles. Milhões de frases escritas jamais conhecerão a aspereza do papel, que contém o percurso da humanidade.

Talvez eu jamais chegue a operar um teasmaid. Não sei se algum dia ainda voltarei à Inglaterra. Mas no centro de São Paulo, um dia desses, vi um cara tamborilando no teclado de uma máquina de escrever. Era um despachante, se não me falha a memória.

sábado, 25 de julho de 2009

SOBRE A EFICÁCIA DO SABONETE

Já vamos para o meio do inverno. Aos poucos, as lembranças da Flip se apagam. Uma das últimas que me restam é da tarde do domingo, dia 5. Foi quando o professor e ensaísta pernambucano Edson Nery da Fonseca, de 87 anos, houve por bem desvelar um dos mistérios da literatura brasileira: a questão do efeito residual do sabonete Araxá.

O facto remonta à primavera de 1931. O poeta Manuel Bandeira passeava pelas ruas de Teresópolis quando viu três belas garotas estampadas num reclame. Isso lhe deu o mote para um poema famoso: "Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às quatro horas da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!"

Até aí morreu Neves. Sabe-se que Bandeira era mulherengo. Mas por que desejaria locupletar-se do perfume dessas moças exatamente às quatro da tarde? Como praticante do verso livre, tinha todo o direito de deixar a questão em aberto. E não poderia ser às cinco? Às três e meia? Eis a questão.

Encasquetado com isso, Fonseca expôs sua dúvida ao próprio Bandeira. Os dois se conheceram no Rio, em meados da década de 1940. O poeta vivia no bairro do Castelo. Seu apartamento no Edifício São Miguel, além de garçonnière, era também ponto de encontro do pessoal mais jovem que o admirava. Ali Fonseca ficou sabendo por que a Balada das três mulheres do sabonete Araxá estipula com precisão as tais quatro horas da tarde.

Nesse horário, segundo Bandeira, uma mulher que tomou banho no início da manhã apresenta o mais perfeito equilíbrio entre o perfume do sabonete, que arrefece, e os eflúvios naturais femininos, que emergem. Trata-se, por assim dizer, de um equinócio erótico. Quatro horas da tarde, portanto, seria o momento ideal para um cara exigente levar a cabo
(como diríamos?) o intercurso sexual com uma dama.

Hontem, como hoje, esse é um assunto da mais alta relevância. Digo mais: já é hora de se refazer o estudo de Bandeira com os recursos mais avançados da cosmética. Assim se poderia verificar se o supracitado equinócio erótico se mantém às quatro da tarde ou já sofreu certa defasagem. Para dar início às experiências práticas, seria de bom alvitre o Estado decretar a siesta espanhola da uma às cinco. Assim, todos os seus servos, e não apenas os congressistas, poderiam testar a eficácia de todos os sabonetes, e não apenas o Araxá.

domingo, 19 de julho de 2009

CATECISMO E CETICISMO

Na noite de 2 de julho, o zoólogo britânico e arauto do evolucionismo Richard Dawkins reafirmou na Flip o que sempre disse: Deus não existe. Só temos esta vida. Melhor não fazer muitas besteiras. E aproveitar. Não haverá outra.

É saudável ver um
cientista notório arrebatar a plateia ao proclamar o ateísmo. Saudável porque serve de contrapeso social nesta época de insensatez. Em qualquer esquina, um pregador de meia-tigela é capaz de começar uma seita da noite para o dia, e ainda faturar em cima dos inocentes.

Mas o catecismo de Dawkins tampouco me convence. Como agnóstico, espanto-me com a firmeza da convicção tanto no crente quanto no ateu.
Não direi que são duas faces da mesma moeda, para não ser grosseiro nem simplista. Só que não entendo de que cartola tiram suas certezas. E por que essa fissura de convencer os outros da mesma coisa? O impulso missionário, enfim. Deus (exista ou não) é algo para ser sentido, não divulgado.

Passada a adolescência, não consegui mais levar a sério a ideia de um Deus
personalizado, que esteja preocupado com meu destino individual. Um ser sisudo, justiceiro, pronto para premiar ou punir (talvez perdoar) nossos atos. Um Deus assim seria muito parecido conosco, para ser divino.

Aceito melhor a ideia de Deus como sendo o conjunto de forças que atuam no universo.
Assim nos sugerem antigas religiões orientais. Nem seriam bem religiões, mas filosofias de vida espiritualizadas. Nelas não há um poderoso chefão, mas uma teia de possibilidades. Sartre e Bertrand Russell ressaltaram que somos responsáveis por nós mesmos.

A questão não é se Deus existe, mas se funciona. Estou convencido de que funciona, e muito. Deus vem servindo de consolo e incentivo para bilhões de pessoas, ao longo da história da humanidade, e durante séculos inspirou a arte mais elevada que se produziu no ocidente. D
awkins admitiu isso em Parati.

A discussão sobre a existência divina, embora inconclusiva, é instigante. Já cheguei a pensar que um Deus bondoso e justo, como querem os cristãos, seria também democrático, e se faria existir apenas para aqueles que assim o desejassem. Aliás, não é o que acontece na prática? Então Deus é uma evidência, não uma consistência. E é, em si, um milagre: nem precisa existir para funcionar.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O POETA QUE NÃO FOI À FLIP

Disseram na TV que a Flip tem algo de medieval. Não é que é mesmo? As ruas pedregosas de Parati ficam tomadas por trovadores, saltimbancos, franco-atiradores culturais, digamos, enquanto na Tenda dos Autores se desenrola um espetáculo midiático que a cada ano atrai mais celebridades. O resto é silêncio.

Pois vamos a ele, ao silêncio. Eu procurava às pressas um lugar para assistir à final da Copa do Brasil. Entrei num bar com telão, mas sem som, porque apresentavam música ao vivo. Travei uma conversa fortuita com outro colorado solitário na mesa ao lado. Enquanto havia esperança. Quando o Inter engoliu a primeira azeitona, tivemos a mesma ideia: chamar o garçom e fechar a conta. A pior coisa é pagar couvert artístico para ver o seu time fazer fiasco.

Eu não tinha razão para supor que voltaria a encontrar aquele outro infausto colorado. Mas eis que, na manhã seguinte, estou a garatujar uma matéria na sala de redação da Flip, quando ele de repente dá as caras. Pediu desculpas por interromper e me entregou um livro de poemas de autoria de seu filho, que não pudera vir a Parati. Um pequeno livro artesanal publicado em Recife, em 2006, intitulado Psiconáutica, com uma tímida palavra espremida no canto da capa branca: Trelles. Nome artístico do poeta André Telles do Rosário, pernambucano como o homenageado Manuel Bandeira, que aliás também não foi à Flip, mas lá estava.

O homem tinha ido a Parati para divulgar a obra do filho. Assim, na base da intrusão e do boca a boca. Longe do palco, da mídia, dos editores. Um trabalho medieval, se diria. E lotérico: algo como lançar ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa. O pai do poeta foi breve. Ao se despedir, disse que ficaria grato se eu pudesse ajudar na divulgação do livro.

Não mencionamos a debacle do Beira-Rio. Mas, convenhamos, a chance de o Inter marcar os gols necessários para o título era a mesma de um jovem poeta independente (e distante) fazer ecoar sua voz em uma Flip cada vez mais vip. O pai do poeta parecia fadado a missões impossíveis. Também era poeta, a seu modo. Missões impossíveis têm de ser silenciosas, para se tornarem possíveis. Um segredo da alquimia.

Almocei lendo poemas de Trelles. Em uma página quase toda em branco, encontrei esta frase: "Não existem dois silêncios iguais".

quarta-feira, 17 de junho de 2009

VIAGENS IRREVERSÍVEIS

O geógrafo Franco Farinelli fala em reversibilidade do movimento para contrapor as viagens de Marco Polo e Colombo. O navegador genovês confiava nos mapas, tinha pressa, muitas ambições e compromissos com patrocinadores. Tinha agenda. O veneziano transformou-se no caminho, esqueceu o tempo. Por pouco não teria jamais voltado para casa.

Tipos de viajantes e modos de viajar foi o tema de meu
recém-concluído doutorado em Letras. A tese, intitulada Em trânsito - Um estudo sobre Narrativas de Viagem, está na íntegra em www.renatomodernell.com.br/arquivos/em_transito.pdf.

A reversibilidade do movimento evoca minha experiência pessoal. Aos 22 e aos 33 anos de idade resolvi viajar levando a vida em aberto. Vendi o pouco que tinha e saí do país sem passagem de volta nem previsão de retorno. Na primeira vez, por medida de economia, fui de navio. O Cabo San Roque, espanhol, de umas 15 mil toneladas, fora um barco glamoroso nos anos 60 mas já estava decadente naquele outono de 1976 em que fazia sua última travessia do Atlântico em linha regular de passageiros. O detalhe ornamentou minha aventura.

Nenhuma das demais viagens que fiz rivalizou, na essência, com aquelas sem passagem de volta. As outras tiveram
a premissa do retorno como fator de perturbação, feito uma torneira gotejante. O ritual da volta para casa pode ser reconfortante, mas nunca vertiginoso e revelador quanto a consciência, ao partir, de talvez se estar vendo tudo à volta pela última vez. O gostinho do irreversível. Mesmo quando se retorna de uma viagem em aberto, sente-se o mundo habitual de modo diferente. Então não será uma volta, mas um salto para um patamar existencial situado uma oitava acima do momento da partida.

Entre Marco Polo e Colombo, cravo Marco Polo e empate. Dispenso a pressa e o estresse de Colombo. A liberdade possível, hoje, é viajar sem agenda, sem mapa, em um mundo que sacraliza a precisão do GPS.

Não pude repetir, aos 44 e aos 55, as viagens em aberto realizadas aos 22 e aos 33 anos. Quem sabe o farei aos 66 anos, se antes os anjos não vierem me levar para a Banda Larga. Essa viagem, sim, é irreversível. E de graça, penso eu.

domingo, 7 de junho de 2009

ASSIM COMO PICASSO

> Eu não tenho medo de morrer, eu tenho medo é de avião.
Esta frase, atribuída a Picasso, pode não ser exatamente um chiste, uma boutade. Despedir-se deste mundo dentro de um tubo pressurizado,
com a sensação de despencar no vazio, o quadril imobilizado pelo cinto de segurança, em meio a uma gritaria de pessoas desconhecidas, já é quase como trazer o inferno para o lado de cá, mesmo que não exista o lado de lá. Talvez fosse esse filme (Guernica II) que passava na cabeça de Picasso. O mesmo que passa na cabeça de muita gente.

Quando a fatalidade acontece, é só uma confirmação. Temos dentro de nós, fechado a sete chaves, um repulsivo fascínio por saber como é que os outros viveram seus últimos momentos. Em avião, nem se fala. Os barões da comunicação sabem disso. E seus pastores, os repórteres, se revezam dia e noite na tarefa de extrair até a última gota de sangue de uma tragédia, transformando-a em informação urgente.

Tivemos uma semana atordoante. A mídia ficou o tempo todo em cima desse acidente da Air France. A meu ver, passou da conta. Entrevistaram militares, engenheiros, pilotos,
meteorologistas, especialistas em aviação, um monte de gente loquaz ou lacônica que, no conjunto, pouco acrescentou ao que nós, como leigos, já sabemos acerca de acidentes aéreos.

Minhas dúvidas continuam. Por que não constroem caixas-pretas flutuantes? Por que não arranjam um jeito de fazer com que os dados nelas contidos sejam transmitidos por satélite,
automaticamente, em caso de impacto? Custa-me acreditar que seja assim tão difícil resolver isso.

Não vi nenhum jornalista fazer tais perguntas aos especialistas durante a cobertura do acidente com o voo 447. Mas vi repórteres correndo atrás de pessoas que perderam parentes, e deviam ser deixadas em paz. Vi matérias bem feitas na TV, mas também quilos de abobrinhas, como quando espicham uma novela até encher as medidas.

Vai chegar o dia em que a mídia, depois de uma tragédia, em vez de nos entulhar de notícias, aprenderá a fazer um minuto de silêncio como nos estádios e nas cerimônias públicas. Mas isso ainda demora. Primeiro precisamos perder o medo de avião. Nesse ponto, pelo menos, somos parecidos com Picasso.

domingo, 24 de maio de 2009

BANGUE-BANGUE EM BRASÍLIA

Um clima de faroeste se instala entre nossas excelências, os parlamentares, quando discutem sobre a cota para negros nas universidades. Espanta-me que o assunto continue a dar pano para mangas. Invocam a ignomínia do passado para disfarçar a demagogia no presente.

Se aceitarmos a premissa, simplista e até racista (pelo avesso), de que disparidades históricas podem ser resolvidas pelo loteamento dos espaços sociais, então o que queremos ver é uma comédia. Não custa propor cota para índios nos ministérios; cota para japoneses na bateria das escolas de samba; cota para surdos nas sinfônicas; cota para canhotos no ranking do tênis; cota para anões nos times de basquete; cota para gagos nos telejornais; cota para brancos na defesa do Flamengo; cota para obesos no ataque do Corinthians (uma vaga já está ocupada); e, é claro, cota para fumantes no metrô, uma vez que o fumante não fuma porque quer, como bem sabemos, mas porque em algum momento foi vítima de uma propaganda enganosa que o governo permitiu. Parece ridículo? Pois é, mas
vivemos em um país que já teve até ministro da desburocratização e a taxa de juros estabelecida na carta magna.

Uma intelectual renomada (não guardei o nome) disse na TV, um dia desses, que o sistema de cotas no ensino superior poderia ser "o ovo da serpente". A metáfora é pertinente. Lembrei-me de uma outra, de Antonio Cândido, que certa vez afirmou que "o Brasil é um andar de cima realizado e um andar de baixo esquecido".

A turma do café da manhã está cansada de saber que o problema da educação tem de ser sanado a partir da base, ampliando-a e qualificando-a. Isto tenderá a dissolver a seleção racial, naturalmente, sem cotas em lugar algum. Mexer em cima, engessando segmentos, é apenas um jeito de nivelar por baixo. Ou seja, pavimentar o caminho para as nulidades que já infestam a vida pública.

Esse bangue-bangue entre parlamentares é um retrato da nossa inadimplência cultural. Penso se não estaríamos mais bem servidos e representados caso houvesse no Congresso um percentual de pessoas comuns, não partidárias, sorteadas entre a população em geral. Isso funcionou bem na antiga Grécia. Seria, por assim dizer, um sistema de cotas reservadas ao acaso. Mas por acaso não foi a Grécia o berço da democracia?

domingo, 10 de maio de 2009

AÇÚCAR OU ADOÇANTE?

O pessoal do café da manhã (agora sem hífens) queixa-se de que este blogue anda muito sério. Vou ver o que posso fazer. Não prometo nada.

O pessoal do café da manhã é o grupo de professores com que faço a primeira refeição do dia, três vezes por semana. Ocupamos a mesa mais próxima a um televisor que
é ligado quando abrem a lanchonete do terceiro andar.

Assim sendo, podemos rever os gols da noite anterior e dirimir dúvidas sobre algum pênalti ou impedimento. Às vezes
absolvemos um juiz que, na véspera, teríamos levado à cadeira elétrica. Coisas assim, se não trazidas a lume, permaneceriam como feridas latejantes no inconsciente coletivo.

Também vemos no vídeo cenas de assassinatos à queima-roupa, deslizamentos de terra, carretas tombadas na marginal.
O belo rosto da apresentadora Renata Vasconcelos ameniza a barbárie cotidiana. Mas é páreo duro com Cláudia Bomtempo, que tem feições mais incisivas. No tempo das galochas nosso dilema era entre Sophia Loren e Claudia Cardinale.

Sejamos honestos: às sete da manhã a forma importa mais que o conteúdo. "Muitos cuidam da reputação, mas não da consciência", nos censuraria o padre Antônio Vieira, se viesse tomar o café da manhã conosco.

Mas também não é que só falamos de amenidades. Há o lado cultural. Com o pessoal do café da manhã, já tive ótimas indicações de filmes e fiquei sabendo, por exemplo, que pebolim em Portugal se chama matraquilhos. Às vezes analisamos acidentes aéreos, técnicas de pouso e decolagem etc. O Ministério da Aeronáutica ainda haverá de mandar um emissário para acompanhar nossos colóquios matinais.

Ainda precisamos examinar melhor a fórmula de disputa do Campeonato Nacional. Uma pesquisa recente revela que 53,3% dos brasileiros preferem o atual sistema de pontos corridos, contra 36% de adeptos do "mata-mata" e 10,7% de indiferentes. Neste caso, estou com a maioria. Porém, para a Copa Brasil, defendo que o sistema de desempate por pênaltis seja trocado por prorrogação com "morte súbita", para compelir os times ao ataque.

Assuntos dos mais variados e relevantes entram em pauta, às primeiras luzes da aurora, como diria Fiori Gigliotti, naquela mesa da lanchonete. E os analisamos com tal acuidade de raciocínio que, não raro, chega às raias da erudição. Dir-se-ia até que nosso café-da-manhã continua como antes, com hífens.

domingo, 26 de abril de 2009

ELZA ENTRE O CAVALEIRO E O PAI

É uma maravilha voltar a ler livros por prazer, depois de quase dois anos de dedicação intensiva (compulsiva) a um trabalho acadêmico. Uma tese é como uma viagem de negócios: jamais será como uma viagem de núpcias.

Emprestaram-me um livro cuja capa talvez não me atraísse na livraria. E o título é meio apelativo: Elza, a garota -- A história da jovem comunista que o partido matou. Sugere denúncia, contundência, uma patacoada do tipo "nunca antes neste país" etc.

Nada disso. Trata-se de um romance histórico bem pensado e muito bem escrito por Sérgio Rodrigues, mineiro nascido em 1962 e radicado no Rio. Poucas vezes vi um jornalista tirar partido do grande atributo da profissão -- o traquejo para captar e processar a informação -- sem produzir um texto com ranço de revista. Refiro-me ao tom da narrativa, à maneira de articular as idéias, de construir as frases.

Formidável. São 238 páginas de leitura prazerosa. A protagonista da trama, Elza, é uma adolescente ingênua que é tida como traidora e estrangulada por membros do Partido Comunista, então clandestino e perseguido por Getúlio Vargas. O provável mandante do crime é Luiz Carlos Prestes, que mais tarde admitiria o erro, mas não sua responsabilidade direta. O grande erro, para Prestes, é que a morte de Elza beneficiou Vargas.

Elza viveu em um tempo no qual
capuzes, senhas, codinomes e covas de fundo de quintal ocultavam as pessoas inconvenientes. No Brasil da década de 1930, a única coisa visível a olho nu era o antagonismo representado pelas figuras de dois gaúchos miúdos que carregavam epítetos gigantescos: "o cavaleiro da esperança" e "o pai dos pobres". Prestes e Vargas, respectivamente.

Acho que não faria lá grande diferença se invertêssemos hoje esses dois epítetos, um de origem literária, outro de origem bíblica. Quem iria reclamar? Se os fins justificam os meios, a ideologia é uma coreografia. Então ficaríamos assim: Prestes, "o pai dos pobres", e Vargas, "o cavaleiro da esperança".

Por que não? Escolhemos nosso inimigo pelo quanto ele difere de nós, e ao combatê-lo nos tornamos cada vez mais parecidos com ele.
Os grandes líderes sabem disso, suponho, mas não se importam nem um pouco. Caso se importassem, não seriam grandes líderes, como Prestes e Vargas. Seriam miúdos, como Elza.

domingo, 12 de abril de 2009

NO TERRENO DAS HIPÓTESES

Ônibus lotado. O sujeito se dirige em voz alta aos demais passageiros:
> Bom-dia a todos. Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui humildemente pedindo uma colaboração de vocês.
Ninguém responde, ninguém se mexe. Mas é um silêncio repleto de pensamentos. Alguns deles:
* Eu podia estar em Copacabana, eu podia estar em Ipanema, mas estou aqui humildemente na Consolação congestionada.
* Eu podia estar com câncer, eu podia estar com Aids, mas estou aqui humildemente chupando esta pastilha pra dor de garganta.
* Eu podia passar por cima, eu podia passar por baixo, mas estou aqui humildemente pagando para girar a catraca.
* Eu podia estar com ela, eu podia estar sem ela, só não queria é ficar pensando nisso.
* Eu podia estar naquele carro, eu podia estar naquele outro, mas estou aqui humildemente de mochila nas costas.
* Eu podia me vingar no grito, eu podia me vingar no tapa, mas estou aqui humildemente levando os comprovantes que o advogado pediu.
* Eu podia estar em Brasília, eu podia estar roubando, mas estou aqui humildemente a caminho do trabalho.
* Eu podia estar nos Andes, eu podia estar nos Alpes, mas estou aqui humildemente no espigão da Paulista.
* Eu podia estar no volante, eu podia estar na catraca, mas estou aqui humildemente e vou descer no próximo ponto.
* Eles podem ficar comigo, eles podem ficar sem migo, mas vão ter que me pagar o aviso prévio.
* Eu podia dar uma fechada, eu podia dar uma buzinada, mas estou aqui humildemente esperando essa perua retocar o batom.
* Eu podia estar na revista, eu podia estar na televisão, mas estou aqui humildemente longe de todos os olhares.
* Eu podia ter saído antes, eu podia acordar mais cedo, mas estou aqui humildemente atrasado de novo.
* Eu podia ter respondido, eu podia ter ligado, mas humildemente me dou conta de que é tarde demais.
* Eu podia estar lendo Ulisses, eu podia estar lendo Os sertões, mas estou aqui humildemente lendo estas adjazzcências.
O silêncio (repleto de pensamentos) permanece. O sujeito desiste. Resolve descer do ônibus:
> Muito obrigado. Um bom dia e uma boa semana a todos vocês.

domingo, 29 de março de 2009

NA PELE, NOS MUROS

Vejo cada vez mais gente tatuada. Já não são só imagens vazadas, em regiões discretas, mas grandes áreas do corpo grafitadas. O braço do cara parece um pilar de viaduto.

Três coisas me intrigam. Uma: como é possível que jovens irrequietos, incapazes de se concentrar num texto de quatro páginas, ou mesmo num filme mais denso que Harry Potter, permaneçam imóveis horas a fio (imagino) enquanto um sujeito lhes garatuja na mesma pele em que, ainda ontem, mamãe passava Hipoglós com tanto carinho?

A segunda questão é, quem diria, estética. Os jovens ostentam tatuagens que destoam do padrão visual do mundo que habitam, e muitos adoram. Refiro-me a ambientes, roupas, acessórios, aparelhos, sites etc. O que mais vejo por aí são motivos florais, dragões, serpentes, uma pletora de elementos sombrios e entrelaçados.

Um visual rétro. Antigão. Muitas tatuagens me fazem pensar em iluminuras medievais, feitas tanto para ilustrar o texto quanto para assustar o leitor. Outras me fazem recordar os frontões das velhas casas do centro de Rio Grande ou nas revistas em quadrinhos do tempo das galochas.

Porém o que mais me intriga, nesse fenômeno, é a tatuagem como voto de permanência. Dá para tirar, mas não é fácil. Conheci um cara que ia gastar os tubos para apagar uma tatuagem no dedo, em forma de aliança, com o nome da ex-mulher. Imaginem o drama. Agora imaginem um dragão no pescoço. Quem garante que você, amanhã, não vai querer prestar concurso para auditor da Receita?

A tatuagem é meio que um gesto de desespero contra a impermanência. O cara vê tudo mudar tão rápido, tudo tão fora de seu controle, seja na vida real ou na virtual, que se sente tentado a criar uma espécie de site com páginas fixas. Na própria pele, impregnando-a de tinta. Oferece o próprio corpo em sacrifício para poder contar com um ponto de referência ao acordar amanhã: algo não mudou enquanto ele dormia. E também não sai com água e sabonete.

Pela mesma razão, acho eu, o pichador não picha coisas móveis (veículos) ou transitórias (tapumes, outdoors) e prefere rabiscar muros e fachadas. Ele tem medo de acordar amanhã e já não encontrar suas próprias marcas no mundo. Todos nós temos medo, aliás.

domingo, 15 de março de 2009

UM PROJETO SUPIMPA

Uma amiga envia-me um convite para entrar numa corrente de apoio a um projeto de lei de 2007 de autoria do senador Cristovam Buarque. Não sou lá muito chegado nesse negócio de correntes pela internet. Mas endosso aqui, nestas adjazzcências, uma idéia que considero, além de justa, sensacional.

Buarque propõe que os políticos eleitos para qualquer cargo tenham de matricular seus filhos e dependentes em escolas públicas. (Pergunto-me qual seria esse percentual, hoje.) Se o projeto é viável, são outros quinhentos. Mas, se for, creio, pode constituir um ovo de Colombo na questão educacional no Brasil. A qual, como sabemos, é um filme de terror.

< De vampiros, acrescenta Leo Vázquez.

Não vou dar trela ao palpiteiro bissexto. Sabemos o quanto ele pode ser espevitado quando entra em cena. Anos atrás, imaginem, apoiou uma proposta para instalar relógios de ponto nas casas legislativas, para que todos pudéssemos verificar a assiduidade dos políticos em seus postos de trabalho. Agora Leo Vázquez defende uma espécie de Big Brother fiscalizador que teria como cenário os meandros do Congresso Nacional. Assim, todos nós, que pagamos regiamente os salários de nossas excelências, teríamos acesso (em tempo real) a seus cochichos e os conchavos.

Bem, quem sabe isso seja possível dentro de 100 ou 200 anos. Se o efeito estufa não derreter tudo nos próximos 50, claro. No futuro próximo, explico a Leo, eu já me daria por satisfeito se o projeto do senador Buarque fosse aprovado e entrasse em vigor. Os políticos seriam compelidos a se mexer para dar um jeito no ensino público, embora agindo em causa própria, como é do seu feitio.

Esse projeto justificaria um amplo plebiscito. Se ficar nas mãos dos políticos, vai para a gaveta da eternidade. Eles sabem: não se mexe em time que está ganhando. E ganham altos salários, gozam de indecentes imunidades e privilégios, entre os quais o maior de todos: o privilégio de estabelecer os próprios privilégios. Temos, na verdade, uma monarquia camuflada dentro da república.

Votei em Cristovam Buarque na última ou penúltima eleição. Sabia que não tinha chance. Não me arrependo. Outra chance (maior) se abre com um projeto assim, se a idéia crescer e pegar de jeito.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

SEM ESTRELAS

Nas quartas-feiras, dou aulas no décimo andar às 7h30 da manhã. Vejo pela janela o centro de São Paulo como uma massa acinzentada. Entre prédios sombrios, um facho de sol penetra por uma brecha estreita e faz resplandecer a bandeira nacional. Vejo-a drapejar à contraluz, a uns 100 metros de distância.

Minha relação com a bandeira brasileira sempre foi ambígua. Acho sua combinação de cores uma das mais belas do mundo. O desenho, um horror. Há algo de infantilizado ou banal na superposição de figuras geométricas. E o
lema Ordem e progresso parece-me tão discutível quanto ineficaz, por ser escrito numa língua que, lá fora, quase ninguém entende.

Acho bregaça essa mania (mundial) de salpicar as bandeiras com estrelas. Melhor seria reservá-las para cotações de restaurantes. Os americanos têm na sua bandeira as estrelas todas arrumadinhas, como em prateleiras. Talvez no fundo preferissem ver o céu assim, e sob controle da Nasa.

Já a nossa bandeira, mais à vontade, expressa o jeitinho brasileiro. Mas foi idéia de um belga. Louis Cruls era
diretor do Observatório Nacional e amigo do imperador. Quando proclamaram a república, para não ficar em maus lençóis, ele antecipou-se ao destino. Concebeu uma nova bandeira ao gosto da ideologia dominante, o positivismo, e apressou-se a apresentá-la aos novos donos do poder. A posição das estrelas no círculo azul correspondia ao céu do Rio de Janeiro às 8h30 da manhã de 15 de novembro de 1889. Uma imagiem factível, ou naturalista, ao contrário da bandeira americana, que é burocrática.

Detalhe: o astrônomo usou a imagem do céu invertida, para que a estrela isolada ficasse acima da faixa branca. Bem, então já não é o céu do Rio. É o céu de Cruls. Houve ali, além da questão política, digamos, uma intervenção estética.

Hoje, 120 anos depois, não estaria na hora de se fazer outra intervenção estética na bandeira? De minha parte, prefiro tudo mais simples, como na do Japão. Sem estrelas.
Por isso proponho aquela, limpinha da silva xavier, que aparece lá em cima.

Vejam o que acham. Mas resolvam logo, antes que apareça um
outro Cruls (petista, tucano ou coisa que o valha) com a idéia de colocar na nova bandeira as estrelas que aparecem no céu de São Paulo 7h30 da manhã. Não aparece nenhuma, garanto. Pelo menos às quartas-feiras.