terça-feira, 28 de julho de 2009

SEBALD E O TEASMAID

Devo ao amigo Francisco Moura, entre tantas coisas, meu primeiro contato com a prosa de Winfred Georg Sebald (1944-2001). Esse autor alemão, que ensinou em universidades inglesas, produziu narrativas de viagem que articulam diversos gêneros da escrita.

Sebald é um portento ao descrever pessoas e lugares. As coisas e a história das coisas. E, em cada coisa, a história do mundo. Como outros autores magistrais, ele de início nos impõe um estado de incerteza que aos poucos se torna delicioso, como a mim também ocorre nos filmes de Lars von Trier. Se perguntado, eu demoraria a responder se estou gostando ou não. Mas é isso. Uma grande obra vem para nos ensinar o jeito de gostar dela. Isso também ocorre com certas mulheres.

Em Os emigrantes (Die ausgewanderten), Sebald chega no quarto de uma hospedaria em Manchester e dá de cara com o curioso teasmaid, engenhoca que combina as funções de despertador e máquina de fazer chá. Escreve: "Quando soltava o vapor do cozimento, o aparelho, construído sobre um consolo de lata cor de marfim, de aço brilhante inoxidável, parecia uma usina em miniatura, e quando escureceu vi que o mostrador do despertador era fosforescente, num sossegado tom verde-claro que eu conhecia da infância, e que inexplicavelmente sempre me parecera proteger as minhas noites".

Um aparelho desses, imagino, só podia mesmo ter sido bolado na Inglaterra. Ele conjuga duas obsessões
que se entrelaçam na cultura britânica: o chá e a hora do chá. O sabor e o tempo. Coisas díspares, em princípio, mas que juntas constituem como que um marco existencial.

Os jornalistas da minha geração amavam suas máquinas de escrever.
Aquelas nossas usinas em miniatura (com a licença de Sebald) eram capazes de realizar, ao mesmo tempo, duas operações indissociáveis: formar palavras e imprimi-las. O chá na hora do chá. Hoje os computadores refletem textos na tela, mas depois somem com eles. Milhões de frases escritas jamais conhecerão a aspereza do papel, que contém o percurso da humanidade.

Talvez eu jamais chegue a operar um teasmaid. Não sei se algum dia ainda voltarei à Inglaterra. Mas no centro de São Paulo, um dia desses, vi um cara tamborilando no teclado de uma máquina de escrever. Era um despachante, se não me falha a memória.

sábado, 25 de julho de 2009

SOBRE A EFICÁCIA DO SABONETE

Já vamos para o meio do inverno. Aos poucos, as lembranças da Flip se apagam. Uma das últimas que me restam é da tarde do domingo, dia 5. Foi quando o professor e ensaísta pernambucano Edson Nery da Fonseca, de 87 anos, houve por bem desvelar um dos mistérios da literatura brasileira: a questão do efeito residual do sabonete Araxá.

O facto remonta à primavera de 1931. O poeta Manuel Bandeira passeava pelas ruas de Teresópolis quando viu três belas garotas estampadas num reclame. Isso lhe deu o mote para um poema famoso: "Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às quatro horas da tarde! / O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!"

Até aí morreu Neves. Sabe-se que Bandeira era mulherengo. Mas por que desejaria locupletar-se do perfume dessas moças exatamente às quatro da tarde? Como praticante do verso livre, tinha todo o direito de deixar a questão em aberto. E não poderia ser às cinco? Às três e meia? Eis a questão.

Encasquetado com isso, Fonseca expôs sua dúvida ao próprio Bandeira. Os dois se conheceram no Rio, em meados da década de 1940. O poeta vivia no bairro do Castelo. Seu apartamento no Edifício São Miguel, além de garçonnière, era também ponto de encontro do pessoal mais jovem que o admirava. Ali Fonseca ficou sabendo por que a Balada das três mulheres do sabonete Araxá estipula com precisão as tais quatro horas da tarde.

Nesse horário, segundo Bandeira, uma mulher que tomou banho no início da manhã apresenta o mais perfeito equilíbrio entre o perfume do sabonete, que arrefece, e os eflúvios naturais femininos, que emergem. Trata-se, por assim dizer, de um equinócio erótico. Quatro horas da tarde, portanto, seria o momento ideal para um cara exigente levar a cabo
(como diríamos?) o intercurso sexual com uma dama.

Hontem, como hoje, esse é um assunto da mais alta relevância. Digo mais: já é hora de se refazer o estudo de Bandeira com os recursos mais avançados da cosmética. Assim se poderia verificar se o supracitado equinócio erótico se mantém às quatro da tarde ou já sofreu certa defasagem. Para dar início às experiências práticas, seria de bom alvitre o Estado decretar a siesta espanhola da uma às cinco. Assim, todos os seus servos, e não apenas os congressistas, poderiam testar a eficácia de todos os sabonetes, e não apenas o Araxá.

domingo, 19 de julho de 2009

CATECISMO E CETICISMO

Na noite de 2 de julho, o zoólogo britânico e arauto do evolucionismo Richard Dawkins reafirmou na Flip o que sempre disse: Deus não existe. Só temos esta vida. Melhor não fazer muitas besteiras. E aproveitar. Não haverá outra.

É saudável ver um
cientista notório arrebatar a plateia ao proclamar o ateísmo. Saudável porque serve de contrapeso social nesta época de insensatez. Em qualquer esquina, um pregador de meia-tigela é capaz de começar uma seita da noite para o dia, e ainda faturar em cima dos inocentes.

Mas o catecismo de Dawkins tampouco me convence. Como agnóstico, espanto-me com a firmeza da convicção tanto no crente quanto no ateu.
Não direi que são duas faces da mesma moeda, para não ser grosseiro nem simplista. Só que não entendo de que cartola tiram suas certezas. E por que essa fissura de convencer os outros da mesma coisa? O impulso missionário, enfim. Deus (exista ou não) é algo para ser sentido, não divulgado.

Passada a adolescência, não consegui mais levar a sério a ideia de um Deus
personalizado, que esteja preocupado com meu destino individual. Um ser sisudo, justiceiro, pronto para premiar ou punir (talvez perdoar) nossos atos. Um Deus assim seria muito parecido conosco, para ser divino.

Aceito melhor a ideia de Deus como sendo o conjunto de forças que atuam no universo.
Assim nos sugerem antigas religiões orientais. Nem seriam bem religiões, mas filosofias de vida espiritualizadas. Nelas não há um poderoso chefão, mas uma teia de possibilidades. Sartre e Bertrand Russell ressaltaram que somos responsáveis por nós mesmos.

A questão não é se Deus existe, mas se funciona. Estou convencido de que funciona, e muito. Deus vem servindo de consolo e incentivo para bilhões de pessoas, ao longo da história da humanidade, e durante séculos inspirou a arte mais elevada que se produziu no ocidente. D
awkins admitiu isso em Parati.

A discussão sobre a existência divina, embora inconclusiva, é instigante. Já cheguei a pensar que um Deus bondoso e justo, como querem os cristãos, seria também democrático, e se faria existir apenas para aqueles que assim o desejassem. Aliás, não é o que acontece na prática? Então Deus é uma evidência, não uma consistência. E é, em si, um milagre: nem precisa existir para funcionar.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O POETA QUE NÃO FOI À FLIP

Disseram na TV que a Flip tem algo de medieval. Não é que é mesmo? As ruas pedregosas de Parati ficam tomadas por trovadores, saltimbancos, franco-atiradores culturais, digamos, enquanto na Tenda dos Autores se desenrola um espetáculo midiático que a cada ano atrai mais celebridades. O resto é silêncio.

Pois vamos a ele, ao silêncio. Eu procurava às pressas um lugar para assistir à final da Copa do Brasil. Entrei num bar com telão, mas sem som, porque apresentavam música ao vivo. Travei uma conversa fortuita com outro colorado solitário na mesa ao lado. Enquanto havia esperança. Quando o Inter engoliu a primeira azeitona, tivemos a mesma ideia: chamar o garçom e fechar a conta. A pior coisa é pagar couvert artístico para ver o seu time fazer fiasco.

Eu não tinha razão para supor que voltaria a encontrar aquele outro infausto colorado. Mas eis que, na manhã seguinte, estou a garatujar uma matéria na sala de redação da Flip, quando ele de repente dá as caras. Pediu desculpas por interromper e me entregou um livro de poemas de autoria de seu filho, que não pudera vir a Parati. Um pequeno livro artesanal publicado em Recife, em 2006, intitulado Psiconáutica, com uma tímida palavra espremida no canto da capa branca: Trelles. Nome artístico do poeta André Telles do Rosário, pernambucano como o homenageado Manuel Bandeira, que aliás também não foi à Flip, mas lá estava.

O homem tinha ido a Parati para divulgar a obra do filho. Assim, na base da intrusão e do boca a boca. Longe do palco, da mídia, dos editores. Um trabalho medieval, se diria. E lotérico: algo como lançar ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa. O pai do poeta foi breve. Ao se despedir, disse que ficaria grato se eu pudesse ajudar na divulgação do livro.

Não mencionamos a debacle do Beira-Rio. Mas, convenhamos, a chance de o Inter marcar os gols necessários para o título era a mesma de um jovem poeta independente (e distante) fazer ecoar sua voz em uma Flip cada vez mais vip. O pai do poeta parecia fadado a missões impossíveis. Também era poeta, a seu modo. Missões impossíveis têm de ser silenciosas, para se tornarem possíveis. Um segredo da alquimia.

Almocei lendo poemas de Trelles. Em uma página quase toda em branco, encontrei esta frase: "Não existem dois silêncios iguais".