domingo, 30 de agosto de 2009

DANTE E AS FERAS

Li em algum lugar que a marca de 36 graus centígrados, cravados, provou ser a mais propícia à reprodução da vida no nosso planeta. É a temperatura que predomina nos processos biológicos.

Na evolução dos seres humanos, porém, não se sabe bem por que, esse patamar de normalidade deu um pequeno salto para 36,5 graus. Em outras palavras, vivemos todos em um tênue e contínuo estado febril. Nem o levamos em conta, pois o assumimos como padrão de normalidade.

Vamos abordar a questão não apenas pelo lado biológico, mas também musical. Assim sendo, podemos considerar esse excesso de meio grau de temperatura como equivalente a um semitom. Um fá sustenido, por exemplo. Coisa pouca, nem sentimos a diferença. Assim como não sentimos que, em termos de condições emocionais, já nos habituamos a um patamar abaixo das outras espécies.
Estamos, por assim dizer, em ré bemol.

Pode parecer estranho. Mas não vivem dizendo que a depressão é a epidemia da modernidade? Se alguém duvida, basta lembrar que, só no Brasil, a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária contabiliza 130 tipos de antidepressivos. Muito mais, imagino, do que as marcas de cerveja existentes no mercado, e que os comerciais de TV nos apresentam como o elixir da alegria.

Enfim, o corpo em fá sustenido, a alma em ré bemol. Quem sabe a civilização inteira tenha resultado da ação combinada desses dois semitons. Eles
nos permitiram proezas como sair da caverna, dominar o fogo e, em tempos mais recentes, estourar pipocas no micro-ondas, cousa esta que deve intrigar os cachorros e os gatos. Mas o facto é que as dissonâncias de temperatura nos deram uma afinação diferente das dos outros seres vivos.

Não sei se somos mais felizes do que a pantera, a loba e o leão, animais que bloquearam o caminho de Dante para a colina luminosa quando ele se viu perdido na selva escura. Os atributos associados às três feras que o poeta teve de encarar são respectivamente a
luxúria, a avareza e o orgulho. Cousas estas que, por sua vez, podem ter sua origem nas pequenas variações de temperatura com as quais, aos poucos, fomos nos acostumando a conviver.

domingo, 16 de agosto de 2009

LEMBRANÇAS DA TIA MICHELINA

A gripe espanhola matou milhões. Tia Michelina não morreu, mas ficou surda. Zero. Nada mais ouviu depois. Mas ao contrair o vírus, imagino, pode ter ouvido do médico estas sábias palavras:
< Repouso e canja de galinha.

A canja, prato predileto de sua majestade, o imperador Pedro II,
como remédio contra a gripe não foi inventado por minha tia, ao contrário do que parece, nem pela tia de ninguém. Os médicos é que passaram a receitá-la quando viram que nem o quinino era capaz de enfrentar o vírus da gripe espanhola, cujo sobrinho agora nos atormenta.

Hontem como oje, o doutor deve ter sempre algo a nos dizer, ainda que seja um disparate. O que não pode é calar. Na semana passada, a Carta Capital falou das incertezas das autoridades diante da pandemia de gripe suína: "A autonomia dada aos médicos parece, portanto, uma forma de livrá-los de uma cobrança posterior. Ninguém quer ser acusado de provocar uma morte por negligência. O melhor, para os médicos, é poder receitar algo, nem que seja um placebo".

Cada um tem sua receita para prevenir ou combater a gripe: alho, limão, gengibre, cachaça, mel, um monte de coisas. Só a canja é consensual. Um amigo meu que se gripava a três por quatro resolveu o problema quando se habituou a tomar banho frio. Segui seu exemplo, durante um tempo, e deu certo. Naquele ano, não me gripei.

Tomar banho frio é que nem comer peixe cru: apavorante de início, gratificante depois. Trata-se de um hábito que aumenta a nossa resistência física e também nossa autoestima, como ato de heroísmo. Se não recomendo a todos, é para não ser apedrejado na rua.

Soluções caseiras são inviáveis, em grande escala, porque se baseiam no bom senso. O banho frio jamais vai emplacar no Brasil porque
representaria enorme economia energética. Além disso, ameaçaria os interesses da indústria farmacêutica, que vive a nos empurrar tranqueiras contra a gripe.

Para piorar, uma elevação no padrão imunológico nos tornaria menos dependentes do médico. No fundo, queremos uma figura de avental branco para nos receitar uns compimidos coloridos, quem sabe uma injeção. Qualquer coisa
, menos banho frio. Nossa verdadeira enfermidade é querer que alguém tome decisões por nós. Alguém que saiba preparar uma canja. Como a tia Michelina, por exemplo.