domingo, 21 de novembro de 2010

O CANTO DE TELMA

Um trabalho recente me fez mergulhar nas biografias de mais de 150 militantes clandestinos que as Forças Armadas, passadas três décadas, ainda não assumem ter executado. O eufemismo desaparecidos me parece tão cínico, hoje, quanto a pecha de terroristas com que o governo da época os difamava. Nos últimos meses, li versões conflitantes sobre a prisão e a morte de cada um desses ditos desaparecidos.

Telma Regina Cordeiro Corrêa, militante carioca do PCdoB, combateu no Araguaia sob o codinome "Lia". Desapareceu em 1974, aos 27 anos. Segundo os militares, teria relatado em caligrafia trêmula seus últimos dias antes da prisão. Já sucumbia à fome e à exaustão. Ao pressentir a morte, Telma bradava uma canção de combate: "Guerrilheiro nada teme / Jamais se abate / Afronta a bala a servir / Ama a vida, despreza a morte / E vai ao encontro do porvir". 

A atitude de Telma me trouxe uma lembrança. Aos seis ou sete anos, no sul, deparei com um tal de Anuário Inaciano em um quartinho de despejos no fundo de casa. Não sei por que cargas d'água aquilo teria ido parar no meio dos gibis. Impressionou-me a imagem de um padre que submergia preso em uma gaiola. Teria sido colocado ali pelos comunistas, claro. A detração ao inimigo (de ambos os lados) chegou ao ridículo durante a Guerra Fria. A Igreja também entrou nessa. 

O que mais me espantou foi que o padre, com água pela cintura, brandisse o crucifixo para algozes supostamente ateus. Em face da morte, lançar um último sinal ao mundo seria um ato de bravura ou de exorcismo? Ou apenas o senso do dever? Engraçado, isso de a guerrilheira me recordar o padre. Se ele de fato existiu, e morreu por afogamento, presume-se que quisesse a figura de Cristo voltada para si. Assim como Telma, para conforto próprio, poderia limitar-se a recordar os versos da canção. Preferiu cantar. Na solidão da mata, quem poderia ouvi-la senão o ouvido do inimigo? 

Pode não haver mais inimigos na hora da morte. Apenas o homem às voltas com seus símbolos. E o impulso de proclamar o que mereceu seu esforço para preencher o vazio.