domingo, 13 de fevereiro de 2011

QUE NO SE VEA LA SANGRE

"Carne es muerte", picharam na Estátua da Liberdade, centro de Montevidéu. Ela fica na Plaza de Cagancha, quilômetro zero das estradas nacionais uruguaias. Antes partiam dali os ônibus da empresa ONDA, que exibiam na carroceria a imagem alongada e ágil de um galgo.

Hoje, em Montevidéu, os ônibus rodoviários partem do Terminal Tres Cruces. No restaurante do primeiro andar, um homem assa as carnes com altivez. Ele as faz rolar sobre a grelha, pincelando o molho, espetando uma ou outra peça com seu garfo longo e medieval. Domina o braseiro com um desprezo reverente. Nem olha para os próprios gestos, como o maestro não olha para a batuta. O cara da parrilla sabe que é o homem mais importante no restaurante. Todo mundo sabe. Cada uruguaio consome em média 58,2 kg de carne ao ano, liderando um ranking mundial que durante décadas teve os argentinos no topo. 

Ser vegetariano no Uruguai é algo mais ousado do que ser tupamaro nos anos 70. Os guerrilheiros, pelo menos, tinham alguma chance. Basta lembrar que o atual presidente Pepe Mujica foi um dos 111 presos que fugiram espetacularmente do presídio de Punta Carretas, em 1971. Ora, direis, era o destino dele. Mas o destino jamais levaria à presidência do Brasil algum dos também 111 presos executados em 1992 no presídio do Carandiru, em São Paulo, mesmo que conseguisse escapar. Mas aí já são outros quinhentos. Outros 111, pelo menos. Voltemos a Montevidéu. No restaurante do terminal Tres Cruces, uma senhora interiorana senta-se à mesa ao lado. Ouço-a dizer ao garçom como deseja seu bife de chorizo:
> No pasado, pero tampoco que se vea la sangre.

Isso é comida ou política? Jamais saberei. Vejo o garçom se afastar e depois transmitir o pedido, com humildade, ao sujeito diante do braseiro. O assador tem consciência de ser o homem mais importante não apenas no restaurante, mas no país inteiro. O cara da parrilla, penso comigo, é o verdadeiro presidente do Uruguai. Desde sempre. Desde antes de construírem a Estátua da Liberdade, na Plaza de Cagancha, em 1863. E desde muito antes de algum solitário pichón ter pichado o pedestal. Que no se vea la sangre.