quinta-feira, 20 de agosto de 2020

DESPEDIDA DE MINHA FILHA




Outra despedida. Laura vai morar na Suíça. Enquanto minha filha fecha a mala, eu abro o baú. Dentro dele, vislumbro uma cena ocorrida 26 anos atrás. Saímos da maternidade com um bebê novinho em folha, frágil como casca de ovo, que traz pendurado na barriga um canudo escuro e resistente – um pedaço do cordão umbilical.

Naquela manhã de dezembro, para mim, tudo era novidade. De tão atrapalhado, nem me ocorreu perguntar à enfermeira para que raios haveria de servir um coto de cordão umbilical depois de terminado o parto. Na maternidade, fui refém do mesmo embaraço de quem sai da loja levando um aspirador de pó com acessórios esquisitos que jamais serão usados.
A analogia é rude, mas cabível. Não vou deletá-la só por conta dos bons modos. E digo mais. Com o passar dos dias, o cordão umbilical foi ganhando um aspecto cada vez menos agradável, seco e encarquilhado, como se fosse o pênis de uma múmia. Só não foi para o lixo, junto com as tiras de esparadrapo, porque descobrimos algo interessante.
No nosso país existem, pelo menos, duas simpatias relativas ao cordão umbilical dos recém-nascidos. Se o jogarmos ao telhado, o filho permanecerá grudado à família. Se o lançarmos ao mar, o filho sairá pelo mundo em busca de seus próprios caminhos, embora preservando os laços afetivos com suas raízes.
O cordão umbilical de Laura foi servido aos peixes do Oceano Atlântico. Esse mesmo oceano que meus ancestrais atravessaram ao vir para o Brasil, de navio, Laura agora vai cruzar de avião, em sentido inverso, para encarar um mestrado em neurociências na Universidade de Genebra.
Noto um rebuliço dentro do baú. Meus antepassados vibram ao saber que uma descendente deles tem chance de dar o pulo do gato. Eles mal tiveram instrução básica. Meus avós eram gente simples do sul da Itália e da zona rural do Uruguai. Nem fariam ideia do que são as tais neurociências, ainda que já existissem na época deles. Eu mesmo, hoje, não posso garantir que sei. Talvez tenha uma ideia, por alto, do que são neurociências. Mas não me peçam para explicar.
Mas uma coisa eu sei, talvez melhor que meus ancestrais: não fazemos filhos para nós, e sim para o mundo. Um dia, cedo ou tarde, chega a nossa vez de vê-los partir. É hora de permanecermos imóveis, lúcidos, se possível felizes, enquanto algo se desprende de nós e se espalha no espaço, como um perfume. É assim que funciona.
Continuo a ver coisas antigas dentro do baú. Vejo que também eu, 48 anos atrás, fui embora da minha terra. Como era muito jovem, não soube aquilatar o quanto aquela despedida pode ter pesado para quem me viu partir. Estava focado em mim mesmo. Parti de minha cidade, por assim dizer, a bordo de um submarino amarelo, inebriado com meus sonhos e projetos.
Hoje, de barba branca, me vejo no papel de quem fica. Sinto-me inquieto, mas também gratificado. A vida ganha em plenitude quando temos a chance de viver de novo, em posição oposta, uma situação já vivida em outra época. Minha filha levará mundo afora algumas partículas do que sou. Ou do que tentei ser, como pai, enquanto estive por perto.
Fico aqui, entre outras coisas, para tomar conta do baú. Tiro de dentro dele, uma a uma, as fotos para compor esta retrospectiva. A menininha cresceu. Isso me espanta. Mais de um quarto de século se passou em um piscar de olhos. E foi boa ideia jogar no mar aquele cordão umbilical. Parece que funcionou.

💧 Texto publicado no Facebook em 15-8-2020

EVOCAÇÃO DE MEU PAI



Aí está ele, em três momentos. Paulino Modernell (1900-1972) era uruguaio, naturalizado brasileiro e radicado em Rio Grande (RS), onde fez a vida à frente do Hotel Familiar, junto com minha mãe, Angelina.

Paulino não tinha muita instrução, mas revelou um bom tino comercial como hoteleiro. A certa altura, contratou Ângelo Trindade, o Messi dos cozinheiros rio-grandinos, naquela época, para pilotar a cozinha do Hotel Familiar durante a temporada de verão. Sucesso absoluto. O modesto Hotel Familiar captou até clientes grã-finos, de óculos Ray-Ban, por causa da excelência do cardápio.
Um dos carros-chefes do restaurante do hotel era o pimentão ao forno recheado com camarão. Bah! Esse prato era mesmo de arrebentar a boca do balão. Com o passar dos anos, extinto o hotel, foi incorporado à tradição culinária da nossa família, com as necessárias adaptações que a vida impõe a cada um.
Daqui a pouco, vou preparar esses tais pimentões recheados com camarão. Eles irão ao forno em três cores: verde, vermelho e amarelo. Uma evocação da gloriosa camiseta tricolor do Sport Club Rio Grande. A homenagem vai para Paulino Modernell, que detestava futebol, mas (esteja onde estiver) vai ter que me perdoar mais essa.

💧 Texto publicado no Facebook em 9-8-2020

DESPEDIDA DO MACKENZIE

Pessoal, isto é uma despedida. Deixo o Mackenzie após 14 anos como professor do curso de Jornalismo.
Antes, como jornalista, jamais havia sonhado em ficar tanto tempo no mesmo emprego. Nem me passava pela cabeça um dia vir a ser professor. Felizmente, aconteceu. Trabalhar no ensino me deu chance de reavaliar, filtrar e organizar o que acumulei como saber de ofício ao longo de quatro décadas, nas atividades de escritor e jornalista. Ser professor, em suma, foi um privilégio da minha velhice.
Minha experiência como professor confirma uma premissa do psicólogo Carl Rogers que conheci ainda em meu primeiro ano como aluno da faculdade de Jornalismo: não podemos ensinar de modo direto, apenas facilitar aprendizagem de outra pessoa. Quem a escreveu a giz no quadro-negro da FAAP foi Isaac Epstein, meu professor genial e inesquecível.
Nunca me ocorreu escrever essa frase de Rogers, a canetão, em algum quadro-branco do Mackenzie. Talvez devesse tê-lo feito. Agora é tarde. Mas antes de sair de cena gostaria de repeti-la aqui como algo que me cabe transmitir aos jovens. Fora isso, espero ter passado duas ou três coisinhas úteis a pelo menos alguns dos milhares alunos que estiveram comigo nesses 14 anos. Mesmo quando em meio a um mar de indiferença, o professor sempre busca achar dois olhos brilhando durante a sua aula.
Dizem que vivemos tempos duros. Pode ser. Mas que tempos não foram duros? Sinceramente, não temo pelo que aguarda as novas gerações. Os melhores haverão de criar soluções. Alguns vão apoiá-los; outros, contestá-los. Foi sempre assim. Nada de novo sob o sol. Aos meus alunos, agora ex-alunos, insisto no seguinte: não se deixem levar por belas palavras, venham de onde vierem. Ousem buscar as palavras verdadeiras e exatas. Nossa missão é essa.
Ao me despedir, posto aqui uma das fotos que fiz há bastante tempo, por simples curtição, dentro do campus Higienópolis. Nela vemos o interior do prédio 35, o qual, pelo que me disseram, vão botar abaixo (sem comentários). Trabalhei bastante ali, nos primeiros anos. Muito me agradava estimular os jovens a escrever sob a primeira claridade da manhã.
Sentirei falta do ambiente universitário múltiplo e fervilhante, tal como era antes da quarentena. Não sentirei falta da burocracia acadêmica, por vezes sufocante, que a meu ver constitui outra espécie de pandemia. Essa nos condena a usar máscaras pesadas, embora invisíveis.
Sentirei saudade de alguns colegas com os quais gostaria de ter convivido mais, e se não o fiz foi talvez por negligência minha. Lamento isso, agora. Sempre tive e terei sempre grande apreço por pessoas com senso de humor e pensamento independente. Dessas, vou me lembrar por muito tempo. As outras, esquecerei tão rápido quanto serei esquecido.

💧 Texto publicado no Facebook em 24-6-2020