sábado, 21 de maio de 2011

UM AMIGO EM SOSTENUTO

A boa inveja, como o bom colesterol, não tem caráter destrutivo. O invejoso torce pelo invejado. Não sonha puxar-lhe o tapete, mas estar à altura de uma parceria.
 
Sempre tive essa (espero) boa inveja de Gil Reyes, multi-instrumentista catalão-paulistano hoje com 61 anos. Conhecemo-nos há quase 40, na revisão da Editora Abril, onde todos admirávamos seu talento musical. Gil deu aulas de flauta e violão para alguns colegas, inclusive para mim. Minha contribuição à música foi desistir a tempo. Tenho a consciência tranquila.

Porém o que não conseguimos ser persiste no que somos. Muitos escritores destilam paixões osmóticas pela música, que é pura forma. Luiz Antonio de Assis Brasil, ex-violoncelista da Sinfônica de Porto Alegre, executa com maestria sua obra literária. Julio Cortázar eternizou o jazzista Charlie Parker na novela O perseguidor. Tentei algo semelhante em relação a Astor Piazzolla, ao escrever Che Bandoneón. Devo ter ficado umas duas ou três oitavas abaixo de Cortázar.

Os anos passam. Na mocidade cultivei a delirante ideia de reproduzir nos textos a poética de Piazzolla. Depois quis obter dentro do parágrafo, com um jogo de palavras, dissonâncias sutis como as dos acordes de Bill Evans. A rigor, isso é impossível: a música tem uma sintaxe, não uma semântica.  

No entanto, um delírio pode ser factível de modo indireto. Quando a mãe diz ao bebê umas frases que só fazem sentido aos seus próprios ouvidos, ao pronunciá-las assume gestos e expressões que sinalizam algo ao receptor. Ou seja, ela acaba por realizar a intenção inicial. Algo desse tipo ocorre quando criamos textos a partir de ideias musicais.

Não lamento as tolices que digo aqui. Gosto do meu ofício. Só que teria preferido dizer tudo isto ao teclado do piano. Como consolo, resta-me ir ver o amigo Gil Reyes tocar no mezanino do Bar Piratininga, na Vila Madalena. Observo como viaja longe durante os improvisos. Ele e os outros dois: o contrabaixista Zeli Silva e o saxofonista Carlos Alberto Alcântara, lépido e radiante aos 76 anos. Certo tipo de felicidade só pertence aos músicos. Ainda bem que existe a boa inveja. Esta, pelo menos, dá para confessar.