quinta-feira, 28 de abril de 2022

MEIO SÉCULO EM SÃO PAULO

                      

No fim do último verão, completei cinquenta anos em São Paulo. Meio século. Quando me dei conta disso, caíram-me os butiás do bolso.

Mudei-me para cá no começo de março de 1972. Antes já tinha vindo a passeio, talvez meia dúzia de vezes, em visita a um irmão mais velho. Entre a infância e a adolescência, desenvolvi um fascínio pelas luzes e pelo alvoroço das cidades grandes. Cheguei a lamentar não ter nascido numa delas. 

Hoje, claro, isso me parece uma tolice. Até porque, se houvesse nascido em São Paulo, não teria tido a chance, aos dezoito anos, de desbravá-la da maneira como desbravei. Trocar a província pela metrópole é um rito de passagem tão importante quanto procriar ou entrar no mundo do trabalho.

Na juventude, meu sonho era escrever e viajar. São Paulo me propiciou isso. Sou muito grato a esta cidade. A este horror de cidade. A este maravilhoso horror de cidade. Tentarei me explicar, para não parecer que acabo de cuspir no prato em que comi meu primeiro filé à parmigiana.

Proponho ao meu paciente leitor, como ponto de partida, a seguinte pergunta: o que faz uma cidade grande ser uma grande cidade? Em suma, uma metrópole. Certamente não será apenas sua extensão geográfica, pois, se assim fosse, viver em qualquer um dos 2.500 bairros de São Paulo, sem sair dali, seria o mesmo que viver numa cidade do interior, o que não é verdade. A pulsação é outra. Isso dá para sentir, de cara, no mais modesto bar da periferia paulistana. A vida diminuta que transcorre ali faz parte de uma teia, de um sistema muito maior. Então eu diria o seguinte: uma metrópole não se define pelo tamanho, mas pela multiplicidade de conexões que propicia às pessoas.

E pelos contrastes. Uma das coisas que mais me impactaram em São Paulo foi a drástica discrepância entre a tensão dos dias úteis e o marasmo dos domingos. Claro que isso existia também em Rio Grande, minha cidade no extremo sul, porém em grau bem menor. A caminho do cinema, sentíamos a ausência do Homem da Cobra, o ambulante que fazia ponto ao lado do coreto da Praça Tamandaré. Não muito mais que isso.

Na metrópole, quando a vida para de repente, num domingo chuvoso, o recém-chegado pode ser pego de surpresa por uma melancolia proporcional ao tamanho da cidade. Um vazio, um negócio que é tipo uma inhaca existencial. A língua inglesa expressa isso, com elegância, numa única palavra: nothingness.

Quando ouço a voz plangente de Ray Charles em Georgia on my mind, recordo meus primeiros domingos em São Paulo, cinzentos e solitários. E se Tito Madi vier na sequência com o samba-canção Gauchinha bem querer, bah, aí dá perda total. Pronto, caio em prantos.

São Paulo me ensinou – na marra – a lidar com forças opostas. Uma delas, centrípeta, me puxa para dentro dela de forma irrevogável, como se só aqui fosse possível contar com os interlocutores e estímulos dos quais necessito. Ao mesmo tempo, outra força violenta, porém centrífuga, me empurra para o mais longe possível deste inferno urbano em que todo mundo disputa espaço o tempo inteiro, sem trégua.

Fugi de São Paulo várias vezes. Fugi e voltei. Cada vez que voltei, encontrei coisas novas, ideias novas, pessoas novas. Foi sempre um recomeço, uma oitava acima, não uma simples continuação. Um novo trabalho, um novo bairro para morar.  Meu atual endereço é o décimo, em meio século, sem contar outros tantos em que fui acolhido por amigos generosos durante semanas ou meses, em fases de transição ou de apertos financeiros.

Esses altos e baixos, hoje não os lamento de forma alguma. Ao fazer de mim um peregrino dentro dela própria, esta cidade me treinou para viver em diversas outras, dentro e fora do país, onde me estabeleci durante temporadas mais curtas ou mais longas. Mesmo estando distante de São Paulo, ela sempre permaneceu no meu horizonte, como uma estrela-guia. Acho que esse sinal me foi lançado na primeira vez que estive aqui, aos sete anos de idade, em julho de 1961, meses depois da inauguração do antigo e já desativado terminal rodoviário da Luz.

Em março de 1972, quando vim para morar, encontrei a cidade ainda sob impacto do incêndio do Edifício Andraus. No Sul, dias antes, havíamos acompanhado pela televisão a tragédia ocorrida na Avenida São João. No entanto, visto de longe, a mais de mil quilômetros de distância, aquilo não era tão diferente das cenas mais impactantes das novelas. Na província, os fatos da metrópole, fossem ou não ficcionais, eram coisas que ocorriam em um mundo que não era o nosso.

Nessa mesma época, São Paulo celebrava o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Mas que catso vinha a ser aquilo? Eu não fazia ideia. Era apenas um ex-estudante de eletrotécnica, sem grande verniz cultural, que de repente decidiu trocar a régua de cálculo pela máquina de escrever. A celebração do modernismo foi um ótimo momento para desembarcar aqui. O vento soprou a meu favor. Tive chance de assistir, em cópias novas, aos grandes filmes do Cinema Novo. Por uns trocados, vi subir ao palco músicos do calibre de Egberto Gismonti e Wagner Tiso.

No curso de comunicações sociais, encontrei um ambiente receptivo e estimulante. Os veteranos programaram um churrasco em um sítio para receber os calouros. Achei ótima ideia. Eu ainda, naquela época, era um carnívoro voraz. Imaginei suculentos espetos de costela a perder de vista. Enfim, carne para salgar com avião agrícola, como se dizia no Sul. E uma cordilheira de cerveja gelada. Serramalte, claro, ainda um emblema da cultura gaúcha, para aplacar não apenas a sede, mas também a saudade. 

Ao chegar no sítio, foi um choque cultural. O que chamavam de churrasco não passava de modestos bifes, talvez de acém, sei lá, que fritavam na chapa, enfiavam no pão francês e comiam em pé, na forma de sanduíche, com molho vinagrete. * La puta que los parió!; precisei dizer apenas para os meus botões, evitando assim ser descortês com meus novos colegas. Além disso, acho que nenhum deles tinha ouvido falar da nossa Serramalte, que no Sul considerávamos a melhor cerveja do mundo, ainda que para isso fosse necessário reduzir o mundo às dimensões da província.

Isso, no fim das contas, foi até bom para mim. Na falta da Serramalte, pela primeira vez, tive a oportunidade de provar uma cerveja que não vinha em garrafa de vidro, e sim em uma latinha amarela de folha de flandres. Essa era uma grande novidade do início da década de 1970, no Brasil. E se o Brasil excluía o Sul, azar do Brasil.

Ou melhor, azar meu. Já estava mais do que na hora de eu aprender a me portar como um brasileiro. Ah, se meus antigos colegas do curso de eletrotécnica pudessem me ver ali, com aquela panca de futuro jornalista, emborcando uma Skol! Eu teria até feito uma selfie, se isso existisse. Uma selfie que seria uma farsa, como são as selfies. Pois, no fundo da alma, eu continuava a aportar que em nenhum recanto do sistema solar, ou fora dele, poderia haver uma cerveja capaz de superar a Serramalte. Só ela, em garrafa de vidro, guardava o sabor da minha terra distante.

Apesar desse primeiro churrasco que não foi churrasco, São Paulo logo iria começar a ampliar o meu paladar provinciano, abrindo-o como se fosse uma sanfona. Comida chinesa, filé à cubana, molho tártaro, hambúrguer em todas as suas variações, sanduíche americano, cortado com a espátula ainda sobre a chapa, frutas tropicais de todas as cores e formatos, jaca, maracujá, jabuticaba... Nada disso se conhecia em Rio Grande. E nem mesmo em Pelotas se poderia imaginar um sorvete de pétalas de rosa. Também valeria um selfie, creio. Esse, no balcão da lanchonete Jotas da Vila Buarque.

Em Pinheiros, fui presa fácil dos quilométricos filés à parmigiana do Degas. Os garçons experientes os cortavam com a ponta da colher, que a seguir usavam para enrolar no ar os fiapos de queijo, como se fossem fios de ovos, ao longo do curto trajeto da travessa até os pratos. Aqueles senhores de gravata-borboleta gostavam de exibir suas habilidades de ofício diante do olhar respeitoso de um grupo de universitários famintos. Afinal de contas, a revolução só podia ser feita de barriga cheia.

Precisei de força de vontade para vencer minha repulsa inicial à garapa. Tinha aspecto de urina, com o perdão da palavra. Tampouco me encantei muito com o feijão carioca, usado em São Paulo no dia a dia, cujo marrom me parecia similar a algo que, desta vez, prefiro omitir. Depois, superei essa fase. Contudo, sempre me faltou coragem para comer rãs. E até sou grato por não tê-la em relação à dobradinha, que no Sul conhecemos por mondongo. Já na mais longínqua infância, quando botavam aquele troço para cozinhar na panela, eu sumia de casa.

Em São Paulo, nos primeiros tempos, tive a sorte de ser muito bem acolhido nas casas de Francisco Moura, Alceu Nader e Pedro Monteiro, que depois se tornariam amigos para a vida toda. A convivência com essas famílias me ensinou a apreciar o café fresco, coado na hora. No Sul, o costume era bem diferente. Fazia-se grandes quantidades de um café ralo, aguado, que permanecia no bule durante alguns dias, para ser requentado diversas vezes. Uma porcaria, enfim, como se pode imaginar.

Aprendi com os paulistas que o café, para ser bom, tem que ser feito no mesmo instante em que o espírito, não apenas o paladar, o solicita. Com a metáfora, ocorre algo semelhante, descobri depois, quando escrever se tornou o meu ofício. Se eu usar em um texto, por exemplo, São Paulo, a locomotiva do Brasil, estarei apenas me apropriando de uma metáfora formidável, perfeita para a época áurea das ferrovias, mas que o tempo degradou, como o café no bule. Tornou-se, portanto, um clichê. Este, reconheço, também não é um termo que as novas gerações entendem tão bem quanto a nossa. Quando algum aluno às vezes me pergunta o que é um clichê, e por que não se deve usá-lo no texto, costumo responder: > Vá até o Rio Grande do Sul e prove um café caseiro.

Já quanto ao chimarrão, os gaúchos são tão zelosos e exigentes quanto os paulistas em relação ao café. O mate precisa ser feito na hora, de determinado jeito, e depois tomado em ritmo de ritual. Aprende-se isso na infância. É tarefa ingrata ensinar um paulista a tomar mate. Apressado, ele tenderá a revirar a bomba na cuia como se fosse um canudo no milk-shake. Ou a alavanca de câmbio do automóvel. O paulista é um cosmopolita. Resolve as coisas do jeito dele. Só me senti de fato um morador de São Paulo quando peguei a mania de exigir café fresco, feito na hora, várias vezes por dia, como fazia o Alceu, quando ouvíamos os primeiros discos de Gismonti.

Assimilei também muitas palavras novas em São Paulo: lousa, carteira, farol, breque, vitrola, treme-treme, quitinete, criado-mudo, mexerica, marmita, mistura. Tudo isso, ouvi aqui pela primeira vez. Expressões como “pra viagem” ou “de domingo” me soavam estranhas nos primeiros tempos. Mas nenhuma tão engraçada quanto “puxar o tapete” de alguém, algo comum no mundo corporativo. Ao ouvi-la, eu imaginava uma cena de desenho animado. No Sul, diríamos “pisar no poncho” ou “dar uma rasteira”. Mas “puxar o tapete”, convenhamos, é muito mais coreográfico.

 Também me chamou a atenção, vivendo em São Paulo, ouvir dizer que duas pessoas estavam casadas, quando no Sul se usava a expressão eram casadas, dando a ideia de algo irreversível, definitivo, como quando se escolhe um time para torcer. Era um detalhe significativo. Logo pude perceber que, na metrópole, todos os aspectos da vida, incluindo as relações humanas, tinham um caráter mais flexível e transitório do que na província. Isso valia até para as regras de snooker, que no Sul eram mais severas e punitivas.

A flexibilidade do Sudeste, conforme percebi, poderia representar uma oportunidade para rever valores e ampliar horizontes. No Sul, as coisas tendem a ser mais nítidas, o que é bom, mas também mais rígidas, o que é ruim. Dançar conforme a música nem sempre significa uma corrupção do caráter, como nós, sulistas, estamos sempre dispostos a considerar. Eu vinha de uma cidade austera, espartana, surgida de uma guarnição militar cravada numa península arenosa com formato de um punho fechado. Como me dispunha a viver no centro do país, ambiente multifacetado, cosmopolita, a primeira coisa a fazer era afrouxar os dedos da mão, um a um, e aprender a tocar todas as cordas da harpa tropical que – basta olhar o mapa – traça o feitio do Brasil.

Fui criado em uma cidade costeira, plana como uma mesa de snooker, quando lá ainda predominavam as casas baixas e os espaços abertos. Por conta disso, tanto a aurora quanto o crepúsculo eram um processo lento, que inspirava contenção no temperamento de seus habitantes. Em São Paulo, encontrei o oposto disso. Cidade de planalto, apinhada de prédios encravados entre vales e colinas, ela só se revela a quem consegue entender sua topografia. Mesmo sendo ávido caminhante, sempre detestei ladeiras, calçadas com degraus, desníveis no terreno, como se tais coisas fossem uma espécie de celulite do chão, defeitos das cidades.

Demorei a me acostumar com as colinas de São Paulo, as repentinas enxurradas de verão, que em minutos podem tornar o ambiente urbano hostil e ameaçador. Criado em uma cidade pacata e lisa, de repente me vi caminhando em ruas inclinadas e tumultuosas, calçadas com cheiro de gás, sob o barulho de metralhadora dos helicópteros e o estrondo dos aviões a jato, coisas que eu só conhecia dos filmes de guerra. Tudo isso me deixava aturdido. O crepúsculo rápido, em São Paulo, não me dava tempo de pensar.

Mas cheguei a pensar em voltar para o Sul, ao menos por instantes, cada vez que me via diante da enorme ladeira da Rua Alagoas, no último quarteirão do meu trajeto para a faculdade. Vencida essa etapa penosa, voltava a me convencer de que meu lugar era mesmo em São Paulo. Lá dentro da faculdade, eu podia contar com professores excelentes (um deles, genial) que me davam justamente aquilo que eu tinha vindo buscar na metrópole: uma nova maneira de olhar o mundo. Não se volta para a província após ser aluno de Isaac Epstein.

Meu primeiro endereço em São Paulo foi em um prédio situado numa alça da Nove de Julho, a mais tradicional das grandes avenidas de fundo de vale que são a marca registrada da cidade. Naquele trecho, cerca de duzentos metros antes da boca do túnel de acesso aos Jardins, os edifícios foram construídos em áreas escavadas nos taludes das colinas, formando paredões maciços, sem intervalos.

Em centenas de janelas, as luzes permanecem acesas a maior parte do dia. Os vidros sempre fechados, não tem outro jeito, para atenuar o barulho e a fuligem do trânsito. Lugar sombrio, astral pesado. Amanhece tarde, anoitece cedo. Eu sentia saudade da amplidão do Sul, os “abismos horizontais”, como se costuma dizer de nossos vastos descampados costeiros. É que nem estar no meio do mar, embora estando em terra firme. Uma outra forma de nothingness, mais serena e luminosa, enriquecida pela sensação de liberdade.

Nas trevas enfumaçadas da Nove de Julho, eu morava inicialmente com mais dois sujeitos bem mais velhos que eu, num apartamento térreo, mais escuro ainda, e a janela do nosso único quarto dava para a lateral do prédio. Embora o nome do edifício fosse cintilante, Astro Sul, para nós lá dentro era sempre noite, como numa mina de carvão da Inglaterra. Precisávamos manter a luz acesa e a cortina fechada, o tempo inteiro, para os transeuntes não nos verem em cuecas, nem virem nos encher o saco, pedindo informações. Em geral, queriam saber o valor do condomínio.

Aliás, era um valor bastante acessível. O Astro Sul, com sua fachada em pastilhas rosadas e azuis, era já então um imóvel de reputação declinante, onde as pessoas moravam só até conseguir coisa melhor. Vivia ali uma fauna urbana das mais heterogêneas. Costureiras e aposentados eram obrigados a compartilhar os elevadores com seres da noite, entre garotas de programa, atores dos teatros do Bexiga e bagaceiros de diversos tipos. Tratava-se, em suma, de um treme-treme, outra expressão paulistana que me agradava tanto quanto aquela já mencionada, puxar o tapete, pois ambas reproduzem com maestria a instabilidade da existência humana neste vale de lágrimas.

Mesmo vivendo na sombra do Astro Sul, meu lugar ao sol não demorou a surgir. Uns dois ou três meses depois de chegar em São Paulo, por meio de um anúncio de jornal, consegui emprego como revisor de textos na mais importante editora de revistas do país, a Abril, para ganhar um salário bem acima das minhas pretensões. Era para dar um salto e um soco no ar, como Pelé. Esse emprego me permitiu dispensar o apoio financeiro da família, o que foi ótimo, mas teve também um efeito colateral negativo: deu-me uma visão ilusória do que seria a vida profissional em uma grande cidade.

Na província, eu jamais teria sonhado em conseguir um emprego desse nível, recém-entrado na faculdade, a menos que fosse apadrinhado por uma figura influente, e olhe lá. Na metrópole, como os caciques estão longe do olhar dos índios, tive a impressão de que poderia, para todo o sempre, chegar aonde quisesse sem precisar da indicação de ninguém, só por minhas próprias forças, apenas fuçando anúncios nos jornais. Nada como a inocência dos dezoito anos. Nada como uma Serramalte.

Deixei o Sul, entre outras coisas, por perceber que o espaço profissional era dominado por panelinhas. O espírito de patota conta a favor dos medíocres. Isso, eu sempre soube. O que eu não sabia é que se trata de um fenômeno universal. Sem indicação, não se chega a lugar algum. Não devo ter lido Os três mosqueteiros, na infância, com a devida atenção aos detalhes. D’Artagnan não teria se tornado mosqueteiro, em Paris, se não houvesse partido da Gasconha levando no bolso uma carta de recomendação. O jogo é esse. Entra quem quiser.

Houve momentos em que me senti sozinho, desamparado, logo que cheguei em São Paulo. Naquela época, era difícil até encontrar erva-mate. Para tomar chimarrão, só mesmo nas arquibancadas dos estádios, em meio à torcida colorada, quando o Internacional vinha jogar aqui. Nunca deixei de comparecer, mesmo debaixo de chuva, sentindo febre e calafrios.

Em meio à torcida colorada, pequena porém aguerrida, sempre me deixei comover no breve convívio com aqueles sujeitos que vinham do Sul em ônibus fretados, cinquenta horas de estrada, entre ida e volta, apenas para assistir a um jogo que durava uma hora e meia. Mas o que são cinquenta horas, ou mesmo cinquenta anos, quando se trata das coisas do coração? Era o que eu me perguntava, na arquibancada, enquanto compartilhava o chimarrão com desconhecidos que nunca mais iria rever. Acima de tudo, o Inter. Isso não precisava ser dito. Todos sabíamos. E sabíamos também que o melhor remédio para a solidão, senão para a gripe, era ver surgirem na boca do túnel as camisetas vermelhas.

Por décadas, o Internacional amargou um complexo de inferioridade em relação aos paulistas. Mesmo quando jogava bem, saía na frente, depois se mostrava incapaz de suportar a pressão, cedia terreno, levava a virada. Isso me doía. Não só como torcedor, mas também como um terneiro disposto a virar um touro, em meio às provações da metrópole.

Não é proibido querer viver uma vida parecida, nem que seja um pouquinho, como a de D’Artagnan. Vim para a cidade grande porque queria estar entre os grandes. Se meu destino fosse ser um pequeno entre os grandes, paciência, nem sempre se ganha o jogo. Mesmo assim, eu preferia isso, mil vezes, do que ser um grande entre os pequenos. Neste último caso, não se é testado de verdade.

No meu primeiro ano em São Paulo, o jogo mais eletrizante não foi aqui, mas lá no Beira-Rio, entre as seleções do Brasil e do Rio Grande do Sul. Na tarde do sábado 17 de junho de 1972, o estádio do Internacional recebeu o maior público da sua história, estimado em torno de 115 mil espectadores. Deve haver certo exagero nessa cifra, mas não importa.

Era para ser uma simples partida amistosa, mas acabou por ganhar quase uma atmosfera de guerra civil de caráter separatista. Como se sabe, às vezes um melindre qualquer, irrelevante e circunstancial, como foi o caso, tem o poder de reativar uma mágoa antiga e profunda. Isso vale tanto para um indivíduo quanto para um povo inteiro.

Ao longo da história, o Rio Grande do Sul sempre foi um recanto esquecido e não muito valorizado pelo resto do país. Só se lembravam de nós como fornecedores de gado e, claro, como bucha de canhão nas peleias contra os castelhanos. Nunca tivemos uma relação justa e paritária com o governo central, pelo menos não nos moldes dos estados situados mais perto dele, em termos geográficos e políticos. O gaúcho é alguém que, pelo menos uma vez na vida, mesmo secretamente, já se perguntou se é bom negócio fazer parte do Brasil.

Não tenho essa resposta. Mas estive bem perto dela, confesso, durante os noventa minutos daquele sábado de junho em que as seleções brasileira e gaúcha se defrontaram. Na opinião de pessoas sensatas, um jogo desse tipo, que instigava paixões regionalistas, jamais deveria ter sido realizado. Talvez estivessem certos, penso agora. Mas na época, meio século atrás, em meus frágeis e ardentes dezoito anos, deixei-me embriagar pelo ardor farroupilha. Enfurnado no sombrio apartamento térreo do Astro Sul, radinho colado ao ouvido, torci como um doido pela seleção gaúcha.

Sim, como um doido. Só um doido seria capaz de esquecer, durante noventa minutos, que do outro lado estavam as mesmas camisetas amarelas que nos haviam feito chorar de felicidade apenas dois anos antes, na conquista do tricampeonato mundial. Aquele foi o time dos nossos sonhos. O maior de todos. No entanto, agora era preciso destroçá-lo, amassá-lo sob nossas chuteiras, nossas botinas, assim como se amassa a latinha amarela da cerveja Skol antes de jogá-la no lixo. O Brasil, inimigo mortal, ia ter que provar o gosto da Serramalte.

Nosso time era mais do que uma seleção gaúcha. Tinha no centro da área, lado a lado, o chileno Figueroa e o uruguaio Ancheta, dois zagueiros muito superiores aos da seleção brasileira, além do atacante argentino Obberti. Não seria um despropósito considerá-lo uma seleção do Cone Sul. É assim mesmo, como um reino meridional mais amplo, autônomo, passando por cima das fronteiras secas, que o Rio Grande do Sul pensa em si próprio, de vez em quando. Sobretudo no inverno.

No sudeste do Brasil, tem-se a noção de que os gaúchos, assim como os gascões no sudoeste da França, são tipos meio rudes e topetudos. Não sei se essas seriam as palavras exatas. Mais rígidos, sem dúvida, como já frisei, e também mais diretos. No Sul, em caso de dúvida, optamos por dizer abertamente, na bucha, aquilo que as pessoas no centro do país preferem dar a entender por um eufemismo ou uma atitude esquiva.

A gramática da metrópole é outra. Talvez por causa do ritmo da vida. Em São Paulo, principalmente nas relações profissionais, a omissão da resposta é postura aceitável, não deveria ser considerada uma descortesia. Não se dá retorno algum, em vez de uma resposta negativa. No Sul, ao contrário, a franqueza é (ou era) de praxe. Trata-se de uma maneira de honrar o interlocutor. Talvez uma forma sulista de afeto. Senti falta disso, quando recém-chegado em São Paulo.

Cheguei também um pouco ressabiado em relação às mulheres. Entre meus amigos de adolescência em Rio Grande, que também moravam nas proximidades do canto sudoeste da Praça Tamandaré, eu havia sido o primeiro a me iniciar na vida sexual, tirando o lacre aos quatorze anos, se não me falha a memória. Na vida afetiva, em contrapartida, eu era o lanterninha da turma. Aos dezoito anos, era o único entre eles que jamais havia tido uma namorada. Nem mesmo uma namoradinha “de portão”, se me permite usar essa expressão arcaica, porém simpática.

Não creio que eu estivesse entre os sujeitos mais feios da cidade, mas talvez entre os mais tímidos. Sentia-me no mato sem cachorro, isto é, sem namorada, porque não gostava de dançar. Aliás, não sabia. Às vezes, me arriscava a entrar nos salões de dança apenas por obrigação, e ali me sentia tão pouco à vontade quanto um crocodilo numa loja de cristais. Em geral, a guria me dispensava logo após a primeira música, fato que eu encarava nem tanto como um demérito, mas antes como um alívio, enquanto via a parceira pisoteada se afastar de mim lacrimejando ou até manquitolando.

 Tornei-me especialista em lamber minhas próprias feridas por meio de um falso desdém. Cada vez que levava uma invertida dessas, dizia para mim mesmo que aquelas gurias provincianas nem eram lá grande coisa, só se interessavam por assuntos locais e canções românticas. Talvez fosse verdade, mas não uma verdade absoluta. Havia aquelas que fugiam à regra, mas não eram muitas, e pareciam fora do alcance de um sujeito que não soubesse dançar. Na província, bem mais do que na metrópole, muros invisíveis separam as pessoas que frequentam os mesmos locais. Qualquer um os enxerga. Um tímido é capaz de enxergá-los até quando não existem.

Vi tudo isso desaparecer como num passe de mágica, quando vim para São Paulo. Estando no ambiente arejado de uma faculdade de comunicações sociais, em que se discutiam ideias, logo me dei conta de que ali não tinha a menor importância saber dançar ou cumprir protocolos burgueses. Mesmo um trapalhão podia sonhar em ter certo sucesso, ao ciscar junto às moças, se fosse capaz de se mover entre copos de cerveja e sustentar conversas intelectualizadas. Era tudo o que eu queria. Junto a uma mulher bonita, independente, cheia de ideias, já dava para encarar até mesmo uma Skol.

Encantei-me com as feministas. Tão resolutas, tão opinativas, tão informadas. Sabiam tudo sobre orgasmo. Sabiam como e quando a ditadura dos milicos iria por fim desmoronar. Sabiam quais filmes estavam por entrar em cartaz no Bijou e no Belas Artes. Nomeavam diretores de cinema que um gascão gaúcho como eu, matraqueado em eletrotécnica, tinha de anotar em guardanapos para não esquecer.

Mulheres do balacobaco. Falavam de livros e escritores importantes, tudo assim ao natural, quase em tom de intimidade. Eram capazes de citar os nomes de todos os modernistas, de Guilherme de Almeida a Mário de Andrade, mais rápido até do que eu, se fosse o caso, estaria disposto a recitar a escalação do Internacional, de Schneider a Escurinho.

Era por essas mulheres que eu, ao chegar do Sul, tendo cometido por lá tantas atrocidades nos salões de baile, trazendo comigo a solidão como resultado da incompetência, estava agora disposto a me apaixonar. Foi por essas mulheres que me apaixonei. Com o tempo, porém, também em relação ao sexo oposto, me dei conta de que as coisas na metrópole nem sempre eram o que pareciam ser. Quando menos se espera, mesmo em meio ao balacobaco, entre olhares que se devoram na mesa mais efervescente do Riviera, pode emergir uma debutante do fundo da alma de uma feminista. Todo cuidado é pouco. Nada de baixar a guarda. Diante de um discurso inflamado, as primeiras vítimas são sempre os trouxas. Eu era um deles.

Quando se chega a uma grande cidade, vindo de uma cidade pequena, é como se recebêssemos um binóculo de presente. Aprendemos a usá-lo de dois modos. Ao olhar pela extremidade menor do instrumento, vemos aumentadas algumas coisas do nosso torrão natal que não éramos capazes de enxergar antes, quando estávamos lá. No momento seguinte, viramos ao contrário os tubos do binóculo, olhando então pelos bocais mais largos. Vemos então o nosso mundo anterior distante no espaço e no tempo, como se não nos dissesse respeito. Em ambos os casos, tudo ganha nitidez.  As coisas e as pessoas revelam primeiro sua alma, para depois revelar sua forma.

A política é apenas forma, mas uma forma capaz de embriagar a alma. Em meus primeiros tempos em São Paulo, tive a oportunidade de me mover em três diferentes grupos de pessoas. O primeiro formado pelos colegas da faculdade, bezerros da ditadura como eu próprio. O segundo, por colegas de trabalho com alguns anos a mais, que tinham vivido a época das passeatas contra o regime e depois ingressaram em organizações clandestinas. O terceiro, por boêmios entre trinta de quarenta anos, cujos anos de formação haviam transcorrido antes do golpe de 1964. Foi altamente proveitoso, para mim, apreciar os fatos nacionais e a vida na metrópole a partir de pontos de vista diferentes, conforme o grau de maturidade dessas pessoas.

Esses três grupos, contudo, tinham um traço comum. Eram formados por gente que se considerava de esquerda, em suas diversas vertentes. Embora muitas dessas pessoas fossem por demais sectárias, opiniáticas, e após algumas cervejas falassem mais que o Homem da Cobra, eram certamente cultas, inteligentes, sintonizadas nos temas importantes daquele momento. Por essa razão, identifiquei-me naturalmente com suas ideias políticas, porém naquele processo, vejo agora, havia de minha parte mais fascínio que reflexão. Atribuí uma superioridade moral e intelectual da esquerda sobre a direita, o que é um equívoco. E outro equívoco, talvez, foi deixar o primeiro se transformar em desilusão.

Sempre me coloquei na posição de um livre-pensador, flertando às vezes com o niilismo, moléstia autoimune que consegui manter sob controle. Jamais me convidaram para fazer parte de qualquer organização política. Fizeram bem. Talvez me vissem, com olhar indulgente, como um patriota equivocado. Em linhas gerais, eu me considerava um sujeito de esquerda, por afinidade intelectual e pelo meu modo de vida, mas tinha também posições que podiam ir desde um anarquismo difuso até o campo conservador, sem chegar a ser um reacionário. Talvez eu fosse algo do tipo de um socialista lisérgico. Mas não me peçam para explicar o que seja isso.

Outra coisa que não consigo explicar direito é a alquimia que ocorreu em mim, durante o primeiro ano em São Paulo, quando assisti ao filme Roma, de Fellini. Saí atônito do Belas Artes, como se houvesse acabado de ter uma revelação divina. Mal consegui cruzar a Consolação para ir tomar uns tragos no Riviera.

A partir daquele dia, entre todos os grandes cineastas que passei a curtir e acompanhar, Fellini tornou-se aquele que me fisgou mais fundo. Ele transformara em imagens a trajetória de um rapaz vindo do interior que tenta a vida na cidade grande. O tema não é novo, ao contrário. Mas a meu ver só Fellini conseguiu, ao tratar dele, um perfeito balanço entre a sátira e o lirismo. Aquele era também o meu modo de observar a vida. Eu sempre havia sido um felliniano, só que não sabia disso.

Roma não deixa de ser também uma grande reportagem. Mostra a cidade, como ela funciona, como ela se expressa no cotidiano, tendo como fio condutor o olhar do protagonista. Eu nunca havia visto antes um filme assim. O próprio Fellini, mediante um artifício recursivo, entrava em cena na real condição de cineasta, durante a filmagem de Roma. Era o mesmo efeito do tipo mise en abîme que me instigava na infância, quando eu me detinha a observar a imagem na lata do azeite Carbonell, que se multiplicava em si mesma até o infinito. Aquilo me dava medo. Mas não era só medo. Era um sabor excitante que vinha depois do medo.

No primeiro ano da faculdade, fiz parte de um grupo independente de cinema. Como a estrutura do nosso curso de comunicação social permitia várias opções, a partir do terceiro ano, fiquei tentado a me tornar cineasta, em vez de jornalista. Meu primeiro projeto, pensei, seria o de fazer um filme sobre São Paulo que fosse, ao mesmo tempo, uma reportagem urbana e uma crônica autobiográfica, mais ou menos nos moldes de Roma, de Fellini.

Esse filme que jamais filmei haveria de ter cenas pitorescas rodadas no centro de São Paulo. Por exemplo, a aglomeração de transeuntes diante das vitrines das lojas de eletrodomésticos que, no começo de 1972, exibiam os primeiros televisores em cores. Depois vários aparelhos assim foram instalados na rodoviária da Luz. Foi algo espetacular. Atraía até uma curiosa cepa de personagens flutuantes, que não iam viajar para lugar algum, apenas passar a tarde de braços cruzados diante das imagens coloridas.

Desde que eu perambulava pelas ruas de Rio Grande, na ociosidade da adolescência, uma das minhas ocupações era observar os desocupados. Esses tipos anônimos que, no jargão jornalístico, são referidos como populares ou curiosos. Neles pode restar algo que já perdemos. Sei que isso é besteira. Mas é uma besteira que, creio eu, compartilhei com Fellini.

Os desocupados da metrópole se pareciam muito com aqueles que, em Rio Grande, se detinham ao lado do coreto da Praça Tamandaré em torno de um camelô pernambucano. O Homem da Cobra, como era conhecido, falava sem parar, que nem um locutor de futebol, porém apregoando beberagens feitas com plantas amazônicas para eliminar as lombrigas. Gostávamos de suas modulações de voz, de seu cativante sotaque nordestino.

Em formação circular, ouvíamos aquela ladainha mil vezes, hipnotizados pelo olhar de uma enorme e sonolenta jiboia. De tanto em tanto, o camelô pendurava o animal ao pescoço de alguém da plateia. As gurias tímidas se escondiam atrás das amigas, com medo de que o Homem da Cobra de repente viesse na direção delas.

De repente, todo o meu passado rio-grandino se tornou felliniano. Se não virei cineasta, foi em parte por achar que, sendo jornalista, poderia contribuir para o fim da ditadura. Ingenuidade pura. O regime militar em breve começaria a desinflar naturalmente, sem precisar ser espetado pelo meu modesto alfinete. Além disso, o jornalismo combativo, de denúncia, jamais me atraiu muito. Preferia retratar tipos pitorescos e atemporais, como o Homem da Cobra, do que figuras da cena nacional, entrincheiradas em sua hipocrisia.

Meu filme sobre São Paulo, aquele mesmo que jamais filmei, resultou quinze anos mais tarde no romance Sonata da última cidade. Ali está, ao menos em intenção, o que Fellini fez em Roma: uma reportagem romanceada, quase circense, conduzida pelo olhar de alguém que vem de longe.

Se penso hoje nos cinquenta anos decorridos desde que vim morar em São Paulo, deparo com duas noções de tempo que parecem contraditórias. Primeira: como tudo isso passou tão rápido! Segunda: quanta coisa se encaixou aí dentro! Pessoas, lugares, maneiras de pensar. Parece que vivi cinco séculos, e não meio, desde que vim para cá.

O tempo registrado e o tempo vivido – cronos e kairós, respectivamente, para os antigos gregos – são coisas de naturezas distintas. Noventa minutos foi o quanto durou a partida disputada em junho de 1972, no Beira-Rio, entre a seleção gaúcha e a seleção brasileira. Placar final, três a três. Dentro de mim, no entanto, aquele jogo continua em andamento até hoje. E ainda empatado, meio século depois.