sábado, 11 de dezembro de 2021

AS DORES GERAES

                  

                      Ao vasculhar a prateleira dos discos, dela retiro ao acaso o elepê Geraes, de Milton Nascimento, que me foi presenteado por uma colega de trabalho em dezembro de 1990. O nome dela sobressai na capa, impresso em alto relevo com rotulador manual em fita vinílica preta, uma dessas coisas que sobrevivem porque ninguém se lembra que ainda existem. O detalhe demonstra que o disco foi tirado de uma discoteca pessoal, o que lhe confere um valor extra, além da dedicatória em primorosa caligrafia.

Geraes saiu em dezembro de 1976. Foi um lançamento importante no âmbito da MPB. Na época, eu morava fora do país, e só por isso não havia adquirido o disco. Uma lacuna em minha discoteca. O inventivo Milton, como Egberto Gismonti, era um dos meus artistas prediletos durante a fase em que fui um devoto da MPB. A ditadura parecia virar mingau, lá fora, quando se podia chegar em casa, tirar os sapatos e colocar para girar na vitrola um disco novo de Milton.

Um fator pessoal foi a razão de minha colega ter me presenteado, já fora de época, o elepê Geraes. Na foto interna do álbum, entre uma multidão de jovens, aparece a figura ensimesmada de um indivíduo de 20 anos com uma camiseta preta e a alça da bolsa de couro cruzada sabre o peito, o qual, acreditem, é este mesmo que hoje, beirando os 70, persiste no vício de escrever e, mais grave, não poupa os leitores de suas nostalgias.

É comum termos fotos de grupo em que aparecemos entre pessoas conhecidas ou associáveis a uma circunstância, mesmo que não lembremos seus nomes. Menos comum, creio, são imagens em que nos surpreendemos no meio de gente anônima, reunida em local público, sem que ninguém soubesse que estava sendo fotografado a distância.

Vale lembrar aos jovens que, antes de existirem telefones celulares, não se fotografava a torto e a direito por aí, que nem hoje. Mesmo quem tivesse uma câmara só saía com ela em situações específicas, como se faz com o guarda-chuva. A menos, claro, a fotografia fosse um hobby ou um ofício.

Este último caso se aplica ao autor da foto interna do elepê Geraes. Trata-se do fotógrafo e artista plástico Carlos da Silva Assunção Filho (1950-2019), conhecido como Cafi. Pernambucano radicado no Rio, ele assinou o projeto gráfico de mais de três centenas de discos da MPB. Foi um dos grandes, em sua especialidade. Em certos casos, as embalagens cartonadas que protegiam os vinis chegavam a ser sofisticadas a ponto de funcionar como complemento do conceito musical utilizado pelo compositor. Degustar os sons e as imagens de um novo disco, sem desgrudar os olhos da capa, fazia parte do ritual de ouvir música.

Geraes foi um caso exemplar. Curiosamente, porém, Cafi optou por usar na parte interna desse álbum uma foto feita por ele mesmo dois anos antes, em 1974, durante o concerto em que Milton interpretava as músicas contidas no disco anterior, o magistral Milagre dos peixes. Pouca gente, suponho, deve ter percebido esse descompasso temporal entre a imagem e o conteúdo do disco. Descobri isso porque a situação retratada, até certo ponto, me dizia respeito. Não recordo como nem quando me reconheci (ou alguém me reconheceu) nessa foto.

Vejo agora aquele cara de camiseta preta, em pose resoluta, para não dizer arrogante, e até preferia que não fosse eu mesmo. Tenho as palmas das mãos parcialmente enfiadas na cintura da calça, como um caubói pronto para um duelo. Posso recordar que essa foi uma das minhas manias passageiras da juventude, como a de não usar cinto, que então me parecia um hábito de homens já aprisionados no mercado de trabalho, que andavam com crachás pendurados no pescoço e carregavam suas coisas em uma pasta profissional.

Nós, os jovens, preferíamos usar bolsas penduradas no ombro. Era uma novidade atrevida, tida por alguns como afeminada, assim como acontecera na década anterior como as cabeleiras masculinas. A foto interna de Geraes, aliás, é uma avalanche de cabelos ao sol. Fomos fotografados por Cafi durante a tarde radiante e ventosa de um domingo de maio.

O show de Milton, acompanhado pelo grupo Som Imaginário, de Wagner Tiso, provavelmente ainda não havia começado. Deduzo-o isso pelos gestos e fisionomias das pessoas. Nossos olhares não se concentram sobre um único ponto à frente, que seria o palco, naturalmente, se os músicos já estivessem tocando.

Uma moça tosse, um rapaz acende o cigarro, muitos ajeitam os cabelos, remexem a barba, bocejam, sustentam o queixo à espera de algo, alguém suspende um bebê no ar, namorados se entrelaçam, aquele lá coça dentro da orelha com o dedo indicador, não poucos de nós têm os braços cruzados ou se protegem do sol com a palma da mão ou um jornal dobrado. Esperamos por Milton.

Mas esperamos também – percebo agora – para saber qual haverá de ser o nosso lugar no mundo. Ali está, em ponto de bala, a geração nascida na década de 1950. Na Europa, seríamos considerados baby boomers, em referência à explosão de natalidade ocorrida após a Segunda Guerra Mundial. Mas isso não se aplica ao Brasil, pois nossos pais a vivenciaram apenas de modo indireto. Ninguém deixou de procriar por ter a casa bombardeada.

Se os nossos anos 1950 foram “dourados”, como se costuma dizer, já oxidaram na década seguinte por conta do golpe militar. Enquanto o Hemisfério Norte entrava em um ciclo virtuoso, por aqui mergulhávamos no obscurantismo. Minha geração fez faculdade na pior fase da ditadura. Olho para essa foto e recordo muito bem como era aquilo. O cara ao lado sempre podia ser um policial – um policial de cabelo comprido e bolsa a tiracolo, como qualquer um de nós.

No álbum de Milton que tenho agora aberto sobre a mesa, vejo os rostos mais ou menos quinhentos jovens de idade semelhante à minha, na época, em uma área impressa equivalente à de um monitor de 27 polegadas. Estamos agrupados no barranco de um bosque de eucaliptos da Cidade Universitária. Dá para ver alguns troncos e ramagens.

Na foto do disco, o Brasil é branco. Incrível: não vejo um único negro na plateia de um show gratuito, a céu aberto, o que invalidaria qualquer explicação baseada na condição social. Segregação “ao natural”, portanto. E mais incrível ainda: o show era de um artista negro. Se Milton guardasse alguma mágoa racial, bem que poderia, como Miles Davis, se apresentar de costas para o público. Não fez isso. De frente para nós, cantou o que queríamos e precisávamos ouvir: “Eu apenas sou um a mais / a falar dessa dor / A nossa dor”.

A nossa dor era viver os anos preciosos da juventude em um país governado a toques de corneta, na contramão do mundo civilizado. A redemocratização foi uma vitória concreta, do ponto de vista político, porém vazia, do ponto de vista civilizatório. Passadas mais de três décadas, após termos tido governos civis e democráticos de diversos tipos, continuamos a viver em um país onde os abismos sociais nos condenam à insanidade. < E essa, agora?; perguntamos a nós mesmos, pasmos, ao ver emergir o monstro no Lago Paranoá.

Nossa geração ficou devendo, como as anteriores. Tocamos nosso barco, vendemos nosso peixe, entramos e saímos do mundo do trabalho, mas durante todo o tempo em que estivemos em ação não fomos capazes de transformar o Brasil no que ele poderia ser. Vai continuar a poder ser. Parece que nos habituamos a ser uma hipótese.

Digo isso para tentar esboçar o possível estado de espírito dos sobreviventes desses quinhentos sonhadores que aparecem na foto do disco, entre os quais me incluo. Não seria justo, apenas com base em nossas dores geraes, agora ampliadas pela artrite, dizer que fracassamos. Se o Brasil não ficou nem um pouco parecido com o país que desejávamos ter, após nossos tantos anos de labuta, ainda assim formos uma geração privilegiada, em sentido mais amplo. Em nossos anos de formação e atuação, fomos generosamente contemplados pelos ventos que sopraram pelo mundo.

Saímos da casca a tempo de usufruir os últimos lampejos da contracultura, crescemos decifrando os Beatles e captamos a mensagem essencial de Woodstock. Absorver esses valores iconoclastas, porém pacifistas, fosse para adotá-los ou confrontá-los, ampliou nosso repertório de ideias. Largamos a mamadeira para mamar no rock, que foi, sob o aspecto comportamental, ou mesmo existencial, uma nova versão do iluminismo.

Nos versos de Revolution, John Lennon diz que é pura perda de tempo um indivíduo sair à rua exibindo cartazes com a cara de Mao Tsé-Tung (ou de quem quer que seja, acrescento) se não for capaz de transformar, antes de mais nada, a si próprio. Não dá para mudar o sistema na marra. Pete Townshend, guitarrista e compositor do grupo inglês The Who, explica a coisa assim: “Se grita pedindo verdade em vez de socorro / Se compromete-se com uma coragem que não está seguro de possuir / Se levanta-se para apontar uma injustiça / mas não pede sangue para redimi-la / Então é rock-and-roll.

Na geração anterior à nossa, mais militante, mais programática, mais disposta a acreditar que questões sociais e questões humanas são farinha do mesmo saco, poucos se mostraram dispostos a admitir esse equívoco. No entanto, a contracultura não disse nada tão novo. Apenas atualizou e difundiu – espalhafatosamente – o que os sábios de diversas épocas já haviam dito antes: para superar um problema criado por nós (o Brasil, por exemplo) é preciso mudar o jeito de pensar que tínhamos na época em que o criamos.

Acho que isso já estava presente, de forma embrionária, na cabeça desses quinhentos jovens nascidos nos anos 1950 e captados pela lente de Cafi nessa tarde de maio de 1974, durante o show Milagre dos peixes. Gostaria de saber onde anda esse pessoal todo – e o que pensa de tudo o que nos aconteceu desde então. Mas não saberei. Fecho a capa do elepê Geraes e o enfio de volta entre os outros vinis. Foi um belo presente da minha antiga colega de trabalho, que também perdi de vista.

sábado, 4 de setembro de 2021

VENEZA SUBMERSA


                 Nesta ainda pandêmica quase primavera de 2021, lanço a versão digital do romance veneziano Viagem ao pavio da vela – Diálogos com Marco Polo. Faz duas décadas desde seu lançamento em formato impresso, na primavera de 2001, o ano fatídico da derrubada das torres gêmeas em Nova York. Entre todos os meus livros, esse é o que mais me satisfez. Não sei se ficou bom. Ficou como tinha que ficar. Nele, cada palavra, para não dizer cada vírgula, foi colocada com convicção.

Os elementos propulsores do projeto de Viagem ao pavio da vela foram dois: um desejo antigo e uma descoberta instigante. O desejo era o de escrever sobre Veneza, cidade por si quase ficcional, que dá a impressão de flutuar entre o estado sólido e o estado líquido. Ela me enfeitiçou desde a primeira vez em que lá cheguei, em 1976, sozinho, mochila nas costas, câmara a tiracolo, coturnos de paraquedista. Em minha obstinada juventude de viajante solitário, lamentei não ter com quem compartilhar tanta beleza. Senti a solidão como um desperdício. Isso só me aconteceu em Veneza.

O segundo gatilho do livro, mais concreto, foi a surpresa de constatar que o nome do viajante veneziano Marco Polo não é sequer citado por Dante Alighieri na Divina Comédia. Em sua obra máxima, vale lembrar, o poeta toscano arrola um sem-número de personalidades de diferentes épocas e as distribui, segundo seus méritos, nas três instâncias da vida eterna previstas na doutrina cristã – Inferno, Purgatório e Paraíso. Marco Polo, o célebre Marco Polo, não aparecia em nenhuma delas.

Ah, essa não! Onde Dante andaria com a cabeça, ao compor sua obra-prima, para deixar de fora dela o homem que empreendera uma peregrinação tão ousada e monumental, no mundo dos vivos, como aquela que ele próprio, como poeta, havia se aventurado a fazer no mundo dos mortos? Fiquei cismado com essa omissão. Data venia, eu não ia deixar barato. Decidi que me cabia a missão de introduzir Marco Polo na Divina Comédia, mesmo com um pequeno atraso de setecentos anos.

A partir dessa ideia, o projeto começou a se delinear. Eu já podia sentir seu campo gravitacional. Minhas ideias convergiam em impulso rápido, como fazem os peixes quando a gente joga um biscoito no lago. A partir daí, a julgar por minhas experiências anteriores, o enredo da história haveria de surgir naturalmente. Não deu outra. Porém, eu ainda não tinha o mais importante: o foco narrativo. Em um romance, esse é o calcanhar de aquiles.

A linguagem a ser utilizada no livro, pensei, deveria me deixar confortável para transitar entre a fábula e o ensaio filosófico. Só que eu não tinha ideia do que isso pudesse ser, na prática. Além disso, sentia que uma cidade tão especial, como Veneza, merecia palavras especiais. Nem mesmo o vocabulário que eu tinha parecia suficiente para dar conta do recado.

Um fato trivial me ajudou a encontrar o caminho. Na época, final da década de 1990, minha filha frequentava uma pré-escola próxima ao apartamento onde morávamos, no bairro de Pinheiros. Uma tarde, Laura voltou amuada para casa. Perguntei a ela: > Tudo bem na escolinha? < Mais ou menos... > Mais ou menos por quê? < Ando meio desengostada.

Fiquei curioso. Sondei-a para saber se desengostada era um desconforto dela própria em relação aos colegas da pré-escola ou vice-versa, se estaria levando um gelo dos demais. Descobri que se tratava das duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, um melindre de mão dupla. Perguntei-me se haveria no dicionário alguma palavra que expressasse exatamente a mesma coisa. Não me ocorreu nenhuma, naquele momento. Portanto, se desengostada não existia, poderia passar a existir para preencher uma lacuna. Com a vantagem de ter um som compatível com a língua que falamos no Brasil.

Resolvi fazer um teste. Eu era repórter especial da então recém-lançada revista Época. Naquele momento, outubro de 1998, dedicava-me a uma matéria sobre o trabalho nos canaviais do interior paulista. Dei um jeito de inserir no texto a palavra desengostada, não sem antes preparar o contexto, para que ela se apresentasse ao leitor de forma natural e autoexplicativa. Achei que não ia dar certo, mas tive uma surpresa. A palavra espúria passou pelo crivo de uma meia dúzia de profissionais da redação, entre revisores, preparadores de texto e o próprio editor. Escapou até do olhar clínico e minucioso do nosso diretor, José Roberto Nassar, e foi publicada na revista.

Entre triunfante e envergonhado, amoitei-me. O sucesso dessa molecagem, embora eu fosse um quarentão, nada ficou devendo ao prazer que sentíamos na infância ao disparar pela calçada após apertar a campainha das casas. Mas a experiência foi além de um simples divertimento. Ela confirmava aquilo que me interessava confirmar: para uma palavra funcionar bem, não precisa estar no dicionário, mas sim em sintonia com o espírito da língua.

Em Viagem ao pavio da vela, senti-me tentado a empregar uma série de palavras inventadas que me ocorriam de repente, sem compromisso com nada, como ocorrem as coisas na cabeça das crianças. E também outros termos de antanho que passaram a saltar fora do baú da memória, como o jargão da época em que jogávamos bolinhas de gude no chão de terra da Praça Tamandaré. Também garimpei no português lusitano alguns termos sugestivos, engraçados, muitas vezes arcaicos, sem me preocupar se estivessem em desuso até mesmo em Portugal.

Eu queria produzir um livro que tivesse timbres internos específicos, a começar pela estranheza de algumas palavras, mas uma estranheza sugestiva, muito bem calculada, que no ato da leitura pudesse ser associada a certa situação. Meu desejo era propiciar ao leitor algo semelhante à sensação de osmose que tive ao ouvir de minha filha a palavra desengostada, depois usada na revista, onde a osmose prosseguiu, suponho.

No livro que eu tinha em mente escrever, o leitor não deveria estar, o tempo todo, na dependência do exato significado de cada uma das palavras escritas. A melodia também tem a sua graça. Na adolescência, às voltas com as primeiras canções dos Beatles, eu me comprazia em ouvi-las sem entender bulhufas. Assimilava os versos não como palavras, mas como extensões da música. Em Viagem ao pavio da vela, escrevi muitas frases como se fossem sequências de acordes. Um jeito de bancar o músico que nunca fui, mas para o bem da música, sem dúvida alguma.

 Além desse jogo de sonoridades, outros fatores colaboraram para tornar esse projeto uma empreitada envolvente e, por vezes, divertida. Tive que ler e pesquisar muito sobre Veneza, seus caminhos, seus atalhos, seus recantos escondidos, seus grandes e pequenos lábios. Com a meticulosidade de um ginecologista, concentrei minha atenção sobre essa cidade lúbrica e lasciva. “Úmida vulva da Europa”, disse dela o renomado poeta. E se aqui tomo a liberdade de evocar Apollinaire, não posso esquecer o nosso insigne Carlos Zéfiro, autor dos breves e abrasadores “catecismos” eróticos que nos eram discretamente franqueados nas barbearias. Se ele houvesse vivido em Veneza, imagino, teria criado a Divina Comédia da pornografia universal.

Pesquisei sobre Veneza de modo obsessivo. A certa altura, ao andar pelas ruas de São Paulo, passei a deparar, aqui e acolá, com os principais elementos evocativos da cidade. O leão alado, as gôndolas, a ponte do Rialto, vistas da Piazza San Marco, do Grande Canal, cristais de Murano, nomes como Ca'd'Oro e outros desse tipo. Isso acontecia de maneira repetida e repentina. Nas situações mais improváveis, pronto, lá estava Veneza, de novo, a me chamar de volta para ela.

Era como a sensação do déjà-vu. Com uma vantagem: mesmo sendo imprevista, era também permanente. Tinha, por assim dizer, uma base real. Veneza surgia a todo momento, incrustada em São Paulo, em uma fachada comercial, um anúncio, um logotipo, uma embalagem, uma etiqueta, enfim, em algo concreto que estava diante de mim e continuaria na lembrança como uma nostalgia, sem a fugacidade do déjà-vu.

O fenômeno devia ter algum nome na psicologia, mas esse lado da coisa não me importava muito. O máximo que eu conseguia imaginar, por beber muito em Jung, naquela época, era algum mecanismo de sincronicidade. Mas isso também era secundário. A verdade é que aqueles pequenos sustos me divertiam, me estimulavam, como se indicassem um caminho. E esse caminho apontava para Veneza.

Planejei com bastante antecedência uma viagem familiar à Itália. Consegui negociar por fax, sim, o neolítico fax, preços aceitáveis com o dono da minha já conhecida Locanda Remedio, em Veneza, para lá passarmos o então chamado “réveillon do milênio”. Empenhei nisso, para o meu bolso, uma grana preta. Se tivesse juízo, deveria ter destinado esse dinheiro à aquisição do imóvel residencial que eu ainda não tinha, ao contrário dos meus amigos, e já estava mais do que na hora de cuidar disso. Mas o chamado de Veneza soou mais alto que o bom senso. Na outra virada de milênio, seria tarde demais.

Olhando em retrospecto, nem acho que fiz besteira. Foi grande minha satisfação pessoal em poder levar minha filha, aos seis anos de idade, a uma cidade que é como uma versão real da fantasia humana. Levando-a a Veneza, quem sabe, me penitenciei pelo crime hediondo de jamais me dispor a tirar do bolso nem um mísero dólar furado para enviá-la à Disneylândia, tal como costuma fazer a classe média à qual pertenço, sem emoção. 

Eu sabia muito bem que Laura, com aquela pouca idade, não poderia compreender o que significava estar em Veneza, e não em outro lugar, em plena virada do milênio, para celebrar a passagem do tempo em uma cidade que está acima do tempo. Acreditava, porém, que a simples visão das cascatas luminosas sobre as águas do Canal Grande haveria de render um desses flashes que permanecem na memória para toda a vida.  

As crianças de 1910 viram no céu o cometa Halley. Em Itabira, um menino que por acaso se chamava Carlos Drummond de Andrade mais tarde recordaria aquilo como sendo “uma escultura de luz, esguia e estelar, que fosforeja sobre a infância inteira”. Talvez algo desse tipo seja mais relevante, a longo prazo, do que a lembrança das orelhas do Mickey. Com todo o respeito.

Mas minto, minto em prosa e verso, e sem a maestria de Drummond, se eu disser que fui a Veneza por causa de minha filha. Fui então por minha causa? Bem, também isso não seria exato. Fui a Veneza por causa de Veneza. E posso dizer isso melhor ainda: fui pela causa de Veneza.  Sim, uma causa, um empreendimento devocional, o ato voluntário de alguém que dedica seus esforços a algo acima de si próprio, que não tem nome, nem deve tê-lo.

Traduzir Veneza em palavras, inventando palavras intraduzíveis, já que não sou capaz de compor uma sinfonia, tornou-se para mim uma espécie de missão. Eu me sentiria em falta com o próprio ofício da escrita se passasse a vida a escrever sobre cidades (e foi o que fiz, no fim das contas) sem dedicar um livro à mais fantástica de todas elas.

 No entanto, como pesquisa de campo, Veneza foi um furo n’água. Encontrei muito pouco sobre Marco Polo no acervo da biblioteca local. Obviedades. O material que eu já havia captado antes, em São Paulo, dava de dez no que consegui por lá. Os funcionários nem sabiam me dizer ao certo onde ficava a casa de Marco Polo.

O pessoal do serviço de turismo tampouco parecia muito sintonizado com o tema:  < Ah, sim, Marco Polo... > Ele mesmo. < Vejamos... Marco Polo... Marco Polo... > Algum problema com ele? < Não, absolutamente. > Ótimo. < Preste atenção, o senhor vai por aqui, dobra ali, atravessa a ponte, dobra à esquerda, aí tem outra ponte... > Calma, essa outra ponte... < Essa, o senhor não atravessa. > Ok, não atravesso. < Vira à esquerda e segue em frente. > Sigo em frente. < Aí vai ver uma tabacaria. > Uma tabacaria. < Sim, uma tabacaria bem em frente à ponte. Outra ponte. > Entendi. < Ali o senhor pergunta. > Na ponte ou na tabacaria? < Na tabacaria. > Mas pergunto o que nessa tabacaria? < Ora, o senhor pergunta onde fica a casa de Marco Polo. Não é isso o que o senhor quer saber?

Enveredei por uma sequência de pontes, pórticos e canais, tentando achar o caminho certo entre as complicadas reentrâncias de Veneza. A “vulva úmida da Europa” agora me dava uma canseira. Acabei por chegar aonde queria. Porém ali, onde esperava encontrar um museu, um memorial, coisa que o valha, deparei com um prédio de fachada em estado lastimável, com sacos de lixo empilhados à frente. Com a breca! Então aquela era a casa que teria sido de Marco Polo.

Minha decepção haveria de ser compensada, mais tarde, com uma bela surpresa. Ela ocorreu justamente no interior do estabelecimento em que estávamos instalados. A Locanda Remedio era um hotel três estrelas bastante charmoso, mas não sofisticado, nas imediações do palácio ducal. Ocupava um prédio histórico recheado de tapetes e móveis de época que despertavam interesse, mesmo estando um pouco desgastados pelo tempo. Além da ótima localização, poucos minutos a pé da Piazza San Marco, tinha preços mais ou menos acessíveis, talvez por conta de sua decadência, mesmo com classe, como é comum na Itália.

Eu curtia isso. Já havia me hospedado ali antes. Dessa vez, porém, o que me chamou a atenção foi a figura compenetrada do porteiro noturno. Nas horas tranquilas, depois da meia-noite, o rapaz não tirava os olhos de uma brochura com texto corrido que nada tinha a ver, aparentemente, com o serviço na portaria do hotel.

Puxei assunto com ele, meio como quem não quer nada, tal como aprendi em tantos anos de trabalho no jornalismo. Fiquei sabendo que o rapaz era ator. Trabalhava à noite, no hotel, porque naquele período tinha sossego para estudar os textos de seus trabalhos no palco. Conversa vai, conversa vem, descobri que, anos antes, em uma série televisiva, ele já havia interpretado... quem mesmo? Marco Polo!

Bah! Aquilo me caía do céu, de graça! Sim, o porteiro noturno da Locanda Remedio tinha muito a me dizer sobre seu personagem, que seria também o protagonista de meu livro. E mais que isso: esse ator era um especialista em Veneza. Era capaz de comentar qualquer um dos muitos filmes rodados na cidade. Conhecia o toque dos sinos de cada uma das igrejas. Em suma, sem precisar nem sair do hotel, eu havia encontrado o meu Marco Polo. Em carne e osso.

Entre nós logo se estabeleceu uma camaradagem. Ele queria saber do Brasil. E eu, claro, de Veneza. Conversamos bastante, em diversas noites, sempre ali, na portaria do hotel, durante as primeiras horas da madrugada. Essa circunstância inesperada forneceu-me a base narrativa para o romance que eu pretendia escrever.

Não por acaso, o título provisório do livro chegou a ser Diálogos com Marco Polo, que virou subtítulo, após eu consultar a opinião de amigos. O título definitivo, Viagem ao pavio da vela, pareceu-me mais instigante e, sobretudo, mais adequado. Contém uma alusão direta ao fato de que as noites, sejam elas mil e uma ou meia dúzia, são sempre propícias à conversação.

E tem outra. Uma vela é algo que me encanta. Conquanto seja hoje um objeto banal, barato, relegado às prateleiras inferiores nos supermercados, vejo-o como um símbolo da inteligência humana. Pergunto-me quem teria tido esse lampejo, na mais profunda escuridão dos tempos, que resultou num artefato para manter a chama em suspensão, com segurança e portabilidade, por um período de tempo muito maior que o fogo levaria para queimar um barbante, se não fosse contido pelo próprio suporte: apenas um cilindro de cera.

A cera é o material perfeito, nesse caso. Firme como o mármore, sem ser duro, mas não tão mole quanto a manteiga, que amolece ao sol. A cera deixa-se consumir pelo fogo, como convém, mas lhe impõe seu ritmo. Em geral, ocorre o contrário. O fogo devora. A cera consegue refreá-lo, derretendo de uma maneira calma, progressiva, a ponto de nos permitir marcar o tempo, como a areia da ampulheta. A vela é tão genial que nos parece óbvia.

Em meados do século passado, em minha cidade, no Sul, frequentes e prolongados cortes de energia impunham às famílias de todas as classes sociais uma intensa convivência com velas acesas. De súbito, todos nós, papa-areias, nos transformávamos em habitantes das cavernas. À nossa volta, apenas trevas, monstros, vampiros. Até que alguém riscava um fósforo.

À luz da vela, eu podia perceber muito bem, como criança, que os adultos falavam e agiam de outro modo, um modo mais macio e reflexivo. Diziam coisas que talvez não se permitissem dizer, caso as lâmpadas estivessem acesas. Eu ouvia essas coisas até certo ponto. Depois me deixava hipnotizar pela chama da vela, sua base azul, o tênue e instável halo marrom, a ponta amarela e imóvel que de repente tremia, como o cão se coça. Aquilo, para mim, era um enigma.

Ainda hoje acendo velas. É mais emocionante, convenhamos, riscar um fósforo do que digitar uma senha, por exemplo. Mas não é por isso que acendo velas, e ainda bem, devo dizer, até porque em nenhum hospício me permitiriam continuar a fazê-lo. Também não é por uma razão mística. Sou agnóstico, um sujeito que aprecia a incerteza como fonte de inspiração. Não aposto nem descarto que possa haver uma forma de consciência muito superior à nossa, sem neurônios, mas apta a estabelecer sinapses, e capaz de se manifestar em objetos que para nós têm grande carga simbólica, como é o caso de uma vela acesa. Ela resume o segredo da obra-prima: um pensamento complexo expresso de maneira simples. Vinte anos atrás, achei (ainda acho) que Viagem ao pavio da vela era um bom título para um livro ambientado em Veneza.

O romance foi publicado no começo de dezembro de 2001. Um conhecido meu, psiquiatra argentino radicado no Rio de Janeiro, me disse que a parte introdutória de Viagem ao pavio da vela, no entender dele, descrevia uma autêntica viagem com LSD. O comentário me causou grande satisfação. Era esse, de fato, o efeito literário que eu havia pretendido obter como ponto de partida da narrativa.

Para escrever o prelúdio, embaralhei um conjunto de sensações e imagens subjetivas para depois, com paciência de ourives, reorganizá-lo de outra forma. O aparente delírio da prosa deveria sugerir um excesso de lucidez. Precisei trabalhar duro para conseguir isso. Eu não tinha na época, como não tenho até hoje (por precaução, não por falta de interesse), uma experiência real com o LSD. Apenas suspeito, às vezes, que minha práxis literária possa ter certo viés lisérgico. De onde saiu isso, fico devendo.

No ano seguinte, 2002, tive a satisfação de assistir a um ator interpretar esse pequeno texto de abertura em um programa televisivo, ao qual me convidaram para falar sobre o livro. Ele o fez de forma magistral. Obteve ali tal intensidade que, ao vê-lo recitar o trabalhoso prelúdio, achei pueril pensar em mim mesmo como sendo o autor daquilo. Senti apenas que nós dois, o ator e eu, em nossos tão diferentes ofícios, éramos os porta-vozes de uma mesma coisa que precisava ser dita.

O livro foi um fracasso comercial. Mas algumas resenhas esparsas exaltaram suas qualidades. Um crítico chegou a qualificar Viagem ao pavio da vela como uma “pequena obra-prima”. Bem, devagar com o andor. Obra-prima é Guerra e paz – y algunas cositas más. Eu não ousaria supor que escrevo nesse nível nem mesmo se estivesse embriagado com o melhor vinho do mundo, ou chapado, vá lá, com o ácido mais esfuziante que inventarem por aí. Disso, tenho certeza. O elogio não me convenceu, mas me consolou. Confete é serotonina. Se não serve à verdade, há de servir à vaidade.

Se nunca escrevi uma obra-prima, algumas vezes tive a sensação de tê-lo feito. Refiro-me ao processo, não ao produto. Em qualquer atividade, talvez se possa experimentar algo parecido a colocar o ponto final em Guerra e Paz ou dar a última pincelada na Mona Lisa. A sensação da obra-prima se oferece a nós quando sentimos ter chegado ao limite da nossa capacidade, sem recuar um milímetro, correndo os riscos necessários, e a solidão sempre à nossa espreita. Não é fácil renunciar ao caminho mais fácil.

Levar adiante esse projeto foi uma experiência ímpar. O livro, em si, não é uma obra-prima. Mas resultou de uma obra-prima, ou seja, seu próprio processo de criação, durante o qual um escritor sem fins lucrativos logrou atingir o seu limite. Entre os livros que me atrevi a publicar, descontando os que lamento ter publicado, Viagem ao pavio da vela é aquele que eu desejaria que fosse apreciado por futuros leitores, mesmo a conta-gotas, como sempre tem sido.

Essa de “futuros leitores”, claro, pode ser uma furada. Ninguém sabe se ainda haverá leitores de livros daqui a três ou quatro décadas. Em 2061, digamos, quando o cometa Halley voltar a se tornar visível para os habitantes da Terra, a literatura já poderá ter se tornado invisível, como a filatelia. E Veneza, uma cidade submersa.

terça-feira, 1 de junho de 2021

TIME REMEMBERED

                 



Na Avenida Ipiranga, em uma tarde de outono, entrei num desses ônibus de tarja laranja que servem a Zona Oeste. No meio da subida da Consolação, em frente ao repaginado Restaurante Sujinho, antigo Bar das Putas, estourou um bate-boca. O estopim foi um adolescente com a camiseta do Corinthians que embarcara no ponto do cemitério. Ao passar na catraca, o cobrador lhe dirigiu um gracejo. Não entendi como, mas a conversa derivou do futebol para a política.

Em voz alta, o cobrador se pôs a elogiar Bolsonaro. Foi prontamente confrontado por uma mulher de meia-idade, com máscara plissada e jeans esburacado, sentada em um dos bancos da parte dianteira do ônibus. Ela também elevou a voz, indignada, mas para achincalhar o presidente. E não perdeu a chance de frisar que, para ela, Lula é e sempre será o salvador da pátria.

O entrevero fez tremer o chassi do possante Mercedes que galgava a encosta do espigão central, aproximando-se da Paulista. E perdurou por boa parte do trajeto do ônibus. Só foi arrefecer no ponto do Shopping Eldorado, onde o embarque de uma leva de novos passageiros inibiu os contendores. Quem conhece São Paulo pode avaliar a duração da briga entre o cobrador e a mulher.

Não acompanhei toda a discussão. Quando percebi que ela ia esquentar, recheada de impropérios, o motorista impotente para apaziguar os ânimos, pus os fones nos ouvidos para me livrar do incômodo. Antes de ouvir o piano de Bill Evans, captei o comentário desolado de um senhor sentado à minha frente. Com a voz abafada sob a máscara preta, de tecido grosso, que lhe cobria o rosto até a altura do topo do nariz, ele sentenciou: < Entre o Lula e o Bolsonaro, a diferença é que nem entre o Toddy e o Nescau.

Foi a última coisa que ouvi durante a viagem. Depois disso, meus ouvidos foram anestesiados pelos acordes de Bill Evans. Mesmo assim, continuei a prestar atenção aos gestos agitados dos passageiros que se digladiavam, e também aos olhares apreensivos dos que se encontravam sob o fogo cruzado da mulher petista e do cobrador bolsonarista.

Bill Evans tocava Time remembered. Relembrei o tempo em que eu era petista. Minha memória recuou até a época em que o Bar das Putas era pouco mais do que um balcão engordurado, democrático, sobre o qual devorávamos portentosas bistecas de boi, principal atrativo da casa. Mesmo descontando o osso, ainda restava para saborear um bom meio quilo de alcatra macia e suculenta. Comíamos em pé, no meio da madrugada, enquanto apreciávamos as damas da noite a retocar o batom entre seus múltiplos atendimentos.

Naquela época, eu costumava usar na lapela um distintivo do PT, na forma de uma estrelinha vermelha. E uma outra, bem maior, como decalco no vidro do carro. Nunca fui militante, pois não tenho perfil para isso, nem saco para aturar reuniões, assembleias, mas fui assíduo em festas e manifestações. Em qualquer evento no qual pudesse sentir pulsar o tom libertário dos anos oitenta, lá estava eu, de estrelinha vermelha, entre amigos que tinham um envolvimento maior.

Tudo me impelia em direção ao PT. Eu morava em uma concorrida república de homens descasados que, em certos momentos, funcionava como um comitê informal do partido, com a vantagem adicional de atrair mulheres bonitas e inteligentes que frequentavam os bares da Vila Madalena. Nunca tomei a decisão de me inscrever oficialmente no PT, mas colaborei com a sigla em não poucas ocasiões, dentro das minhas boêmias limitações, e o fiz de forma sincera e espontânea. O PT foi o centro de processamento da carga de utopia reservada à minha geração. Sou grato por isso. Nem todas as gerações têm esse privilégio. Mas também essa fase romântica ficou para trás, como acontece com as diferentes atmosferas que marcam nossas vidas.

O ônibus iniciou a descida do talude da Avenida Rebouças, em seu trecho mais íngreme, entre o Hospital das Clínicas e a Avenida Brasil. Ali recordei minha longa relação de cidadão esperançoso com essa persistente figura da cena política brasileira que se chama Luiz Inácio Lula da Silva. De início, ele me empolgou, como aguerrido líder sindical, e mais tarde me frustrou, ao se tornar mais um entre tantos caudilhos da política, que jamais ficaram mais pobres ao exercê-la, como bem sabemos. Se por acaso são pegos com a boca na botija, podem contar com os serviços de advogados contratados a peso de ouro e que, de um jeito ou de outro, acabam por conseguir tapar o sol com a peneira. Peço desculpas a meus amigos petistas por não ser capaz de engolir a tese da perseguição. Já tive de engolir muita coisa.

Gostaria de estar errado. É sofrido ver uma ilusão se esfacelar. Na segunda metade da década de 1980, quando escrevi o romance Sonata da última cidade, nele reservei um lugar de honra para Lula. Foi a única figura da política brasileira que fiz questão de citar nominalmente. Naquela época, para mim, o PT encarnava a ideia de que, em alguns anos, talvez não muitos, cada brasileiro pudesse ter na mesa uma bisteca como aquela do Bar das Putas.

Ao publicar a segunda edição da Sonata, em 2004, pensei em retirar a referência favorável a Lula que aparece na edição de 1988. Se não o fiz, foi devido a uma espécie de superstição autoral. Achei que seria mais coerente me manter fiel ao sujeito que eu era, inclusive quanto a crenças e valores, no momento em que escrevi o romance. Hoje penso que foi uma bobagem. Se houver nova edição da Sonata, omitirei o elogio. Caso queiram me fazer acreditar que Lula é honesto, pensarei antes em acreditar que a Terra é plana.

Bem, ela certamente é mais plana quando o ônibus completa a descida da Rebouças e entra no trecho inferior da avenida, quase sem inclinação. Ao cruzar a Avenida Brasil, sempre ao som de Bill Evans, eu continuava a pensar em Lula. Recordei as duas únicas vezes em que o vi em carne e osso. Foram situações bem diferentes. Na primeira delas, foi bem de longe. Eu estava em meio a uma multidão, num lugar fechado, muito amplo, algo como um auditório ou um ginásio esportivo, nem desconfio onde pudesse ser. Mas lembro bem de uma das frases de efeito de Lula: < Os outros dizem que matam a cobra e mostram o pau, mas o PT mata a cobra e mostra a cobra morta!

A plateia exultou. Mesmo sendo avesso ao populismo barato, também gostei. A euforia da massa nos arrasta para zonas de delírio. Mas isso só ocorreu comigo porque eu me identificava com a essência da mensagem, que era um clamor pela transparência. Era como se um líder dissesse: o que os outros fazem, nós não fazemos. Com a gente, a conversa é outra. Chega de patifaria. Como sempre coloquei, quixotescamente, a ética acima da política, fui presa fácil da bravata de Lula, do magnetismo de sua rouquidão, que parecia o rugido de uma fera.

A segunda vez que o vi ao vivo foi muito tempo depois, em junho de 2001. Lula estava em vias de disputar a presidência pela quarta vez, para enfim conquistá-la. Na época, eu trabalhava como repórter do saudoso Jornal da Tarde. Com frequência, era escalado para cobrir assuntos do dia a dia em bairros longínquos, alguns perigosos, da periferia de São Paulo.

Numa tarde de sábado, estando de plantão na redação, fui incumbido de ir até o trepidante Jardim Ângela, onde um padre irlandês, líder comunitário de pendor petista, promovia um debate sobre violência urbana. Lula seria a estrela principal do evento. Cheguei cedo na Paróquia dos Santos Mártires. Na igreja lotada, aguardavam a presença do presidenciável, mas preferi circular a pé pelas cercanias, para tomar sol e puxar conversa com os moradores do bairro.

De repente, um helicóptero pousou ao meu lado. Lula desembarcou sozinho, apressado, e sem que eu esperasse veio na minha direção. Estendeu-me a mão. Não sei se chegou a dizer uma ou duas palavras. Nós nos cumprimentamos rápido, de passagem. Sem se deter, ele se dirigiu à igreja, onde o padre irlandês o esperava com acolhedoras baforadas em seu cachimbo aromático. Ao final do evento, em coro, os moradores do Jardim Ângela aclamaram Lula como o próximo presidente do Brasil.

Naquele sábado de junho, exatamente vinte anos atrás, tive a impressão de que Lula poderia de fato vencer a eleição, após três tentativas frustradas. Uma vez mais, eu votaria nele. De fato, no ano seguinte, meu voto foi um dos mais de 53 milhões que o fizeram subir a rampa do Palácio do Planalto. Grande parte dos meus amigos comemorou aquela vitória com uma euforia de final de copa do mundo.

Fiquei contente, claro, mas sem o entusiasmo de outrora. O PT já não me parecia assim tão diferente dos demais partidos, embora os escândalos de corrupção ainda não houvessem estourado. Bem antes disso, eu já receava que Lula, ao conquistar o poder, pudesse ficar menos interessado em mostrar a cobra morta. As frases de efeito se sucediam. Mas o PT já começava a ser, para mim, antes de tudo um fato publicitário ou, se me permitem uma expressão do Sul, muita farofa para pouca carne.

Isso por certo me custou reproches de pessoas a quem muito prezo e respeito. Uma lástima, isso. Achar que quem se afasta da esquerda se aproxima da direita é pensar o mundo na forma simplista de uma régua. Só convém a quem se imagina nos extremos, onde reside o medo de mudar. Incomodados, usam a régua para aplicar guascaços no lombo dos hereges. Os próprios petistas, nos primórdios do partido, tiveram de suportar o assédio dos severos comunistas das gerações anteriores. Stálin sempre manda lembranças.

Mesmo votando no PT, acumulei discordâncias cruciais, ao longo do tempo, em relação à conduta e às posições do partido. Não vou discuti-las aqui para não encompridar a conversa e, sobretudo, para não dar caráter analítico a um texto de teor memorialista: time remembered. Além disso, continuo cético em relação ao jogo político. Um cético mais saudável, talvez, ou menos inseguro, e até por isso não me envergonho de confessá-lo. Limito-me a dizer que minha desconfiança em relação ao PT cresceu conforme sua hegemonia se estabelecia pelo resto país. Mas não posso garantir que o desencanto se deva mais à mutação do PT, como instituição, do que à minha própria mutação, como indivíduo.

No tempo do Bar das Putas, eu tinha cabelo de sobra no cocuruto e romantismo em excesso no bestunto. Olhando aquilo agora, de modo retrospectivo, me dou conta de que o PT, em seus primórdios, me encantava mais como corrente de ideias, como sopro de renovação, como sonho de justiça social, enfim, como algo mais leve e abstrato do que a geringonça que se tornaria depois: um partido político poderoso, pesado como um ônibus Mercedes, que para se mover precisa queimar combustível, estabelecer estratégias e constituir alianças. Talvez eu tenha mesmo estômago fraco. Tive vontade de vomitar, em 2012, quando Lula foi apertar a mão de Paulo Maluf na mansão do Jardim Europa.

No Jardim Ângela, em 2001, Lula veio apertar minha mão, sem necessidade. Talvez tenha me confundido com algum outro sujeito. Mas Paulo Maluf, tenho certeza, Lula não confundiu com ninguém. Eu teria dito isso a ele, de viva voz, se fosse possível. Mas seria necessário inverter os tempos desses dois eventos, o que só ocorre numa evocação descompromissada na descida da Rebouças, ao som de Bill Evans. E também seria necessário que Lula se detivesse por alguns segundos, ao menos, em vez de passar por mim tão rápido quanto se passa ao lado de um poste.

Claro que não tenho ressentimento. Jamais havíamos nos cruzado antes. E me estender a mão, da parte dele, não deixou de ser um gesto educado. Não me ignorou, quando bem poderia ter passado direto. Mas, claro, aquilo foi também um gesto automático, protocolar, como coçar o saco para um frentista de posto de gasolina.

Não fiquei ofendido, apenas surpreso. Pensei com meus botões: quantas vezes, em um ano, um político aperta a mão de pessoas estranhas que encontra pela frente? Eu não seria capaz de suportar, nem por um dia, um serviço desses. Aliás, com raras exceções, sempre procurei me manter distante de políticos. Prefiro os artistas. Se Bill Evans viesse me apertar a mão, eu me ajoelhava à frente dele.

Mas as mãos de Bill Evans continuaram a brincar nas teclas do piano, agora com Autumn leaves. Nosso ônibus começava a subir a ponte do Rio Pinheiros. Pensei: uma boa máscara no nariz sempre será útil, com ou sem pandemia, quando se passa por esta região da cidade. Pela janela, observei lá embaixo o rio lento, pastoso, minguado pela seca do outono. Diferentes governantes prometeram torná-lo tão limpo quanto o Tâmisa. Quem se lembra disso? Entra ano, sai ano, e o Pinheiros continua atulhado de detritos e de bosta humana. Imagem perfeita da política brasileira, onde navegam à vontade todas as cepas de escroques e picaretas de que se tem notícia, todos de gravata, fartos de benefícios, neste país de miseráveis. 

Olhei para a direita, olhei para a esquerda. O mesmo panorama. A cor da água do rio, entre pardacenta e arroxeada, me fez pensar em chocolate. E depois na história do Toddy e do Nescau, conforme a avaliação política feita pelo passageiro antes sentado à minha frente. Embora ele já houvesse desembarcado lá atrás, no cruzamento da Faria Lima, suas palavras voltaram a ecoar na minha cabeça, junto aos acordes do piano de Bill Evans. Retifico: ele executava When autumn comes, não Autumn leaves. Confundi os nomes, como poderia tomar Toddy por Nescau.

Ambos podem satisfazer a mesma pessoa, embora, conforme me disseram, o primeiro seja um pouco mais adocicado. De qualquer forma, a maior diferença entre eles não está no sabor, mas nas embalagens. Uma amarela, outra vermelha, como para vender a ideia de um contraste que o comprador jamais encontrará nos produtos. Nas prateleiras dos supermercados, aparecem sempre juntos. Pensei em Rômulo e Remo, lado a lado, transfigurados nos dois próceres políticos, mamando nas tetas da mesma loba. O Brasil enfrenta seu pior momento, creio, desde que me entendo por gente.

Quando o ônibus ultrapassou a ponte, tomando a Avenida Francisco Morato em direção à Zona Oeste, esqueci a semelhança entre Rômulo e Remo, os gêmeos rechonchudos, para me perguntar então qual seria o grande contraste entre Lula e Bolsonaro. Descartada a estatura física, que não vem ao caso, pensei que a maior diferença se situa no campo cognitivo. Um deles, esperto, come a banana e joga a casca para trás, fazendo escorregar e cair aqueles que vêm em seu encalço. O outro, ao contrário, lança a casca da banana à frente, criando uma armadilha para si próprio.

Já a maior semelhança entre os dois é menos evidente, porém mais essencial, pois lhes garante a devoção dos seguidores. Ambos, Lula e Bolsonaro, realizaram feitos prodigiosos. Lula saiu do agreste pernambucano em pau de arara, em São Paulo foi engraxate e torneiro mecânico, liderou greves, mobilizou multidões e, a despeito de sua cultura rasa, cativou uma faixa mais culta e rebelde da classe média que jamais encontraria, entre os seus, alguém em condições de chegar ao poder.

Em um círculo bem diferente, Bolsonaro também foi alguém que deu a volta por cima. Escanteado no Exército, o obscuro capitão da reserva acabou por se tornar chefe de uma nova leva de generais que, com ele no palácio, teve chance de voltar ao poder sem engatilhar armas nem botar tanques nas ruas. Um regime militar em embalagem civil. E isso lhes veio de graça, sem o ônus de tentar outro golpe que nem aquele de 1964.

Tanto no caso do capitão quanto no do metalúrgico, estamos diante daquilo que hoje se costuma chamar história de superação, ou seja, a trajetória quase mágica de alguém que parte de um patamar muito baixo e consegue dar o pulo do gato. Isso fascina as pessoas. Ninguém fica indiferente diante de um sujeito que, contra todas as probabilidades, atinge a posição de destaque que tantos ambicionam. É essa a semente do mito, que nutre a nossa alma. Porém, se é um néctar na mão do artista, é também uma arma na mão do farsante. Uma história de superação funciona na novela das nove, mas não credencia ninguém a dirigir uma nação. Eis por que, volta e meia, o Brasil dá com os burros na água.

Precisamos de um estadista, alguém capaz de enxergar além das colinas, e não de falastrões que nos momentos difíceis nos vêm com eufemismos irresponsáveis como “marolinha”, “gripezinha” e coisas assim. Lula e Bolsonaro colaboram para que a boçalidade prevaleça, em favor de ambos. Um precisa do outro. O sucesso de um é o reforço do outro, que o sucederá no momento seguinte, pois o brasileiro tem tendência bipolar. Talvez nos convenha um governante que não pertença à linhagem dos políticos profissionais, especialistas em cavilações e barganhas. Não precisamos de heróis, de mártires, enfim, dos protagonistas das tais histórias de superação. Precisamos virar a página. A maior história de superação, no Brasil, é viver honestamente.

Vencida a sequência de vias de tráfego pesado, nosso ônibus se enfiou pelos meandros da Zona Oeste, onde predominam as ruas calmas e arborizadas. Nessa parte capilar do trajeto, os passageiros se reconhecem. Passam a conversar entre si como fazem os vizinhos nas cidades do interior. Notei que o cobrador bolsonarista, mais calmo, livre da presença da pertinaz petista, conversava de forma amistosa com moradores das redondezas que se preparavam para desembarcar.

No meu fone de ouvido, The summer knows chegava ao fim para que se iniciasse a magnífica Invitation. Ali está quase tudo que um ser humano é capaz de fazer nas teclas de um piano. Mas Invitation assinalava o final da sequência de Bill Evans. Também eu iria desembarcar do ônibus dois ou três pontos adiante. Ainda precisava dar uma passada no supermercado. Não sei vocês, mas de minha parte, entre Toddy e Nescau, prefiro Ovomaltine.

terça-feira, 30 de março de 2021

PIAZZOLLA

 

No último dia 11, as águas de março borbulharam para celebrar os 100 anos do argentino Astor Piazzolla, nascido em Mar Del Plata. Mas Buenos Aires, Nova York, São Paulo e todas as cidades do mundo que cultivam a música, em sua forma mais elevada, são também cidades de Piazzolla.

A Rádio Cultura deu o devido destaque ao centenário do homem que elevou o tango em várias oitavas acima de uma música de salão para introduzi-lo, em novo formato, nas salas de concerto. Palmas para a FM 103,3, uma pérola da Pauliceia. A emissora sediada na Água Branca já havia feito algo semelhante no ano passado, ao celebrar os 250 anos de Beethoven.

Faz quase meio século desde que ouvi Piazzolla pela primeira vez. Lembro bem como foi. Meio por acaso, em uma noite de 1972 ou 1973.  Eu era um recém-chegado na metrópole, cursava jornalismo e trabalhava como revisor na Editora Abril. Em um fim de semana qualquer, rolava uma festinha entre amigos de trabalho no pequeno apartamento da Rua Piauí, quase na esquina da Consolação. A anfitriã era nossa colega tieteense Cristina Porto, mais tarde autora de livros infantis.

Em meio aos ruídos da festa, de repente reparei em um som estranho vindo da vitrola. Não se parecia com nada do que eu concebia como música. Perguntei a alguém do que se tratava. Disseram-me: < É Piazzolla.

Senti-me tomado pela estranheza que sempre caracterizou meu primeiro contato com coisas e pessoas que marcaram minha vida. Havia sido assim com os Beatles, na adolescência. Mas agora era um sujeito grisalho, circunspecto, tocando um instrumento esquisito, quem me convidava a descobrir um mundo novo.

Vários de meus amigos da juventude foram, como eu, idólatras de Piazzolla. Para nós, na época sem muita intimidade com os clássicos, ele ganhava um status de Beethoven. Nesse patamar, colocávamos também Tom Jobim e Egberto Gismonti. Surfávamos juntos nos sulcos daqueles vinis.

Vi Piazzolla ao vivo apenas duas vezes. A primeira foi ainda na década de 1970, no MASP. No auditório abarrotado de jovens universitários, lá estava eu junto a Alceu Nader, amigo da faculdade, também piazzollista de primeira hora. Ao final do concerto, vimos Piazzolla voltar ao palco inúmeras vezes, ovacionado como um semideus. Nunca mais voltei a ver algo assim, nem mesmo com artistas populares.

A segunda vez, uma década depois, foi no auditório do Anhembi. Aí Piazzolla já era um superstar. Tinha um público muito mais amplo e diversificado no Brasil. Pegava uma parte refinada da burguesia, não apenas barbudinhos de esquerda e tênis baratos. Assim éramos nós, jovens dos anos de chumbo. Só que em ambientes restritos, como o MASP, curtindo um artista de vanguarda, nos sentíamos os reis da cocada preta.

No Anhembi, depois do espetáculo, ousei subir ao palco e saudar o artista, coisa que fiz pela primeira e única vez na vida. Entreguei nas mãos de Piazzolla um exemplar de meu primeiro livro, uma coletânea de poemas na maioria bastante medíocres, reconheço, mas entre os quais havia um (não dos piores, espero) dedicado a ele. Foi simpático comigo, naqueles poucos segundos de conversa. De perto, sua estatura me surpreendeu. Imaginava-o do porte de um lutador peso-pesado. Era pequeno como um jóquei, embora parrudo.

Notei que Piazzolla mancava discretamente, como sequela de cirurgias na perna durante a infância. Esse fato, só fui descobrir durante uma longa pesquisa sobre sua vida que levei a cabo nos arquivos de jornais. Ninguém sonhava com a internet. Esse material, depois romanceado, serviu para embasar meu livro Che Bandoneón, escrito em meados de 1982, publicado dois anos depois e que, em breve, estará na nuvem em versão digital.

Na década de 1980, como repórter da revista Quatro Rodas, eu viajava bastante. Em diferentes países, dediquei-me a garimpar discos de Piazzolla. Isso resultou em uma coleção de cinquenta ou sessenta unidades, entre vinis e CDs acumulados ao longo de muitos anos.

Em fases de dureza, cogitei vendê-la. Nunca tive coragem. Preferi correr o risco de ter que comer pão com ovo, atum em lata, o que fosse, mas ao som de Zoom, Libertango, Adiós Nonino (desta, tenho quinze versões) e outras tantas especiarias da minha coleção.

Certa vez, em uma loja de Buenos Aires, perguntei sobre discos de Piazzolla. A vendedora torceu o nariz, só faltou me dizer para não perder tempo com aquele sujeito esquisito. De má vontade, passou a me tratar como um estrangeiro petulante que se atrevesse a trocar um asado de vacío por salsicha enlatada. Piazzolla, para ela, era um traidor da pátria. Em outras palavras: um traidor do tango.

Para a maioria das pessoas, argentinas ou não, não é fácil distinguir um gênio de um louco. Ambos se parecem, se olhados de relance. Digamos assim: o louco é um ponto fora da curva, enquanto o gênio é uma curva fora do ponto. A imagem do conjunto é a mesma. Para poder decidir, o observador externo precisa incluir a si próprio no sistema. Isso é um desafio, claro, e não dos mais fáceis.

Piazzolla foi, para mim, a primeira encarnação de um gênio. Os Beatles poderiam ter sido isso, anos antes, mas para um adolescente o aspecto comportamental prevalece sobre a qualidade da música. Com Piazzolla, não foi assim. O que ele tinha para me mostrar estava contido em sua arte, sem precisar de apoio publicitário. Por isso demorou tanto a sobressair. A Argentina inteira, a começar pela vendedora daquela loja, teve de engolir o traidor da pátria quando o resto do mundo o proclamou genial.

Há que se fazer uma distinção entre uma pessoa muito talentosa e um gênio. No Brasil, tais categorias se confundem, seja na mídia, seja no senso comum. Parece questão de quantidade de talento. A meu ver, não é bem isso. Trata-se, isso sim, da natureza do talento.

Alguém já disse: ser talentoso é acertar o alvo que ninguém acertou; ser gênio é acertar um alvo que ninguém viu. Considero essa metáfora perfeita. O tango anterior a Piazzolla não precisava dele, pelo simples fato de que alguém como ele não seria concebível dentro das fronteiras do tango. Seu aparecimento demonstrou que esse gênero musical, por propiciar a subversão, era uma coisa viva e pulsante.

Antes de conhecer Piazzolla, eu detestava o tango, por considerá-lo uma música fatalista, meio caricatural, talvez com resquícios de ópera, a qual respeito, mas tolero tão pouco quanto o coentro. Curiosamente, foi ele, o subversivo, quem me incitou a uma exploração retrospectiva desse campo musical, para conhecer o berço da subversão. Zoom me levou ao tango tradicional, quando a maturidade enfim me libertou das predileções excludentes.

A figura do gênio sempre me fascinou. Alguém que inventa o alvo está acima de quem apenas dispara a flecha com maestria, para delírio da plateia. Mas inventar o alvo implica enorme carga de solidão. Freud disse isto: < Leonardo da Vinci foi como um homem que acordou cedo demais na escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir.

Messi é um gênio. Vejo nele um ser solitário. Parece não enxergar a realidade externa do mesmo modo que nós a vemos. Talvez como nem ele próprio a vê, frações de segundo antes de fazer uma jogada. Vale-se de soluções intuitivas que brotam da ação em si.

 Seu rival Cristiano Ronaldo tem um talento descomunal. É capaz de executar com frequência aquilo que outros craques conseguem só de vez em quando. Mas não é um gênio. Suas realizações, embora primorosas, são previsíveis, situam-se dentro do nosso arco de expectativas. Se fosse um pintor, seria igualmente milionário, celebrado mundo afora. Messi seria como Van Gogh. Mesmo se arrancasse suas duas orelhas, permaneceria anônimo até aparecer alguém para “viabilizá-lo” aos olhos da multidão.

No esporte, a genialidade se impõe pelos resultados, pelas estatísticas, sem que seja preciso um intermediário para divulgá-la, Na arte, não é assim. A genialidade, para ser reconhecida como tal, depende de pessoas influentes que a traduzam ao senso comum: > Atenção, caras-pálidas, de agora em diante a curva vai passar por outro ponto.

< Words, words, words, sr. Modernell. Se já deu o seu recado...

Ainda não dei todo o meu recado. Quero confessar o seguinte: naqueles tempos remotos em que me meti a gatafunhar o texto sobre Piazzolla, disse aos meus botões: > Quero escrever como ele toca.

Calma. Eu não me referia ao grau de excelência da música de Piazzolla. Teria sido uma pretensão insensata tomá-la como referência. Apenas ambicionava obter, nos meus textos, o mesmo equilíbrio entre os fatores sensorial e cerebral. Isso é  o que mais me cativa em Piazzolla. E me parece essencial em qualquer obra de arte.

Nos gênios, é como se não houvesse distinção entre esses dois fatores. O sensorial e o cerebral se fundem numa coisa só. O que é a Teoria da Relatividade senão a mais lúcida alucinação que alguém já teve neste planeta? Perguntem a Pelé se para dominar a bola não é preciso saber que ela pertence ao reino dos seres vivos. Perguntem e depois me contem.

Já em artistas de grande talento, mas não geniais, podemos falar em termos de ideias e sensações. É possível distingui-las pelo gosto, mesmo misturadas, como o café com leite que mexemos com a colher dentro de uma xícara.

Como escritor, não sei se alguma vez cheguei perto de fundir o sensorial e o cerebral. Sei apenas que esse alvo me foi revelado na súbita descoberta da música de Piazzolla, tantos anos atrás, no apartamento de Cristina.

Porém, ainda que me falte competência, ao digitar letras, para transmutar as teclas do computador em botões do bandoneón, esse esforço não terá sido em vão. Nos limites desta forma silenciosa de música que é a literatura, contribuí para iluminar a figura de um gênio da nossa época. Daqui a 150 anos, ainda se falará de Piazzolla, suponho, assim como hoje se fala de Beethoven.

Ainda bem que não vendi minha coleção de discos. Ouvindo Piazzolla, nem dá para reclamar da quarentena.