A frase de Lampedusa, tão irônica
quanto lúcida, é um retrato da Sicília, esse apêndice da Itália tão difícil de
entender para quem o observa de fora. Uma bela terra, ensolarada, poética, mas
também arcaica, mafiosa, patriarcal, onde as relações sociais parecem imutáveis
como as pedras. A frase se aplicaria muito bem ao Brasil. Sempre penso nisso em
épocas de campanha eleitoral, quando os candidatos apregoam a todo instante no
rádio e na TV que temos que mudar isso, temos que mudar aquilo, e blá-blá-blá.
Discurso eleitoral é mais do mesmo.
Eu sei, tu sabes, ele sabe, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem muito bem que é
assim. Uma eleição no Brasil, que custa uma fortuna aos cofres públicos, no fim
das contas resulta em mera dança de cadeiras. Trata-se de um ritual republicano
apenas na forma, na mecânica. Na essência, é aristocrática. O acúmulo de
vantagens e privilégios reservados às altas castas alojadas nos três poderes,
num país com multidões de miseráveis, equivale ao modelo siciliano do príncipe
Falconeri de conceber o que seja uma sociedade livre e igualitária.
Seria tolice, obviamente, imaginar
que os políticos (ou, por extensão, todos aqueles que gravitam em torno de
palácios e repartições) um dia possam se empenhar em reduzir os próprios
privilégios. Apostar nisso seria o mesmo que esperar dos fabricantes de tabaco que
invistam em pesquisas sobre câncer do pulmão. No entanto, os políticos precisam
fazer um jogo de cena. O príncipe Falconeri chega ao ponto de se engajar nas
tropas republicanas de Giuseppe Garibaldi, se não me engano. Para ter certeza,
teria que tirar o pó do livro de Lampedusa e checar esse detalhe. Ou então garimpar
nas plataformas de streaming a
clássica versão cinematográfica filmada em 1963 por Luchino Visconti, com Alain
Delon (Falconeri) a contracenar com uma estonteante Claudia Cardinale aos 25
anos de idade.
Farei isso um dia desses, não agora.
Para escrever estas adjazzcências, basta-me a lembrança daquela frase: é
preciso mudar para que tudo continue como está. É esse o ponto. Tomando-a como uma premissa
verdadeira, tenho dúvidas de que a realização periódica de eleições, por si só,
consolide um regime democrático e, muito menos, venha a aperfeiçoá-lo ao longo
do tempo. Já acreditei nisso, quando me permitia tapar o sol com a peneira.
Estamos em 2020. Não é nada, não é
nada, já se vai um quinto deste século que ainda ontem nos parecia novinho em
folha. Nessas duas décadas, fomos às urnas diversas vezes, conforme sonhávamos
quando jovens, no tempo da ditadura. Mesmo assim, não conseguimos emplacar no
Brasil um único presidente que se assemelhe à figura de um estadista. Ou seja, alguém
que subisse a rampa do palácio com um projeto no bolso do colete, um brilho nos
olhos e um horizonte mais amplo do que o exercício da política em sua forma miúda
e mafiosa.
Ora, sr. Modernell, francamente... Muito
nos admira ver alguém da sua idade, tão entrado em anos, se sair com esse
argumento de chofer de caminhão de que é tudo a mesma coisa, os políticos são
todos ladrões etc.
Alto lá! Eu não disse, em momento algum,
que só existem políticos desonestos. Não disse nem nunca vou dizê-lo. O que eu
digo, isto sim, e com convicção, é que os políticos honestos e competentes são
e sempre serão uma minoria, talvez vistosa, mas nunca predominante. E isso não
só porque exercem seu ofício num ambiente que é uma espécie de carne esponjosa exposta
a todos as covids possíveis e
imagináveis, mas também porque contam com a complacência de uma sociedade que
opera mais ou menos nos mesmos moldes.
O exemplo que me ocorre, nesta época
eleitoral, são as caixinhas de morangos envoltas em celofane que aquele sujeito
simpático vende na calçada esburacada ali no meio do quarteirão. Os morangos graúdos,
viçosos e suculentos são aqueles que ficam por cima, como para dar a entender
que as camadas inferiores também são assim. Nada disso. Quando chegamos em
casa, tiramos o celofane e deparamos com um monte de frutinhas pequenas,
amassadas e até mofadas. O que parecia barato ficou caro.
O vendedor ambulante sabe que precisa
de alguns morangos suculentos para poder vender o restolho. Basta-lhe arranjar a
embalagem de um modo que lhe seja favorável. Do mesmo modo, o sistema político
sempre precisará de algumas pessoas direitas para botar na vitrine, porém em
quantidade limitada, sem atrapalhar os interesses dos espertalhões que operam nas
camadas inferiores. Ou seja, para que tudo continue como antes, tal como
desejava o príncipe Falconeri.
< Bem, sr. Modernell, vamos
admitir que a sua singela (para não dizer ingênua) teoria tenha lá certa
validade. No entanto, se não contarmos com esses políticos, por piores que sejam
eles, o que teremos é uma ditadura, e aí mesmo é que vão nos enfiar os morangos
podres pela goela abaixo.
Alto lá! Claro que um novo regime
ditatorial, como clamam os desvairados, seria um desastre. Mas essa não é a
única alternativa para uma democracia como a nossa, que apenas dissimula uma
máquina de construir privilégios para quem se aloja no interior dos castelos,
mesmo que seja pelo voto popular.
O Brasil é uma sociedade insana que não
pode ser redimida pela política, mas sim pela ética. A nossa chance é essa. Se a ética predominar, no futuro, aquele
sujeito não estará mais lá na esquina vendendo enganosas caixinhas de morangos
envoltos em papel celofane. Ou então não poderá reclamar do prefeito que só arruma
as calçadas em ano eleitoral.
Penso em como gostaria que viesse a
ser o país em que nossos descendentes vão viver, ou seja, os quatro quintos
restantes do século XXI. Acho que o parlamentarismo, em tese, é melhor que o
presidencialismo. Um governo deve governar só enquanto funciona (como hoje
pensamos em relação ao casamento, por exemplo) e não por um prazo estipulado
previamente, em um momento em que não podemos saber se vai funcionar.
Voto facultativo. O eleitor é quem
deve decidir se vai ou não votar, por sua conta e risco, como prerrogativa primordial
da liberdade. Se tal decisão for tomada em seu foro íntimo, será mais educativa,
a longo prazo, do que a coerção externa de uma obrigação, que não o educa,
apenas o condena a sentir sobre si o bafo do Estado.
Voto remoto. Tenho a esperança de que
nas próximas décadas o eleitor possa votar onde estiver, com segurança, por
meio de um dispositivo móvel. Não faz sentido se deslocar a um local público para
ali entrar numa cabine e executar um procedimento mais simples do que escovar
os dentes. Não vejo por que um sistema de voto a distância não possa ser implantado
nas eleições, se já é assim em tantos setores cruciais, desde operações
bancárias até consultas médicas.
< E as fraudes, sr. Modernell? Hackers e invasores se multiplicam como
ratos no esgoto. Por acaso não pensou nisso?
Ora, fraude por fraude, o risco existirá
sempre, seja na nuvem ou na calçada da rua. Isso já ficou bem claro, creio, no
nosso exemplo da caixinha de morangos.
Poucos partidos. Meia dúzia deles me
parece suficiente para canalizar as linhas de pensamento predominantes na
sociedade, com ganho de clareza no mapa geral, sobretudo para as pessoas mais
simples. Vinte ou trinta opções, como a profusão dos tipos de pizzas tão
parecidas nos cardápios dos serviços de delivery,
só servem para confundir as pessoas, sangrar as finanças públicas e estimular uma
cultura de alianças espúrias.
Parlamento mínimo. Não sei se precisamos mesmo de um senado e também de uma câmara de deputados, a custo astronômico, onde as coisas se arrastam pelos corredores ao longo de meses, anos, décadas. Talvez fôssemos mais bem atendidos, como cidadãos, por uma única congregação enxuta e ágil, para que uma lei de contenção à ganância dos planos de saúde, por exemplo, não precise demorar tanto quanto demorou a abolição da escravatura. Mas para isso, é claro, será necessário que nossos parlamentares abram mão do privilégio de passar festas juninas em suas cidades longínquas. Ou seja, em vez de tirar folgas a três por quatro, devem trabalhar como trabalham os professores, os bancários, os enfermeiros.
Parlamentares avulsos. Tenho dúvidas
sobre se os hoje exacerbados sistemas de cotas, de um modo geral, de fato servem
para equalizar as oportunidades entre os indivíduos, o que certamente constitui
um objetivo justo e desejável. Porém, admitindo que sim, as cotas funcionam,
são um mecanismo eficaz e legítimo, então deveriam vigorar também em âmbito parlamentar.
Um quinto das cadeiras será reservado a cidadãos sem vínculos partidários que,
eleitos, podem dar sua contribuição à sociedade sem estarem subordinados a
siglas e caciques. Isso ajudaria a oxigenar o parlamento, hoje controlado pelos
políticos profissionais.
Multipolaridade. Gostaria que daqui a
algumas décadas se deixasse de pensar a política em termos de direita e
esquerda. Essa polaridade de régua, simplista e rasa, já não dá conta da velocidade
das ideias nem das forças em jogo no mundo de hoje. Pode muito bem ser substituída
por uma concepção dinâmica e tridimensional semelhante a um móbile pendurado no
teto, cujas peças, por sua leveza, mudam de posição o tempo todo, de forma
quase independente, porém sempre em função da estabilidade do conjunto. Espero
que nossos netos e bisnetos, ainda no século em curso, venham a encarar o que hoje
qualificamos como “esquerda” e “direita” como referências arbitrárias, supersticiosas,
como eram o Céu e o Inferno na visão dos povos medievais.
Plebiscitos semestrais. Com dois
deles por ano, digamos, seria possível tomar decisões sobre temas polêmicos e
cruciais que os parlamentares evitam ou empurram com a barriga, enquanto descobrem
a melhor maneira de atender sua clientela, isto é, suas bases de apoio e os interesses
dos lobbies. Consultas populares
periódicas, sem a mediação de políticos profissionais, podem ajudar a criar uma
cultura de democracia direta muito mais educativa do que as eleições, além de
estar em sintonia com uma sociedade informatizada.
< Muito bem, sr. Modernell. Um
ficcionista agora se dá ares de cientista político. Era só o que faltava no
Brasil. Quem sabe se já não seria hora de encerrar estas já tão longas
adjazzcências...