Na Avenida Ipiranga, em uma tarde de outono, entrei num desses ônibus de tarja laranja que servem a Zona Oeste. No meio da subida da Consolação, em frente ao repaginado Restaurante Sujinho, antigo Bar das Putas, estourou um bate-boca. O estopim foi um adolescente com a camiseta do Corinthians que embarcara no ponto do cemitério. Ao passar na catraca, o cobrador lhe dirigiu um gracejo. Não entendi como, mas a conversa derivou do futebol para a política.
Em voz alta, o cobrador se pôs a elogiar Bolsonaro. Foi
prontamente confrontado por uma mulher de meia-idade, com máscara plissada e jeans
esburacado, sentada em um dos bancos da parte dianteira do ônibus. Ela também
elevou a voz, indignada, mas para achincalhar o presidente. E não perdeu a
chance de frisar que, para ela, Lula é e sempre será o salvador da pátria.
O entrevero fez tremer o chassi do possante Mercedes que galgava
a encosta do espigão central, aproximando-se da Paulista. E perdurou por boa parte
do trajeto do ônibus. Só foi arrefecer no ponto do Shopping Eldorado, onde o
embarque de uma leva de novos passageiros inibiu os contendores. Quem conhece São
Paulo pode avaliar a duração da briga entre o cobrador e a mulher.
Não acompanhei toda a discussão. Quando percebi que ela ia
esquentar, recheada de impropérios, o motorista impotente para apaziguar os
ânimos, pus os fones nos ouvidos para me livrar do incômodo. Antes de ouvir o
piano de Bill Evans, captei o comentário desolado de um senhor sentado à minha
frente. Com a voz abafada sob a máscara preta, de tecido grosso, que lhe cobria
o rosto até a altura do topo do nariz, ele sentenciou: < Entre o Lula e o Bolsonaro,
a diferença é que nem entre o Toddy e o Nescau.
Foi a última coisa que ouvi durante a viagem. Depois disso,
meus ouvidos foram anestesiados pelos acordes de Bill Evans. Mesmo assim,
continuei a prestar atenção aos gestos agitados dos passageiros que se
digladiavam, e também aos olhares apreensivos dos que se encontravam sob o fogo
cruzado da mulher petista e do cobrador bolsonarista.
Bill Evans tocava Time
remembered. Relembrei
o tempo em que eu era petista. Minha memória recuou até a época em que o Bar
das Putas era pouco mais do que um balcão engordurado, democrático, sobre o
qual devorávamos portentosas bistecas de boi, principal atrativo da casa. Mesmo
descontando o osso, ainda restava para saborear um bom meio quilo de alcatra
macia e suculenta. Comíamos em pé, no meio da madrugada, enquanto apreciávamos
as damas da noite a retocar o batom entre seus múltiplos atendimentos.
Naquela época, eu costumava usar na lapela um distintivo do
PT, na forma de uma estrelinha vermelha. E uma outra, bem maior, como decalco
no vidro do carro. Nunca fui militante, pois não tenho perfil para isso, nem
saco para aturar reuniões, assembleias, mas fui assíduo em festas e
manifestações. Em qualquer evento no qual pudesse sentir pulsar o tom
libertário dos anos oitenta, lá estava eu, de estrelinha vermelha, entre amigos
que tinham um envolvimento maior.
Tudo me impelia em direção ao PT. Eu morava em uma concorrida
república de homens descasados que, em certos momentos, funcionava como um
comitê informal do partido, com a vantagem adicional de atrair mulheres bonitas
e inteligentes que frequentavam os bares da Vila Madalena. Nunca tomei a
decisão de me inscrever oficialmente no PT, mas colaborei com a sigla em não
poucas ocasiões, dentro das minhas boêmias limitações, e o fiz de forma sincera
e espontânea. O PT foi o centro de processamento da carga de utopia reservada à
minha geração. Sou grato por isso. Nem todas as gerações têm esse privilégio. Mas
também essa fase romântica ficou para trás, como acontece com as diferentes
atmosferas que marcam nossas vidas.
O ônibus iniciou a descida do talude da Avenida Rebouças, em
seu trecho mais íngreme, entre o Hospital das Clínicas e a Avenida Brasil. Ali recordei
minha longa relação de cidadão esperançoso com essa persistente figura da cena política
brasileira que se chama Luiz Inácio Lula da Silva. De início, ele me empolgou,
como aguerrido líder sindical, e mais tarde me frustrou, ao se tornar mais um
entre tantos caudilhos da política, que jamais ficaram mais pobres ao
exercê-la, como bem sabemos. Se por acaso são pegos com a boca na botija, podem
contar com os serviços de advogados contratados a peso de ouro e que, de um
jeito ou de outro, acabam por conseguir tapar o sol com a peneira. Peço
desculpas a meus amigos petistas por não ser capaz de engolir a tese da
perseguição. Já tive de engolir muita coisa.
Gostaria de estar errado. É sofrido ver uma ilusão se
esfacelar. Na segunda metade da década de 1980, quando escrevi o romance Sonata
da última cidade, nele reservei um lugar de honra para Lula. Foi a única
figura da política brasileira que fiz questão de citar nominalmente. Naquela
época, para mim, o PT encarnava a ideia de que, em alguns anos, talvez não
muitos, cada brasileiro pudesse ter na mesa uma bisteca como aquela do Bar das
Putas.
Ao publicar a segunda edição da Sonata, em 2004, pensei
em retirar a referência favorável a Lula que aparece na edição de 1988. Se não
o fiz, foi devido a uma espécie de superstição autoral. Achei que seria mais
coerente me manter fiel ao sujeito que eu era, inclusive quanto a crenças e
valores, no momento em que escrevi o romance. Hoje penso que foi uma bobagem.
Se houver nova edição da Sonata, omitirei o elogio. Caso queiram me
fazer acreditar que Lula é honesto, pensarei antes em acreditar que a Terra é
plana.
Bem, ela certamente é mais plana quando o ônibus completa a
descida da Rebouças e entra no trecho inferior da avenida, quase sem
inclinação. Ao cruzar a Avenida Brasil, sempre ao som de Bill Evans, eu
continuava a pensar em Lula. Recordei as duas únicas vezes em que o vi em carne
e osso. Foram situações bem diferentes. Na primeira delas, foi bem de longe. Eu
estava em meio a uma multidão, num lugar fechado, muito amplo, algo como um
auditório ou um ginásio esportivo, nem desconfio onde pudesse ser. Mas lembro
bem de uma das frases de efeito de Lula: < Os outros dizem que matam a cobra
e mostram o pau, mas o PT mata a cobra e mostra a cobra morta!
A plateia exultou. Mesmo sendo avesso ao populismo barato,
também gostei. A euforia da massa nos arrasta para zonas de delírio. Mas isso só
ocorreu comigo porque eu me identificava com a essência da mensagem, que era um
clamor pela transparência. Era como se um líder dissesse: o que os outros
fazem, nós não fazemos. Com a gente, a conversa é outra. Chega de patifaria.
Como sempre coloquei, quixotescamente, a ética acima da política, fui presa
fácil da bravata de Lula, do magnetismo de sua rouquidão, que parecia o rugido
de uma fera.
A segunda vez que o vi ao vivo foi muito tempo depois, em
junho de 2001. Lula estava em vias de disputar a presidência pela quarta vez,
para enfim conquistá-la. Na época, eu trabalhava como repórter do saudoso Jornal
da Tarde. Com frequência, era escalado para cobrir assuntos do dia a dia em
bairros longínquos, alguns perigosos, da periferia de São Paulo.
Numa tarde de sábado, estando de plantão na redação, fui
incumbido de ir até o trepidante Jardim Ângela, onde um padre irlandês, líder
comunitário de pendor petista, promovia um debate sobre violência urbana. Lula
seria a estrela principal do evento. Cheguei cedo na Paróquia dos Santos
Mártires. Na igreja lotada, aguardavam a presença do presidenciável, mas
preferi circular a pé pelas cercanias, para tomar sol e puxar conversa com os
moradores do bairro.
De repente, um helicóptero pousou ao meu lado. Lula
desembarcou sozinho, apressado, e sem que eu esperasse veio na minha direção. Estendeu-me
a mão. Não sei se chegou a dizer uma ou duas palavras. Nós nos cumprimentamos
rápido, de passagem. Sem se deter, ele se dirigiu à igreja, onde o padre
irlandês o esperava com acolhedoras baforadas em seu cachimbo aromático. Ao final
do evento, em coro, os moradores do Jardim Ângela aclamaram Lula como o próximo
presidente do Brasil.
Naquele sábado de junho, exatamente vinte anos atrás, tive a
impressão de que Lula poderia de fato vencer a eleição, após três tentativas
frustradas. Uma vez mais, eu votaria nele. De fato, no ano seguinte, meu voto foi
um dos mais de 53 milhões que o fizeram subir a rampa do Palácio do Planalto.
Grande parte dos meus amigos comemorou aquela vitória com uma euforia de final
de copa do mundo.
Fiquei contente, claro, mas sem o entusiasmo de outrora. O PT
já não me parecia assim tão diferente dos demais partidos, embora os escândalos
de corrupção ainda não houvessem estourado. Bem antes disso, eu já receava que
Lula, ao conquistar o poder, pudesse ficar menos interessado em mostrar a cobra
morta. As frases de efeito se sucediam. Mas o PT já começava a ser, para mim,
antes de tudo um fato publicitário ou, se me permitem uma expressão do Sul, muita
farofa para pouca carne.
Isso por certo me custou reproches de pessoas a quem muito prezo e respeito. Uma lástima, isso. Achar que quem se afasta da esquerda se aproxima da direita é pensar o mundo na forma simplista de uma régua. Só convém a quem se imagina nos extremos, onde reside o medo de mudar. Incomodados, usam a régua para aplicar guascaços no lombo dos hereges. Os próprios petistas, nos primórdios do partido, tiveram de suportar o assédio dos severos comunistas das gerações anteriores. Stálin sempre manda lembranças.
Mesmo votando no PT, acumulei discordâncias cruciais, ao
longo do tempo, em relação à conduta e às posições do partido. Não vou discuti-las
aqui para não encompridar a conversa e, sobretudo, para não dar caráter
analítico a um texto de teor memorialista: time remembered. Além disso, continuo
cético em relação ao jogo político. Um cético mais saudável, talvez, ou menos
inseguro, e até por isso não me envergonho de confessá-lo. Limito-me a dizer
que minha desconfiança em relação ao PT cresceu conforme sua hegemonia se
estabelecia pelo resto país. Mas não posso garantir que o desencanto se deva
mais à mutação do PT, como instituição, do que à minha própria mutação, como
indivíduo.
No tempo do Bar das Putas, eu tinha cabelo de sobra no cocuruto
e romantismo em excesso no bestunto. Olhando aquilo agora, de modo
retrospectivo, me dou conta de que o PT, em seus primórdios, me encantava mais
como corrente de ideias, como sopro de renovação, como sonho de justiça social,
enfim, como algo mais leve e abstrato do que a geringonça que se tornaria depois:
um partido político poderoso, pesado como um ônibus Mercedes, que para se mover
precisa queimar combustível, estabelecer estratégias e constituir alianças.
Talvez eu tenha mesmo estômago fraco. Tive vontade de vomitar, em 2012, quando Lula
foi apertar a mão de Paulo Maluf na mansão do Jardim Europa.
No Jardim Ângela, em 2001, Lula veio apertar minha mão, sem
necessidade. Talvez tenha me confundido com algum outro sujeito. Mas Paulo
Maluf, tenho certeza, Lula não confundiu com ninguém. Eu teria dito isso a ele,
de viva voz, se fosse possível. Mas seria necessário inverter os tempos desses
dois eventos, o que só ocorre numa evocação descompromissada na descida da
Rebouças, ao som de Bill Evans. E também seria necessário que Lula se detivesse
por alguns segundos, ao menos, em vez de passar por mim tão rápido quanto se
passa ao lado de um poste.
Claro que não tenho ressentimento. Jamais havíamos nos cruzado
antes. E me estender a mão, da parte dele, não deixou de ser um gesto educado. Não
me ignorou, quando bem poderia ter passado direto. Mas, claro, aquilo foi
também um gesto automático, protocolar, como coçar o saco para um frentista de
posto de gasolina.
Não fiquei ofendido, apenas surpreso. Pensei com meus botões:
quantas vezes, em um ano, um político aperta a mão de pessoas estranhas que
encontra pela frente? Eu não seria capaz de suportar, nem por um dia, um
serviço desses. Aliás, com raras exceções, sempre procurei me manter distante de
políticos. Prefiro os artistas. Se Bill Evans viesse me apertar a mão, eu me
ajoelhava à frente dele.
Mas as mãos de Bill Evans continuaram a brincar nas teclas do
piano, agora com Autumn leaves. Nosso ônibus começava a subir a ponte do
Rio Pinheiros. Pensei: uma boa máscara no nariz sempre será útil, com ou sem
pandemia, quando se passa por esta região da cidade. Pela janela, observei lá
embaixo o rio lento, pastoso, minguado pela seca do outono. Diferentes governantes
prometeram torná-lo tão limpo quanto o Tâmisa. Quem se lembra disso? Entra ano,
sai ano, e o Pinheiros continua atulhado de detritos e de bosta humana. Imagem
perfeita da política brasileira, onde navegam à vontade todas as cepas de escroques
e picaretas de que se tem notícia, todos de gravata, fartos de benefícios, neste
país de miseráveis.
Olhei para a direita, olhei para a esquerda. O mesmo
panorama. A cor da água do rio, entre pardacenta e arroxeada, me fez pensar em
chocolate. E depois na história do Toddy e do Nescau, conforme a avaliação
política feita pelo passageiro antes sentado à minha frente. Embora ele já
houvesse desembarcado lá atrás, no cruzamento da Faria Lima, suas palavras voltaram
a ecoar na minha cabeça, junto aos acordes do piano de Bill Evans. Retifico: ele
executava When autumn comes, não Autumn leaves. Confundi os nomes,
como poderia tomar Toddy por Nescau.
Ambos podem satisfazer a mesma pessoa, embora, conforme me
disseram, o primeiro seja um pouco mais adocicado. De qualquer forma, a maior
diferença entre eles não está no sabor, mas nas embalagens. Uma amarela, outra
vermelha, como para vender a ideia de um contraste que o comprador jamais
encontrará nos produtos. Nas prateleiras dos supermercados, aparecem sempre
juntos. Pensei em Rômulo e Remo, lado a lado, transfigurados nos dois próceres
políticos, mamando nas tetas da mesma loba. O Brasil enfrenta seu pior momento,
creio, desde que me entendo por gente.
Quando o ônibus ultrapassou a ponte, tomando a Avenida
Francisco Morato em direção à Zona Oeste, esqueci a semelhança entre Rômulo e
Remo, os gêmeos rechonchudos, para me perguntar então qual seria o grande
contraste entre Lula e Bolsonaro. Descartada a estatura física, que não vem ao
caso, pensei que a maior diferença se situa no campo cognitivo. Um deles,
esperto, come a banana e joga a casca para trás, fazendo escorregar e cair aqueles
que vêm em seu encalço. O outro, ao contrário, lança a casca da banana à frente, criando uma armadilha para si próprio.
Já a maior semelhança entre os dois é menos evidente, porém mais
essencial, pois lhes garante a devoção dos seguidores. Ambos, Lula e Bolsonaro,
realizaram feitos prodigiosos. Lula saiu do agreste pernambucano em pau de
arara, em São Paulo foi engraxate e torneiro mecânico, liderou greves,
mobilizou multidões e, a despeito de sua cultura rasa, cativou uma faixa mais
culta e rebelde da classe média que jamais encontraria, entre os seus, alguém em
condições de chegar ao poder.
Em um círculo bem diferente, Bolsonaro também foi alguém que
deu a volta por cima. Escanteado no Exército, o obscuro capitão da reserva acabou
por se tornar chefe de uma nova leva de generais que, com ele no palácio, teve chance
de voltar ao poder sem engatilhar armas nem botar tanques nas ruas. Um regime
militar em embalagem civil. E isso lhes veio de graça, sem o ônus de tentar
outro golpe que nem aquele de 1964.
Tanto no caso do capitão quanto no do metalúrgico, estamos
diante daquilo que hoje se costuma chamar história
de superação, ou seja, a trajetória quase mágica de alguém que parte de um
patamar muito baixo e consegue dar o pulo do gato. Isso fascina as pessoas. Ninguém
fica indiferente diante de um sujeito que, contra todas as probabilidades,
atinge a posição de destaque que tantos ambicionam. É essa a semente do mito,
que nutre a nossa alma. Porém, se é um néctar na mão do artista, é também uma
arma na mão do farsante. Uma história de superação funciona na novela das nove,
mas não credencia ninguém a dirigir uma nação. Eis por que, volta e meia, o
Brasil dá com os burros na água.
Precisamos de um estadista, alguém capaz de enxergar além das
colinas, e não de falastrões que nos momentos difíceis nos vêm com eufemismos
irresponsáveis como “marolinha”, “gripezinha” e coisas assim. Lula e Bolsonaro
colaboram para que a boçalidade prevaleça, em favor de ambos. Um precisa do
outro. O sucesso de um é o reforço do outro, que o sucederá no momento seguinte,
pois o brasileiro tem tendência bipolar. Talvez nos convenha um governante que
não pertença à linhagem dos políticos profissionais, especialistas em cavilações
e barganhas. Não precisamos de heróis, de mártires, enfim, dos protagonistas
das tais histórias de superação. Precisamos virar a página. A maior história de
superação, no Brasil, é viver honestamente.
Vencida a sequência de vias de tráfego pesado, nosso ônibus se
enfiou pelos meandros da Zona Oeste, onde predominam as ruas calmas e
arborizadas. Nessa parte capilar do trajeto, os passageiros se reconhecem. Passam
a conversar entre si como fazem os vizinhos nas cidades do interior. Notei que
o cobrador bolsonarista, mais calmo, livre da presença da pertinaz petista,
conversava de forma amistosa com moradores das redondezas que se preparavam
para desembarcar.
No meu fone de ouvido, The summer knows chegava ao fim para que se iniciasse a magnífica Invitation. Ali está quase tudo que um ser humano é capaz de fazer nas teclas de um piano. Mas Invitation assinalava o final da sequência de Bill Evans. Também eu iria desembarcar do ônibus dois ou três pontos adiante. Ainda precisava dar uma passada no supermercado. Não sei vocês, mas de minha parte, entre Toddy e Nescau, prefiro Ovomaltine.