No fim do último verão, completei cinquenta anos em São Paulo. Meio século. Quando me dei conta disso, caíram-me os butiás do bolso.
Mudei-me para cá no começo de março
de 1972. Antes já tinha vindo a passeio, talvez meia dúzia de vezes, em visita
a um irmão mais velho. Entre a infância e a adolescência, desenvolvi um
fascínio pelas luzes e pelo alvoroço das cidades grandes. Cheguei a lamentar
não ter nascido numa delas.
Hoje, claro, isso me parece uma
tolice. Até porque, se houvesse nascido em São Paulo, não teria tido a chance,
aos dezoito anos, de desbravá-la da maneira como desbravei. Trocar a província
pela metrópole é um rito de passagem tão importante quanto procriar ou entrar
no mundo do trabalho.
Na juventude, meu sonho era escrever
e viajar. São Paulo me propiciou isso. Sou muito grato a esta cidade. A este
horror de cidade. A este maravilhoso horror de cidade. Tentarei me explicar,
para não parecer que acabo de cuspir no prato em que comi meu primeiro filé à parmigiana.
Proponho ao meu paciente leitor, como
ponto de partida, a seguinte pergunta: o que faz uma cidade grande ser
uma grande cidade? Em suma, uma metrópole. Certamente não será apenas
sua extensão geográfica, pois, se assim fosse, viver em qualquer um dos 2.500
bairros de São Paulo, sem sair dali, seria o mesmo que viver numa cidade do
interior, o que não é verdade. A pulsação é outra. Isso dá para sentir, de cara,
no mais modesto bar da periferia paulistana. A vida diminuta que transcorre ali
faz parte de uma teia, de um sistema muito maior. Então eu diria o seguinte:
uma metrópole não se define pelo tamanho, mas pela multiplicidade de conexões
que propicia às pessoas.
E pelos contrastes. Uma das coisas
que mais me impactaram em São Paulo foi a drástica discrepância entre a tensão
dos dias úteis e o marasmo dos domingos. Claro que isso existia também em Rio
Grande, minha cidade no extremo sul, porém em grau bem menor. A caminho do
cinema, sentíamos a ausência do Homem da Cobra, o ambulante que fazia ponto ao
lado do coreto da Praça Tamandaré. Não muito mais que isso.
Na metrópole, quando a vida para de
repente, num domingo chuvoso, o recém-chegado pode ser pego de surpresa por uma
melancolia proporcional ao tamanho da cidade. Um vazio, um negócio que é tipo
uma inhaca existencial. A língua inglesa expressa isso, com elegância, numa
única palavra: nothingness.
Quando ouço a voz plangente de Ray
Charles em Georgia on my mind, recordo meus primeiros domingos em São
Paulo, cinzentos e solitários. E se Tito Madi vier na sequência com o
samba-canção Gauchinha bem querer, bah, aí dá perda total. Pronto, caio
em prantos.
São Paulo me ensinou – na marra – a
lidar com forças opostas. Uma delas, centrípeta, me puxa para dentro dela de
forma irrevogável, como se só aqui fosse possível contar com os interlocutores
e estímulos dos quais necessito. Ao mesmo tempo, outra força violenta, porém
centrífuga, me empurra para o mais longe possível deste inferno urbano em que
todo mundo disputa espaço o tempo inteiro, sem trégua.
Fugi de São Paulo várias vezes. Fugi
e voltei. Cada vez que voltei, encontrei coisas novas, ideias novas, pessoas
novas. Foi sempre um recomeço, uma oitava acima, não uma simples continuação.
Um novo trabalho, um novo bairro para morar.
Meu atual endereço é o décimo, em meio século, sem contar outros tantos em
que fui acolhido por amigos generosos durante semanas ou meses, em fases de
transição ou de apertos financeiros.
Esses altos e baixos, hoje não os
lamento de forma alguma. Ao fazer de mim um peregrino dentro dela própria, esta
cidade me treinou para viver em diversas outras, dentro e fora do país, onde me
estabeleci durante temporadas mais curtas ou mais longas. Mesmo estando
distante de São Paulo, ela sempre permaneceu no meu horizonte, como uma
estrela-guia. Acho que esse sinal me foi lançado na primeira vez que estive
aqui, aos sete anos de idade, em julho de 1961, meses depois da inauguração do
antigo e já desativado terminal rodoviário da Luz.
Em março de 1972, quando vim para
morar, encontrei a cidade ainda sob impacto do incêndio do Edifício Andraus. No
Sul, dias antes, havíamos acompanhado pela televisão a tragédia ocorrida na
Avenida São João. No entanto, visto de longe, a mais de mil quilômetros de
distância, aquilo não era tão diferente das cenas mais impactantes das novelas.
Na província, os fatos da metrópole, fossem ou não ficcionais, eram coisas que
ocorriam em um mundo que não era o nosso.
Nessa mesma época, São Paulo
celebrava o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Mas que catso
vinha a ser aquilo? Eu não fazia ideia. Era apenas um ex-estudante de
eletrotécnica, sem grande verniz cultural, que de repente decidiu trocar a
régua de cálculo pela máquina de escrever. A celebração do modernismo foi um
ótimo momento para desembarcar aqui. O vento soprou a meu favor. Tive chance de
assistir, em cópias novas, aos grandes filmes do Cinema Novo. Por uns trocados,
vi subir ao palco músicos do calibre de Egberto Gismonti e Wagner Tiso.
No curso de comunicações sociais,
encontrei um ambiente receptivo e estimulante. Os veteranos programaram um
churrasco em um sítio para receber os calouros. Achei ótima ideia. Eu ainda,
naquela época, era um carnívoro voraz. Imaginei suculentos espetos de costela a
perder de vista. Enfim, carne para salgar com avião agrícola, como se dizia no
Sul. E uma cordilheira de cerveja gelada. Serramalte, claro, ainda um emblema
da cultura gaúcha, para aplacar não apenas a sede, mas também a saudade.
Ao chegar no sítio, foi um choque
cultural. O que chamavam de churrasco não passava de modestos bifes, talvez de
acém, sei lá, que fritavam na chapa, enfiavam no pão francês e comiam em pé, na
forma de sanduíche, com molho vinagrete. * La puta que los parió!;
precisei dizer apenas para os meus botões, evitando assim ser descortês com
meus novos colegas. Além disso, acho que nenhum deles tinha ouvido falar da
nossa Serramalte, que no Sul considerávamos a melhor cerveja do mundo, ainda
que para isso fosse necessário reduzir o mundo às dimensões da província.
Isso, no fim das contas, foi até bom
para mim. Na falta da Serramalte, pela primeira vez, tive a oportunidade de
provar uma cerveja que não vinha em garrafa de vidro, e sim em uma latinha
amarela de folha de flandres. Essa era uma grande novidade do início da década
de 1970, no Brasil. E se o Brasil excluía o Sul, azar do Brasil.
Ou melhor, azar meu. Já estava mais
do que na hora de eu aprender a me portar como um brasileiro. Ah, se meus
antigos colegas do curso de eletrotécnica pudessem me ver ali, com aquela panca
de futuro jornalista, emborcando uma Skol! Eu teria até feito uma selfie,
se isso existisse. Uma selfie que seria uma farsa, como são as selfies.
Pois, no fundo da alma, eu continuava a aportar que em nenhum recanto do
sistema solar, ou fora dele, poderia haver uma cerveja capaz de superar a
Serramalte. Só ela, em garrafa de vidro, guardava o sabor da minha terra
distante.
Apesar desse primeiro churrasco que
não foi churrasco, São Paulo logo iria começar a ampliar o meu paladar
provinciano, abrindo-o como se fosse uma sanfona. Comida chinesa, filé à
cubana, molho tártaro, hambúrguer em todas as suas variações, sanduíche
americano, cortado com a espátula ainda sobre a chapa, frutas tropicais de
todas as cores e formatos, jaca, maracujá, jabuticaba... Nada disso se conhecia
em Rio Grande. E nem mesmo em Pelotas se poderia imaginar um sorvete de pétalas
de rosa. Também valeria um selfie, creio. Esse, no balcão da lanchonete
Jotas da Vila Buarque.
Em Pinheiros, fui presa fácil dos
quilométricos filés à parmigiana do Degas. Os garçons experientes
os cortavam com a ponta da colher, que a seguir usavam para enrolar no ar os
fiapos de queijo, como se fossem fios de ovos, ao longo do curto trajeto da
travessa até os pratos. Aqueles senhores de gravata-borboleta gostavam de
exibir suas habilidades de ofício diante do olhar respeitoso de um grupo de
universitários famintos. Afinal de contas, a revolução só podia ser feita de
barriga cheia.
Precisei de força de vontade para
vencer minha repulsa inicial à garapa. Tinha aspecto de urina, com o perdão da
palavra. Tampouco me encantei muito com o feijão carioca, usado em São Paulo no
dia a dia, cujo marrom me parecia similar a algo que, desta vez, prefiro
omitir. Depois, superei essa fase. Contudo, sempre me faltou coragem para comer
rãs. E até sou grato por não tê-la em relação à dobradinha, que no Sul
conhecemos por mondongo. Já na mais longínqua infância, quando botavam aquele
troço para cozinhar na panela, eu sumia de casa.
Em São Paulo, nos primeiros tempos,
tive a sorte de ser muito bem acolhido nas casas de Francisco Moura, Alceu
Nader e Pedro Monteiro, que depois se tornariam amigos para a vida toda. A
convivência com essas famílias me ensinou a apreciar o café fresco, coado na
hora. No Sul, o costume era bem diferente. Fazia-se grandes quantidades de um
café ralo, aguado, que permanecia no bule durante alguns dias, para ser
requentado diversas vezes. Uma porcaria, enfim, como se pode imaginar.
Aprendi com os paulistas que o café,
para ser bom, tem que ser feito no mesmo instante em que o espírito, não apenas
o paladar, o solicita. Com a metáfora, ocorre algo semelhante, descobri depois,
quando escrever se tornou o meu ofício. Se eu usar em um texto, por exemplo, São
Paulo, a locomotiva do Brasil, estarei apenas me apropriando de uma
metáfora formidável, perfeita para a época áurea das ferrovias, mas que o tempo
degradou, como o café no bule. Tornou-se, portanto, um clichê. Este,
reconheço, também não é um termo que as novas gerações entendem tão bem quanto
a nossa. Quando algum aluno às vezes me pergunta o que é um clichê, e por que
não se deve usá-lo no texto, costumo responder: > Vá até o Rio Grande do Sul
e prove um café caseiro.
Já quanto ao chimarrão, os gaúchos
são tão zelosos e exigentes quanto os paulistas em relação ao café. O mate precisa
ser feito na hora, de determinado jeito, e depois tomado em ritmo de ritual. Aprende-se
isso na infância. É tarefa ingrata ensinar um paulista a tomar mate. Apressado,
ele tenderá a revirar a bomba na cuia como se fosse um canudo no milk-shake.
Ou a alavanca de câmbio do automóvel. O paulista é um cosmopolita. Resolve
as coisas do jeito dele. Só me senti de fato um morador de São Paulo quando
peguei a mania de exigir café fresco, feito na hora, várias vezes por dia, como
fazia o Alceu, quando ouvíamos os primeiros discos de Gismonti.
Assimilei também muitas palavras
novas em São Paulo: lousa, carteira, farol, breque, vitrola, treme-treme,
quitinete, criado-mudo, mexerica, marmita, mistura. Tudo isso, ouvi aqui pela
primeira vez. Expressões como “pra viagem” ou “de domingo” me soavam estranhas
nos primeiros tempos. Mas nenhuma tão engraçada quanto “puxar o tapete” de
alguém, algo comum no mundo corporativo. Ao ouvi-la, eu imaginava uma cena de
desenho animado. No Sul, diríamos “pisar no poncho” ou “dar uma rasteira”. Mas
“puxar o tapete”, convenhamos, é muito mais coreográfico.
Também me chamou a atenção, vivendo em São
Paulo, ouvir dizer que duas pessoas estavam casadas, quando no Sul se
usava a expressão eram casadas, dando a ideia de algo irreversível,
definitivo, como quando se escolhe um time para torcer. Era um detalhe
significativo. Logo pude perceber que, na metrópole, todos os aspectos da vida,
incluindo as relações humanas, tinham um caráter mais flexível e transitório do
que na província. Isso valia até para as regras de snooker, que no Sul
eram mais severas e punitivas.
A flexibilidade do Sudeste, conforme
percebi, poderia representar uma oportunidade para rever valores e ampliar
horizontes. No Sul, as coisas tendem a ser mais nítidas, o que é bom, mas
também mais rígidas, o que é ruim. Dançar conforme a música nem sempre
significa uma corrupção do caráter, como nós, sulistas, estamos sempre
dispostos a considerar. Eu vinha de uma cidade austera, espartana, surgida de
uma guarnição militar cravada numa península arenosa com formato de um punho
fechado. Como me dispunha a viver no centro do país, ambiente multifacetado,
cosmopolita, a primeira coisa a fazer era afrouxar os dedos da mão, um a um, e
aprender a tocar todas as cordas da harpa tropical que – basta olhar o mapa –
traça o feitio do Brasil.
Fui criado em uma cidade costeira,
plana como uma mesa de snooker, quando lá ainda predominavam as casas
baixas e os espaços abertos. Por conta disso, tanto a aurora quanto o
crepúsculo eram um processo lento, que inspirava contenção no temperamento de
seus habitantes. Em São Paulo, encontrei o oposto disso. Cidade de planalto,
apinhada de prédios encravados entre vales e colinas, ela só se revela a quem
consegue entender sua topografia. Mesmo sendo ávido caminhante, sempre detestei
ladeiras, calçadas com degraus, desníveis no terreno, como se tais coisas
fossem uma espécie de celulite do chão, defeitos das cidades.
Demorei a me acostumar com as colinas
de São Paulo, as repentinas enxurradas de verão, que em minutos podem tornar o
ambiente urbano hostil e ameaçador. Criado em uma cidade pacata e lisa, de
repente me vi caminhando em ruas inclinadas e tumultuosas, calçadas com cheiro
de gás, sob o barulho de metralhadora dos helicópteros e o estrondo dos aviões
a jato, coisas que eu só conhecia dos filmes de guerra. Tudo isso me deixava
aturdido. O crepúsculo rápido, em São Paulo, não me dava tempo de pensar.
Mas cheguei a pensar em voltar para o
Sul, ao menos por instantes, cada vez que me via diante da enorme ladeira da
Rua Alagoas, no último quarteirão do meu trajeto para a faculdade. Vencida essa
etapa penosa, voltava a me convencer de que meu lugar era mesmo em São Paulo.
Lá dentro da faculdade, eu podia contar com professores excelentes (um deles,
genial) que me davam justamente aquilo que eu tinha vindo buscar na metrópole:
uma nova maneira de olhar o mundo. Não se volta para a província após ser aluno
de Isaac Epstein.
Meu primeiro endereço em São Paulo
foi em um prédio situado numa alça da Nove de Julho, a mais tradicional das
grandes avenidas de fundo de vale que são a marca registrada da cidade. Naquele
trecho, cerca de duzentos metros antes da boca do túnel de acesso aos Jardins,
os edifícios foram construídos em áreas escavadas nos taludes das colinas,
formando paredões maciços, sem intervalos.
Em centenas de janelas, as luzes
permanecem acesas a maior parte do dia. Os vidros sempre fechados, não tem
outro jeito, para atenuar o barulho e a fuligem do trânsito. Lugar sombrio,
astral pesado. Amanhece tarde, anoitece cedo. Eu sentia saudade da amplidão do
Sul, os “abismos horizontais”, como se costuma dizer de nossos vastos
descampados costeiros. É que nem estar no meio do mar, embora estando em terra
firme. Uma outra forma de nothingness, mais serena e luminosa,
enriquecida pela sensação de liberdade.
Nas trevas enfumaçadas da Nove de
Julho, eu morava inicialmente com mais dois sujeitos bem mais velhos que eu,
num apartamento térreo, mais escuro ainda, e a janela do nosso único quarto
dava para a lateral do prédio. Embora o nome do edifício fosse cintilante,
Astro Sul, para nós lá dentro era sempre noite, como numa mina de carvão da
Inglaterra. Precisávamos manter a luz acesa e a cortina fechada, o tempo inteiro,
para os transeuntes não nos verem em cuecas, nem virem nos encher o saco,
pedindo informações. Em geral, queriam saber o valor do condomínio.
Aliás, era um valor bastante
acessível. O Astro Sul, com sua fachada em pastilhas rosadas e azuis, era já
então um imóvel de reputação declinante, onde as pessoas moravam só até
conseguir coisa melhor. Vivia ali uma fauna urbana das mais heterogêneas.
Costureiras e aposentados eram obrigados a compartilhar os elevadores com seres
da noite, entre garotas de programa, atores dos teatros do Bexiga e bagaceiros
de diversos tipos. Tratava-se, em suma, de um treme-treme, outra
expressão paulistana que me agradava tanto quanto aquela já mencionada, puxar
o tapete, pois ambas reproduzem com maestria a instabilidade da existência
humana neste vale de lágrimas.
Mesmo vivendo na sombra do Astro Sul,
meu lugar ao sol não demorou a surgir. Uns dois ou três meses depois de chegar
em São Paulo, por meio de um anúncio de jornal, consegui emprego como revisor
de textos na mais importante editora de revistas do país, a Abril, para ganhar
um salário bem acima das minhas pretensões. Era para dar um salto e um soco no
ar, como Pelé. Esse emprego me permitiu dispensar o apoio financeiro da
família, o que foi ótimo, mas teve também um efeito colateral negativo: deu-me
uma visão ilusória do que seria a vida profissional em uma grande cidade.
Na província, eu jamais teria sonhado
em conseguir um emprego desse nível, recém-entrado na faculdade, a menos que
fosse apadrinhado por uma figura influente, e olhe lá. Na metrópole, como os
caciques estão longe do olhar dos índios, tive a impressão de que poderia, para
todo o sempre, chegar aonde quisesse sem precisar da indicação de ninguém, só
por minhas próprias forças, apenas fuçando anúncios nos jornais. Nada como a
inocência dos dezoito anos. Nada como uma Serramalte.
Deixei o Sul, entre outras coisas,
por perceber que o espaço profissional era dominado por panelinhas. O espírito
de patota conta a favor dos medíocres. Isso, eu sempre soube. O que eu não
sabia é que se trata de um fenômeno universal. Sem indicação, não se chega a
lugar algum. Não devo ter lido Os três mosqueteiros, na infância, com a
devida atenção aos detalhes. D’Artagnan não teria se tornado mosqueteiro, em
Paris, se não houvesse partido da Gasconha levando no bolso uma carta de
recomendação. O jogo é esse. Entra quem quiser.
Houve momentos em que me senti
sozinho, desamparado, logo que cheguei em São Paulo. Naquela época, era difícil
até encontrar erva-mate. Para tomar chimarrão, só mesmo nas arquibancadas dos
estádios, em meio à torcida colorada, quando o Internacional vinha jogar aqui. Nunca
deixei de comparecer, mesmo debaixo de chuva, sentindo febre e calafrios.
Em meio à torcida colorada, pequena
porém aguerrida, sempre me deixei comover no breve convívio com aqueles
sujeitos que vinham do Sul em ônibus fretados, cinquenta horas de estrada,
entre ida e volta, apenas para assistir a um jogo que durava uma hora e meia.
Mas o que são cinquenta horas, ou mesmo cinquenta anos, quando se trata das
coisas do coração? Era o que eu me perguntava, na arquibancada, enquanto
compartilhava o chimarrão com desconhecidos que nunca mais iria rever. Acima de
tudo, o Inter. Isso não precisava ser dito. Todos sabíamos. E sabíamos também
que o melhor remédio para a solidão, senão para a gripe, era ver surgirem na
boca do túnel as camisetas vermelhas.
Por décadas, o Internacional amargou
um complexo de inferioridade em relação aos paulistas. Mesmo quando jogava bem,
saía na frente, depois se mostrava incapaz de suportar a pressão, cedia
terreno, levava a virada. Isso me doía. Não só como torcedor, mas também como
um terneiro disposto a virar um touro, em meio às provações da metrópole.
Não é proibido querer viver uma vida
parecida, nem que seja um pouquinho, como a de D’Artagnan. Vim para a cidade
grande porque queria estar entre os grandes. Se meu destino fosse ser um
pequeno entre os grandes, paciência, nem sempre se ganha o jogo. Mesmo assim,
eu preferia isso, mil vezes, do que ser um grande entre os pequenos. Neste
último caso, não se é testado de verdade.
No meu primeiro ano em São Paulo, o
jogo mais eletrizante não foi aqui, mas lá no Beira-Rio, entre as seleções do
Brasil e do Rio Grande do Sul. Na tarde do sábado 17 de junho de 1972, o
estádio do Internacional recebeu o maior público da sua história, estimado em
torno de 115 mil espectadores. Deve haver certo exagero nessa cifra, mas não
importa.
Era para ser uma simples partida
amistosa, mas acabou por ganhar quase uma atmosfera de guerra civil de caráter
separatista. Como se sabe, às vezes um melindre qualquer, irrelevante e
circunstancial, como foi o caso, tem o poder de reativar uma mágoa antiga e
profunda. Isso vale tanto para um indivíduo quanto para um povo inteiro.
Ao longo da história, o Rio Grande do
Sul sempre foi um recanto esquecido e não muito valorizado pelo resto do país.
Só se lembravam de nós como fornecedores de gado e, claro, como bucha de canhão
nas peleias contra os castelhanos. Nunca tivemos uma relação justa e paritária
com o governo central, pelo menos não nos moldes dos estados situados mais
perto dele, em termos geográficos e políticos. O gaúcho é alguém que, pelo
menos uma vez na vida, mesmo secretamente, já se perguntou se é bom negócio
fazer parte do Brasil.
Não tenho essa resposta. Mas estive
bem perto dela, confesso, durante os noventa minutos daquele sábado de junho em
que as seleções brasileira e gaúcha se defrontaram. Na opinião de pessoas
sensatas, um jogo desse tipo, que instigava paixões regionalistas, jamais
deveria ter sido realizado. Talvez estivessem certos, penso agora. Mas na
época, meio século atrás, em meus frágeis e ardentes dezoito anos, deixei-me
embriagar pelo ardor farroupilha. Enfurnado no sombrio apartamento térreo do
Astro Sul, radinho colado ao ouvido, torci como um doido pela seleção gaúcha.
Sim, como um doido. Só um doido seria
capaz de esquecer, durante noventa minutos, que do outro lado estavam as mesmas
camisetas amarelas que nos haviam feito chorar de felicidade apenas dois anos
antes, na conquista do tricampeonato mundial. Aquele foi o time dos nossos
sonhos. O maior de todos. No entanto, agora era preciso destroçá-lo, amassá-lo
sob nossas chuteiras, nossas botinas, assim como se amassa a latinha amarela da
cerveja Skol antes de jogá-la no lixo. O Brasil, inimigo mortal, ia ter que
provar o gosto da Serramalte.
Nosso time era mais do que uma
seleção gaúcha. Tinha no centro da área, lado a lado, o chileno Figueroa e o
uruguaio Ancheta, dois zagueiros muito superiores aos da seleção brasileira,
além do atacante argentino Obberti. Não seria um despropósito considerá-lo uma
seleção do Cone Sul. É assim mesmo, como um reino meridional mais amplo,
autônomo, passando por cima das fronteiras secas, que o Rio Grande do Sul pensa
em si próprio, de vez em quando. Sobretudo no inverno.
No sudeste do Brasil, tem-se a noção
de que os gaúchos, assim como os gascões no sudoeste da França, são tipos meio rudes
e topetudos. Não sei se essas seriam as palavras exatas. Mais rígidos, sem
dúvida, como já frisei, e também mais diretos. No Sul, em caso de dúvida, optamos
por dizer abertamente, na bucha, aquilo que as pessoas no centro do país
preferem dar a entender por um eufemismo ou uma atitude esquiva.
A gramática da metrópole é outra.
Talvez por causa do ritmo da vida. Em São Paulo, principalmente nas relações
profissionais, a omissão da resposta é postura aceitável, não deveria ser
considerada uma descortesia. Não se dá retorno algum, em vez de uma resposta
negativa. No Sul, ao contrário, a franqueza é (ou era) de praxe. Trata-se de
uma maneira de honrar o interlocutor. Talvez uma forma sulista de afeto. Senti
falta disso, quando recém-chegado em São Paulo.
Cheguei também um pouco ressabiado em
relação às mulheres. Entre meus amigos de adolescência em Rio Grande, que
também moravam nas proximidades do canto sudoeste da Praça Tamandaré, eu havia
sido o primeiro a me iniciar na vida sexual, tirando o lacre aos quatorze anos,
se não me falha a memória. Na vida afetiva, em contrapartida, eu era o
lanterninha da turma. Aos dezoito anos, era o único entre eles que jamais havia
tido uma namorada. Nem mesmo uma namoradinha “de portão”, se me permite usar
essa expressão arcaica, porém simpática.
Não creio que eu estivesse entre os
sujeitos mais feios da cidade, mas talvez entre os mais tímidos. Sentia-me no
mato sem cachorro, isto é, sem namorada, porque não gostava de dançar. Aliás,
não sabia. Às vezes, me arriscava a entrar nos salões de dança apenas por
obrigação, e ali me sentia tão pouco à vontade quanto um crocodilo numa loja de
cristais. Em geral, a guria me dispensava logo após a primeira música, fato que
eu encarava nem tanto como um demérito, mas antes como um alívio, enquanto via
a parceira pisoteada se afastar de mim lacrimejando ou até manquitolando.
Tornei-me especialista em lamber minhas
próprias feridas por meio de um falso desdém. Cada vez que levava uma invertida
dessas, dizia para mim mesmo que aquelas gurias provincianas nem eram lá grande
coisa, só se interessavam por assuntos locais e canções românticas. Talvez
fosse verdade, mas não uma verdade absoluta. Havia aquelas que fugiam à regra,
mas não eram muitas, e pareciam fora do alcance de um sujeito que não soubesse
dançar. Na província, bem mais do que na metrópole, muros invisíveis separam as
pessoas que frequentam os mesmos locais. Qualquer um os enxerga. Um tímido é
capaz de enxergá-los até quando não existem.
Vi tudo isso desaparecer como num
passe de mágica, quando vim para São Paulo. Estando no ambiente arejado de uma
faculdade de comunicações sociais, em que se discutiam ideias, logo me dei
conta de que ali não tinha a menor importância saber dançar ou cumprir
protocolos burgueses. Mesmo um trapalhão podia sonhar em ter certo sucesso, ao
ciscar junto às moças, se fosse capaz de se mover entre copos de cerveja e
sustentar conversas intelectualizadas. Era tudo o que eu queria. Junto a uma
mulher bonita, independente, cheia de ideias, já dava para encarar até mesmo
uma Skol.
Encantei-me com as feministas. Tão
resolutas, tão opinativas, tão informadas. Sabiam tudo sobre orgasmo. Sabiam
como e quando a ditadura dos milicos iria por fim desmoronar. Sabiam quais
filmes estavam por entrar em cartaz no Bijou e no Belas Artes. Nomeavam
diretores de cinema que um gascão gaúcho como eu, matraqueado em eletrotécnica,
tinha de anotar em guardanapos para não esquecer.
Mulheres do balacobaco. Falavam de
livros e escritores importantes, tudo assim ao natural, quase em tom de
intimidade. Eram capazes de citar os nomes de todos os modernistas, de
Guilherme de Almeida a Mário de Andrade, mais rápido até do que eu, se fosse o
caso, estaria disposto a recitar a escalação do Internacional, de Schneider a
Escurinho.
Era por essas mulheres que eu, ao
chegar do Sul, tendo cometido por lá tantas atrocidades nos salões de baile,
trazendo comigo a solidão como resultado da incompetência, estava agora
disposto a me apaixonar. Foi por essas mulheres que me apaixonei. Com o tempo,
porém, também em relação ao sexo oposto, me dei conta de que as coisas na
metrópole nem sempre eram o que pareciam ser. Quando menos se espera, mesmo em
meio ao balacobaco, entre olhares que se devoram na mesa mais efervescente do
Riviera, pode emergir uma debutante do fundo da alma de uma feminista. Todo
cuidado é pouco. Nada de baixar a guarda. Diante de um discurso inflamado, as
primeiras vítimas são sempre os trouxas. Eu era um deles.
Quando se chega a uma grande cidade,
vindo de uma cidade pequena, é como se recebêssemos um binóculo de presente.
Aprendemos a usá-lo de dois modos. Ao olhar pela extremidade menor do
instrumento, vemos aumentadas algumas coisas do nosso torrão natal que não
éramos capazes de enxergar antes, quando estávamos lá. No momento seguinte,
viramos ao contrário os tubos do binóculo, olhando então pelos bocais mais
largos. Vemos então o nosso mundo anterior distante no espaço e no tempo, como
se não nos dissesse respeito. Em ambos os casos, tudo ganha nitidez. As coisas e as pessoas revelam primeiro sua
alma, para depois revelar sua forma.
A política é apenas forma, mas uma
forma capaz de embriagar a alma. Em meus primeiros tempos em São Paulo, tive a
oportunidade de me mover em três diferentes grupos de pessoas. O primeiro
formado pelos colegas da faculdade, bezerros da ditadura como eu próprio. O
segundo, por colegas de trabalho com alguns anos a mais, que tinham vivido a
época das passeatas contra o regime e depois ingressaram em organizações
clandestinas. O terceiro, por boêmios entre trinta de quarenta anos, cujos anos
de formação haviam transcorrido antes do golpe de 1964. Foi altamente
proveitoso, para mim, apreciar os fatos nacionais e a vida na metrópole a partir
de pontos de vista diferentes, conforme o grau de maturidade dessas pessoas.
Esses três grupos, contudo, tinham um
traço comum. Eram formados por gente que se considerava de esquerda, em suas
diversas vertentes. Embora muitas dessas pessoas fossem por demais sectárias,
opiniáticas, e após algumas cervejas falassem mais que o Homem da Cobra, eram
certamente cultas, inteligentes, sintonizadas nos temas importantes daquele
momento. Por essa razão, identifiquei-me naturalmente com suas ideias
políticas, porém naquele processo, vejo agora, havia de minha parte mais
fascínio que reflexão. Atribuí uma superioridade moral e intelectual da
esquerda sobre a direita, o que é um equívoco. E outro equívoco, talvez, foi
deixar o primeiro se transformar em desilusão.
Sempre me coloquei na posição de um
livre-pensador, flertando às vezes com o niilismo, moléstia autoimune que
consegui manter sob controle. Jamais me convidaram para fazer parte de qualquer
organização política. Fizeram bem. Talvez me vissem, com olhar indulgente, como
um patriota equivocado. Em linhas gerais, eu me considerava um sujeito
de esquerda, por afinidade intelectual e pelo meu modo de vida, mas tinha
também posições que podiam ir desde um anarquismo difuso até o campo
conservador, sem chegar a ser um reacionário. Talvez eu fosse algo do tipo de
um socialista lisérgico. Mas não me peçam para explicar o que seja isso.
Outra coisa que não consigo explicar
direito é a alquimia que ocorreu em mim, durante o primeiro ano em São Paulo,
quando assisti ao filme Roma, de Fellini. Saí atônito do Belas
Artes, como se houvesse acabado de ter uma revelação divina. Mal consegui
cruzar a Consolação para ir tomar uns tragos no Riviera.
A partir daquele dia, entre todos os
grandes cineastas que passei a curtir e acompanhar, Fellini tornou-se aquele
que me fisgou mais fundo. Ele transformara em imagens a trajetória de um rapaz
vindo do interior que tenta a vida na cidade grande. O tema não é novo, ao
contrário. Mas a meu ver só Fellini conseguiu, ao tratar dele, um perfeito
balanço entre a sátira e o lirismo. Aquele era também o meu modo de observar a
vida. Eu sempre havia sido um felliniano, só que não sabia disso.
Roma não deixa de ser também uma grande
reportagem. Mostra a cidade, como ela funciona, como ela se expressa no
cotidiano, tendo como fio condutor o olhar do protagonista. Eu nunca havia
visto antes um filme assim. O próprio Fellini, mediante um artifício recursivo,
entrava em cena na real condição de cineasta, durante a filmagem de Roma.
Era o mesmo efeito do tipo mise en abîme que me instigava na infância,
quando eu me detinha a observar a imagem na lata do azeite Carbonell, que se
multiplicava em si mesma até o infinito. Aquilo me dava medo. Mas não era só
medo. Era um sabor excitante que vinha depois do medo.
No primeiro ano da faculdade, fiz
parte de um grupo independente de cinema. Como a estrutura do nosso curso de
comunicação social permitia várias opções, a partir do terceiro ano, fiquei
tentado a me tornar cineasta, em vez de jornalista. Meu primeiro projeto,
pensei, seria o de fazer um filme sobre São Paulo que fosse, ao mesmo tempo,
uma reportagem urbana e uma crônica autobiográfica, mais ou menos nos moldes de
Roma, de Fellini.
Esse filme que jamais filmei haveria
de ter cenas pitorescas rodadas no centro de São Paulo. Por exemplo, a
aglomeração de transeuntes diante das vitrines das lojas de eletrodomésticos
que, no começo de 1972, exibiam os primeiros televisores em cores. Depois
vários aparelhos assim foram instalados na rodoviária da Luz. Foi algo
espetacular. Atraía até uma curiosa cepa de personagens flutuantes, que não iam
viajar para lugar algum, apenas passar a tarde de braços cruzados diante das
imagens coloridas.
Desde que eu perambulava pelas ruas
de Rio Grande, na ociosidade da adolescência, uma das minhas ocupações era
observar os desocupados. Esses tipos anônimos que, no jargão jornalístico, são
referidos como populares ou curiosos. Neles pode restar algo que
já perdemos. Sei que isso é besteira. Mas é uma besteira que, creio eu,
compartilhei com Fellini.
Os desocupados da metrópole se
pareciam muito com aqueles que, em Rio Grande, se detinham ao lado do coreto da
Praça Tamandaré em torno de um camelô pernambucano. O Homem da Cobra, como era
conhecido, falava sem parar, que nem um locutor de futebol, porém apregoando
beberagens feitas com plantas amazônicas para eliminar as lombrigas. Gostávamos
de suas modulações de voz, de seu cativante sotaque nordestino.
Em formação circular, ouvíamos aquela
ladainha mil vezes, hipnotizados pelo olhar de uma enorme e sonolenta jiboia.
De tanto em tanto, o camelô pendurava o animal ao pescoço de alguém da plateia.
As gurias tímidas se escondiam atrás das amigas, com medo de que o Homem da
Cobra de repente viesse na direção delas.
De
repente, todo o meu passado rio-grandino se tornou felliniano. Se não virei
cineasta, foi em parte por achar que, sendo jornalista, poderia contribuir para
o fim da ditadura. Ingenuidade pura. O regime militar em breve começaria a
desinflar naturalmente, sem precisar ser espetado pelo meu modesto alfinete.
Além disso, o jornalismo combativo, de denúncia, jamais me atraiu muito.
Preferia retratar tipos pitorescos e atemporais, como o Homem da Cobra, do que
figuras da cena nacional, entrincheiradas em sua hipocrisia.
Meu
filme sobre São Paulo, aquele mesmo que jamais filmei, resultou quinze anos
mais tarde no romance Sonata da última cidade. Ali está, ao menos em
intenção, o que Fellini fez em Roma: uma reportagem romanceada, quase
circense, conduzida pelo olhar de alguém que vem de longe.
Se
penso hoje nos cinquenta anos decorridos desde que vim morar em São Paulo,
deparo com duas noções de tempo que parecem contraditórias. Primeira: como tudo
isso passou tão rápido! Segunda: quanta coisa se encaixou aí dentro! Pessoas,
lugares, maneiras de pensar. Parece que vivi cinco séculos, e não meio, desde
que vim para cá.
O tempo registrado e o tempo vivido – cronos e kairós, respectivamente, para os antigos gregos – são coisas de naturezas distintas. Noventa minutos foi o quanto durou a partida disputada em junho de 1972, no Beira-Rio, entre a seleção gaúcha e a seleção brasileira. Placar final, três a três. Dentro de mim, no entanto, aquele jogo continua em andamento até hoje. E ainda empatado, meio século depois.