O primeiro milagre da Flip é transformar o centro histórico de Paraty no umbigo do mundo. Esquecemos que logo ali, do outro lado das correntes, está uma cidade brasileira (veja a foto) como qualquer outra: poluição visual, cheiro de esgoto, mamitex, igrejas evangélicas e antenas parabólicas. Ora, direis, às favas com a realidade!
Quando cheguei para cobrir a Flip, notei uma dúzia de traineiras atracadas defronte à praça. Vazias. Formavam uma seqüência de cores que tinha algo de irreal. Pensei: alguém deve ter disposto os barcos desse modo para compor o cenário da festa.
Dias antes, em São Paulo, uma amiga italiana me dizia que os panoramas rurais da Toscana são encantadores porque cada coisa que se vê (um bosque, um muro, um caminho) está ali por opção estética, e não prática. A Toscana não foi feita por camponeses, mas por artistas. Do mesmo modo, os barcos de Paraty, supus, não estariam dispostos daquele jeito por causa dos pescadores, mas dos decoradores.
Nada contra. Se a vida não vale pelas astúcias, pelas estratégias, pelas fantasias, vai valer pelo quê? E o que fazem, com palavras e frases, aqueles autores da Flip que aplaudimos com fervor, em alguns casos, senão arrumar os bosques, os barcos, os muros, os caminhos de um jeito que seus textos nos interessem mais que a vida cotidiana?
Eis o segundo milagre da Flip. Mergulhamos por cinco dias num alegre rebuliço de idéias, e até parece que no Brasil, em cada quarteirão, há um escritor para quatro leitores. Mesmo sabendo que, na realidade, a proporção é inversa: temos quatro escritores para cada leitor. O IBGE o provaria com um pé nas costas, se quisesse. Espero que não queira.
No período colonial, até o IBGE teria sido ludibriado pelo senso ficcional de Paraty. Alguém me contou que aquela profusão de portas e janelas, às vezes incrustados em fachadas soltas, sem nada atrás, já era um jeitinho brasileiro para dar um upgrade no orçamento. Contavam portas e janelas, não pessoas, para fazer uma localidade passar de freguesia a vila, ou algo assim.
Se é verdade, não sei. Importa? Paraty (a começar pelo ípsilon) é pura ficção. Com a Flip, mais ainda. Aqueles barcos arrumadinhos para a festa já eram uma história que alguém tentava contar.
3 comentários:
Belo texto, Renato. Na próxima Flip, sendo autora ou leitora, espero estar lá.
Gostaria muito de poder compartilhar desta ficção toda... Quem sabe no próximo ano?
Abraços, Modernell, boas férias cariocas.
Renato, ao ler teu texto consigo sentir o que deveria ser uma suave briza da Toscana...ooops...briza de Paraty. Belo texto.
Aracos
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