segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A FÚRIA DE POSEIDON

Quando há tempestade na economia, a mídia pronuncia a palavra Mercado como se dissesse Poseidon. Ou seja, uma entidade sobrenatural que faz o que lhe dá na telha com os mares e os ventos.

Até aí morreu Neves. Sabemos que o Mercado é nossa primeira divindade planetária. Povos de outrora pelejavam para impor suas crenças aos outros. Era a forma cabal de domínio. Hoje, de norte a sul, de leste a oeste, todos nos curvamos diante do mesmo deus, cujo tridente é o vil metal, a bagalhoça.
Não sei se devemos nos orgulhar disso.

A mídia usa expressões do tipo
"o Mercado está nervoso", "acalmar o Mercado", "o Mercado amanheceu otimista..." Nem parece que o Mercado somos nós mesmos. A soma das nossas vontades.

Justo por isso, o Mercado é cousa menos concreta que o poste, a rede de esgotos, a próxima frente fria. Tudo isso continuaria por aí mesmo que todos nós deixássemos de existir. O Mercado, não. Ele desapareceria com o último suspiro do penúltimo dos moicanos. Sim, porque o último não teria mais com quem negociar. A quem iria hipotecar sua casa?

Nos Estados Unidos, o sumo-sacerdote quer torrar centenas de bilhões de dólares para que o Mercado deponha o tridente com o qual ameaça os súditos. Responsáveis estes, já se disse, pelo sopro vital da própria divindade. Tragédia grega, hein? O cara acaba por arcar com o prejuízo da besteira cometida lá atrás, por ingenuidade. Pouco importa. Ele vai suar para pagar a conta da hecatombe. A desculpa é a mesma de sempre: aplacar a fúria divina.

Nos épicos gregos, o narrador descortina as ações dos deuses com naturalidade. Parece enxergá-las de modo tão nítido quanto o que se passa à sua volta. Nossos pósteros também vão estranhar a linguagem subserviente que devotamos à divindade do momento. O tremor nos domina quando o sumo-sacerdote diz que o tridente está tinindo, a Bolsa fechou em baixa.

As gerações futuras (mais inteligentes que nós, espero) vão se dar conta de que, no fundo, o Mercado não existe. O que existe é o mercadinho da esquina.

domingo, 7 de setembro de 2008

ALGUÉM QUE PARTE

Um antigo colega de faculdade me escreve contando sua aflição. A filha e o genro receberam boas propostas de trabalho em países distantes. Vão por um ano, mas no íntimo (acredita ele) com o desejo de emigrar em definitivo.

"Não quero ser paranóico, mas quem sabe no futuro terei que me encontrar com uma neta ou um neto com quem nunca convivi, falando um idioma que desconheço, com uma cultura da qual não saberei nada", escreve meu colega. E mais adiante: "Será que não estou fora da realidade? Será que o homem contemporâneo é tão globalizado, que se torna na prática um apátrida? Gostaria de saber o que você pensa a respeito."

Meu colega me coloca numa sinuca de bico. Falar de pátria num sete de setembro? E com essa grampolinagem que corre por aí? Mas não vou fugir do pano verde. Quem sabe até pareça patriotismo.

A boa pátria é aquela que cabe na mochila. Andar pelo mundo, vendo outras coisas, refina o nacionalismo prêt-à-porter que nos incutem na escola. Sim, aquele mesmo que os locutores esportivos trombeteiam nos jogos da seleção.

A versão saudável do patriotismo é serena, portátil, light, se diria até. Pode fazer o cara parecer apátrida, quando não é nada disso. A meu ver, a globalização no mundo dos negócios e da tecnologia não atinge as camadas fundas da nossa subjetividade. Tudo está como dantes no quartel de Abrantes.

Não, meu amigo, você não está fora da realidade. Estamos todos bem dentro dela. Mais dentro que água-de-coco, como diz o outro. Nada mais humano que a chamada "síndrome do ninho vazio", essa que você vive por antecipação. Tenho amigos às voltas com a inquietude de ver os filhos partir para longe. Ou para perto, tanto faz. Mas partir, eis o xis da questão.

Partir é sempre uma traição. Mesmo quando não é. Mas isso passa, você sabe. Não pense no ronco da decolagem. Pense em quando você desembarcar no Japão para visitar sua filha. Quando voltar ao Brasil, sua pátria será maior do que é hoje. Mas isso você não vai conta para ninguém, claro. E não esqueça: o que se globaliza é a casca. Não a água-de-coco.