Os ônibus de São Paulo exibem o brasão da cidade no costado da carroceria. Nele se lê: Non ducor duco (Não sou conduzido, conduzo). Sinto ali mais a voz do cobrador do que a do motorista.
Com batidas sutis na barra da catraca, dlim-dlim, o cobrador determina em que momento o veículo deve andar, parar, abrir ou fechar as portas. Decide quem pode viajar sem pagar, descer fora do ponto. Ele organiza o fluxo. Interage com as pessoas. O cobrador é poderoso. É ele quem mexe com o dinheiro.
Empresas de transporte urbano são máquinas de lavar dinheiro, disseram-me. Não sei. Mas é óbvio que girar a catraca é mais rendoso que girar o volante. E não é de hoje. No tempo dos bondes, cobrador era condutor. O seu lema era: "Dlim-dlim, dois pra Light e um pra mim" (não me peçam em latim). Só sei dizer que aquela mutreta talvez recebesse, hoje, o pomposo nome de derivativo.
O motorista não pode derivar nada. Tem de obedecer tudo: trajeto, horário, código de trânsito. É um solitário. O passageiro não fala com ele. Só quem fala é o cobrador, para lhe dar ordens. Dlim-dlim: duas batidinhas com uma moeda ou, se for o caso, com a aliança. O rei reina, mas não governa. O motorista dirige, mas não conduz.
Quem conduz? Os governos? Claro que não. No mundo em que vivemos, os governos só mexem no volante. Quem mexe na catraca são as corporações privadas. Hoje o interesse delas é que os governos as socorram (com dinheiro público) para que sua rangente catraca não trave em definitivo.
Não é do interesse de ninguém que venha à tona o fato de que quem conduz o ônibus é o cobrador. Nem do passageiro. Ele prefere acreditar no motorista. Diz para si próprio que aquele sujeito sentado ao volante pode, sim, fazer as coisas acontecerem a seu modo. Ao nosso modo. Queremos acreditar na democracia.
Mesmo que os governos tomem as rédeas das finanças mundiais, e as coloquem nos eixos, não acho que isso deva inaugurar uma era de estatização, como já profetizam. Tão logo passe a turbulência, o motorista vai ouvir de novo o sinal do cobrador: dlim-dlim. Nós, passageiros, nem vamos notar. Vamos apenas continuar a ler, na lataria do ônibus, aquela sonora frase em latim: Non ducor duco.
domingo, 30 de novembro de 2008
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
A IDADE DOS METAIS
Ainda recordo a placa de meu primeiro carro: CV 2912. Um Fusca 1973, amarelo, 1500 cilindradas. Ele pisca as lanternas para me mandar lembranças. Para mim, foi a extensão do Submarino Amarelo, como na canção dos Beatles.
Comprei esse Fusca quando cursava o segundo ano da faculdade. Trabalhava como revisor de textos. Um bom emprego, mas nada do outro mundo. Este mundo, sim, é que era bem outro. Para um estudante, comprar um carro zero não era nenhuma façanha. Muitos outros o fizeram. Só mudava a cor.
Comprar um carro novo, hoje, me parece algo menos próximo no horizonte de um jovem de 19 ou 20 anos que só possa contar com suas próprias forças. Sem respaldo familiar, é jogo duro.
Volta e meia, alguém se refere à década de 1960 e à primeira metade da de 1970 como "anos dourados". De fato o foram, do ponto de vista econômico, para a classe média. Com fartas oportunidades, quem se importava com os desmandos da ditadura, a carnificina nos porões? Uma minoria.
Mas essa minoria é quem escreve a história. Por isso "anos dourados" soa tão despropositado quanto "milagre econômico", na linguagem oficial. Um livro didático atual deve ser, no mínimo, reticente em relação a isso. Um dia desses, minha filha veio me perguntar algo sobre a década de 1970 e usou a expressão "anos de chumbo". Surpreendi-me. Eu não sabia que a plúmbea metáfora já era de uso corrente nas escolas.
Foi a crise do petróleo, em 1974, que transformou o ouro em chumbo. Não fosse esse fato externo, creio eu, o regime militar brasileiro teria demorado mais a entregar a rapadura. Funcionar, ele funcionava. Panis et circenses para as massas. Fuscas coloridos para os jovens da classe média.
O que marcou a minha geração foi ter vivido a prosperidade junto com a falta de liberdade. Este dilaceramento nos diferencia das gerações anteriores. Tivemos de engolir ouro e chumbo no mesmo copo.
Espero que os jovens de hoje e do futuro não precisem passar por essa mesma experiência. Não recomendo. Ela produz uma espécie de culpa misturada com nostalgia. Esse desconforto só se desfaz quando aprendemos o óbvio. O rei está nu, como sempre esteve. Mas é preciso escolher outro metal para representar os tempos idos da juventude. Ouro e chumbo são águas passadas.
Comprei esse Fusca quando cursava o segundo ano da faculdade. Trabalhava como revisor de textos. Um bom emprego, mas nada do outro mundo. Este mundo, sim, é que era bem outro. Para um estudante, comprar um carro zero não era nenhuma façanha. Muitos outros o fizeram. Só mudava a cor.
Comprar um carro novo, hoje, me parece algo menos próximo no horizonte de um jovem de 19 ou 20 anos que só possa contar com suas próprias forças. Sem respaldo familiar, é jogo duro.
Volta e meia, alguém se refere à década de 1960 e à primeira metade da de 1970 como "anos dourados". De fato o foram, do ponto de vista econômico, para a classe média. Com fartas oportunidades, quem se importava com os desmandos da ditadura, a carnificina nos porões? Uma minoria.
Mas essa minoria é quem escreve a história. Por isso "anos dourados" soa tão despropositado quanto "milagre econômico", na linguagem oficial. Um livro didático atual deve ser, no mínimo, reticente em relação a isso. Um dia desses, minha filha veio me perguntar algo sobre a década de 1970 e usou a expressão "anos de chumbo". Surpreendi-me. Eu não sabia que a plúmbea metáfora já era de uso corrente nas escolas.
Foi a crise do petróleo, em 1974, que transformou o ouro em chumbo. Não fosse esse fato externo, creio eu, o regime militar brasileiro teria demorado mais a entregar a rapadura. Funcionar, ele funcionava. Panis et circenses para as massas. Fuscas coloridos para os jovens da classe média.
O que marcou a minha geração foi ter vivido a prosperidade junto com a falta de liberdade. Este dilaceramento nos diferencia das gerações anteriores. Tivemos de engolir ouro e chumbo no mesmo copo.
Espero que os jovens de hoje e do futuro não precisem passar por essa mesma experiência. Não recomendo. Ela produz uma espécie de culpa misturada com nostalgia. Esse desconforto só se desfaz quando aprendemos o óbvio. O rei está nu, como sempre esteve. Mas é preciso escolher outro metal para representar os tempos idos da juventude. Ouro e chumbo são águas passadas.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
A MANCHA BRANCA
O filme Ensaio sobre a cegueira não é uma obra-prima. Tem chão até lá. Mas consegue transpor à tela uma alegoria acachapante da crise de percepção em que vivemos hoje.
Tanto no filme de Fernando Meirelles quanto no romance homônimo de Saramago, no qual se baseia, a epidemia de cegueira se expressa numa mancha branca. Branca, não preta, como em geral se imagina. Em vez da falta de luz, um excesso, uma exorbitância. O efeito é o mesmo: a paralisia.
Não duvido de que estejamos mesmo diante do declínio do império americano, o império dos números, do excessivo. As torres do World Trade Center continuam a ruir, e os bancos quebram. Mas também pode ser outro exagero midiático como a gripe aviária e o "bug do milênio".
Quem consegue, hoje, separar o joio do trigo? Uma breve zapeada na memória. Alan Greenspan nos dizia que o mercado tem juízo, está disposto a praticar o bem. E Lula assegurava: o Brasil está a salvo da turbulência mundial, Deus é brasileiro.
Qualquer tolice pode ser sustentada em números. Eles hoje são tão velozes, tão voláteis, que se tornaram evasivos como as partículas sub-atômicas. E a mídia funciona como um grande acelerador. Qualquer irrelevância pisca com as cores do arco-íris nas telas de cristal líquido.
Ouço dizer que a turbulência atual se origina da crise de confiança no sistema financeiro. Portanto, é imponderável como qualquer epidemia. Nunca ouvi ninguém dizer o que me parece plausível: que a crise de confiança, por sua vez, resulta do excesso de informação.
O vomitório de números a que estamos submetidos, no metrô ou no elevador, nos ilude com a falsa sensação de que estamos bem informados. Patranhas. Se a velocidade da informação supera nossa capacidade de processamento, ela é desumana. Não nos serve, nos cega.
Alguns opiniam que a crise atual, por mais dura que seja, servirá para sanear a economia mundial. Oxalá venha a servir também para re-humanizar a mídia. Se os meios de comunicação funcionam como aceleradores de partículas, jamais haverá luz no fim do túnel. A mancha branca é igual à mancha preta.
Tanto no filme de Fernando Meirelles quanto no romance homônimo de Saramago, no qual se baseia, a epidemia de cegueira se expressa numa mancha branca. Branca, não preta, como em geral se imagina. Em vez da falta de luz, um excesso, uma exorbitância. O efeito é o mesmo: a paralisia.
Não duvido de que estejamos mesmo diante do declínio do império americano, o império dos números, do excessivo. As torres do World Trade Center continuam a ruir, e os bancos quebram. Mas também pode ser outro exagero midiático como a gripe aviária e o "bug do milênio".
Quem consegue, hoje, separar o joio do trigo? Uma breve zapeada na memória. Alan Greenspan nos dizia que o mercado tem juízo, está disposto a praticar o bem. E Lula assegurava: o Brasil está a salvo da turbulência mundial, Deus é brasileiro.
Qualquer tolice pode ser sustentada em números. Eles hoje são tão velozes, tão voláteis, que se tornaram evasivos como as partículas sub-atômicas. E a mídia funciona como um grande acelerador. Qualquer irrelevância pisca com as cores do arco-íris nas telas de cristal líquido.
Ouço dizer que a turbulência atual se origina da crise de confiança no sistema financeiro. Portanto, é imponderável como qualquer epidemia. Nunca ouvi ninguém dizer o que me parece plausível: que a crise de confiança, por sua vez, resulta do excesso de informação.
O vomitório de números a que estamos submetidos, no metrô ou no elevador, nos ilude com a falsa sensação de que estamos bem informados. Patranhas. Se a velocidade da informação supera nossa capacidade de processamento, ela é desumana. Não nos serve, nos cega.
Alguns opiniam que a crise atual, por mais dura que seja, servirá para sanear a economia mundial. Oxalá venha a servir também para re-humanizar a mídia. Se os meios de comunicação funcionam como aceleradores de partículas, jamais haverá luz no fim do túnel. A mancha branca é igual à mancha preta.
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