domingo, 30 de novembro de 2008

NON DUCOR DUCO

Os ônibus de São Paulo exibem o brasão da cidade no costado da carroceria. Nele se lê: Non ducor duco (Não sou conduzido, conduzo). Sinto ali mais a voz do cobrador do que a do motorista.

Com batidas sutis
na barra da catraca, dlim-dlim, o cobrador determina em que momento o veículo deve andar, parar, abrir ou fechar as portas. Decide quem pode viajar sem pagar, descer fora do ponto. Ele organiza o fluxo. Interage com as pessoas. O cobrador é poderoso. É ele quem mexe com o dinheiro.

Empresas de transporte urbano são máquinas de lavar dinheiro, disseram-me. Não sei. Mas é óbvio que girar a catraca é mais rendoso que girar o volante. E não é de hoje. No tempo dos bondes, cobrador era condutor. O seu lema era: "Dlim-dlim, dois pra Light e um pra mim" (não me peçam em latim). Só sei dizer que aquela mutreta talvez recebesse, hoje, o pomposo nome de derivativo.

O motorista não pode derivar nada.
Tem de obedecer tudo: trajeto, horário, código de trânsito. É um solitário. O passageiro não fala com ele. Só quem fala é o cobrador, para lhe dar ordens. Dlim-dlim: duas batidinhas com uma moeda ou, se for o caso, com a aliança. O rei reina, mas não governa. O motorista dirige, mas não conduz.

Quem conduz? Os governos? Claro que não. No mundo em que vivemos, os governos só mexem no volante. Quem mexe na catraca são as corporações privadas. Hoje o interesse delas é que os governos as socorram (com dinheiro público) para que sua rangente catraca não trave em definitivo.

Não é do interesse de ninguém que venha à tona o fato de que quem conduz o ônibus é o cobrador. Nem do passageiro. Ele prefere acreditar no motorista. Diz para si próprio que aquele sujeito sentado ao volante pode, sim, fazer as coisas acontecerem a seu modo. Ao nosso modo. Queremos acreditar na democracia.

Mesmo que os governos tomem as rédeas das finanças mundiais, e as coloquem nos eixos, não acho que isso deva inaugurar uma era de estatização, como já profetizam. Tão logo passe a turbulência, o motorista vai ouvir de novo o sinal do cobrador: dlim-dlim. Nós, passageiros, nem vamos notar. Vamos apenas continuar a ler, na lataria do ônibus, aquela sonora frase em latim:
Non ducor duco.

4 comentários:

Anônimo disse...

Olá Renato!
NON DUCOR DUCO.
Interessante esta tua observação.
Mas eu, que de itinerante, quando uso deste senhor ônibus, acabo me tornando amiga de ambos: motorista e cobrador.
Deve ser algo de gênio, pois desde meu primeiro coletivo, sempre tive informações dignas de policial e de fofocas de jornal.
Num deles tive a oportunidade de saber que no ponto final - na ocasião - o ônibus vinha com três clientes fixos.
Pois é, o Pinheiros/Luz, de então, adentrava a Rua José Paulino e terminava nos terminais de Pinheiros, devidamente "protegidos por ladrões que tinham que fazer um determinado X de ganhos/dia". Espantoso? Não.
Eles procuravam os clientes das compras da José Paulino e imediações do bairro do Bom Retiro.
Me deparei com eles inúmeras vezes. Mas havia um acordo: o motorista e o cobrador passavam tranquilos as viagens e durante o itinerário - talvez 04 ou 05 locais ou pontos fixos, impediam a entrada de outros ladrões.
Isso faz cerca de 30/25 anos. Depois do prolongado período da Ditadura.
Os homens trabalhavam tranquilos e eu, uma dessas passageiras, nunca tive problemas, além de ficar ao lado ou de frente desse trabalhadores fixos, um casal e outro rapaz.
Com esse montante garantiam a comida do bebê e o café, talvez o almoço e janta, deles e da "família".
Era uma troca de proteção. Nada acontecia aos itinerantes em questão e o motorista e o cobrador tinham proteção para si.
Quem dirigia? Um senhor que aposentou dirigindo o mesmo ônibus depois de muito tempo e o cobrador que se adaptou a ele.
Fascinante saber que já, naquela época, todos ganhavam sem perder muito, principalmente, garantiam um dia depois do outro a vida.
Uma historinha pra contar pros sobrinhos, no meu caso, restou.
Beijos querido 'fessor!
MIRIAM

Rodrigo Paes disse...

Olá Professor - sim, Professor com "P" maiúsculo.
Sou um ex-aluno seu e há muito acompanho seus textos no ΛÐjazzCÊNCIAS,mas nunca comentei.
Sou usuário dos coletivos da cidade e, obviamente, sempre reparei no lema paulistano sem, porém, enxergar a máquina do Estado ali instituída. Talvez pela interpretação bairrista da soberba paulista, já que nós conduzimos um país(pois é, a soberba paulista).
Uma comparação pertinente a sua, explicitada com pontual eloqüência e destreza.
Gostei muito do conceito. Uma visão simples, que só um pensamento complexo consegue compor, aliás, difícil é ser simples e complexo.

Abraços
Rodrigo Paes

Anônimo disse...

Como vai Renato?

Muito feliz a sua comparação entre o cobrador de ônibus e os interesses econômicos que governam o país de fato. Concordo com você quando você diz que o sujeito que tem o volante nas mãos é apenas mais uma engrenagem do sistema, seja no coletivo ou no poder público.

A grande diferença é que, quando somos passageiros de um ônibus, nos resta a convicção de que, mais cedo ou mais tarde, chegaremos ao destino que tínhamos por objetivo.

Por outro lado, a partir do momento que nossas vidas são conduzidas e controladas de acordo com o interesse das empresas, acabamos presos numa ciranda de exploração sem fim. E, na vida real, não há como puxar a cordinha pedindo para descer do ônibus.

Grande abraço!
Adilson Fuzo
ABJL - SP - Turma 2007

Mauricio disse...

“Mesmo que os governos tomem as rédeas das finanças mundiais, e as coloquem nos eixos, não acho que isso deva inaugurar uma era de estatização, como já profetizam”. Você está certíssimo, Renato. No caso da compra de 49% das ações do Banco Votorantim pelo BB, Mantega fez questão de deixar claro que não será uma estatização. Do contrário, desencadear-se-ia mais uma terrível onda de reação midiática contra o governo. O BB vai socorrer o Votorantim, como nos bons tempos do Proer de FHC, depois, quando ele estiver revigorado, comprará de novo as ações do BB. Aí, privatizam-se os lucros e socializam-se os prejuízos. Renato, você que deve ser gaucho gosta de escrever sobre São Paulo. Não sei se você conhece nossa cidade há muito tempo. Por acaso se lembra dos áureos tempos do Jóquei Clube? Pois é: o jóquei está na pior. Talvez por causa dos jogos eletrônicos ninguém está mais apostando nos cavalos. Kassab disse que vai transformá-lo em parque. Não sei se o prefeito é um ecologista de carteirinha ou está tramando uma forma disfarçada de cobrir o rombo do jóquei. Afinal, só os bancos e montadoras de automóvel têm direito a socorro estatal? A imprensa não comentou o assunto. Você poderia dizer alguma coisa?