domingo, 12 de abril de 2009

NO TERRENO DAS HIPÓTESES

Ônibus lotado. O sujeito se dirige em voz alta aos demais passageiros:
> Bom-dia a todos. Eu podia estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui humildemente pedindo uma colaboração de vocês.
Ninguém responde, ninguém se mexe. Mas é um silêncio repleto de pensamentos. Alguns deles:
* Eu podia estar em Copacabana, eu podia estar em Ipanema, mas estou aqui humildemente na Consolação congestionada.
* Eu podia estar com câncer, eu podia estar com Aids, mas estou aqui humildemente chupando esta pastilha pra dor de garganta.
* Eu podia passar por cima, eu podia passar por baixo, mas estou aqui humildemente pagando para girar a catraca.
* Eu podia estar com ela, eu podia estar sem ela, só não queria é ficar pensando nisso.
* Eu podia estar naquele carro, eu podia estar naquele outro, mas estou aqui humildemente de mochila nas costas.
* Eu podia me vingar no grito, eu podia me vingar no tapa, mas estou aqui humildemente levando os comprovantes que o advogado pediu.
* Eu podia estar em Brasília, eu podia estar roubando, mas estou aqui humildemente a caminho do trabalho.
* Eu podia estar nos Andes, eu podia estar nos Alpes, mas estou aqui humildemente no espigão da Paulista.
* Eu podia estar no volante, eu podia estar na catraca, mas estou aqui humildemente e vou descer no próximo ponto.
* Eles podem ficar comigo, eles podem ficar sem migo, mas vão ter que me pagar o aviso prévio.
* Eu podia dar uma fechada, eu podia dar uma buzinada, mas estou aqui humildemente esperando essa perua retocar o batom.
* Eu podia estar na revista, eu podia estar na televisão, mas estou aqui humildemente longe de todos os olhares.
* Eu podia ter saído antes, eu podia acordar mais cedo, mas estou aqui humildemente atrasado de novo.
* Eu podia ter respondido, eu podia ter ligado, mas humildemente me dou conta de que é tarde demais.
* Eu podia estar lendo Ulisses, eu podia estar lendo Os sertões, mas estou aqui humildemente lendo estas adjazzcências.
O silêncio (repleto de pensamentos) permanece. O sujeito desiste. Resolve descer do ônibus:
> Muito obrigado. Um bom dia e uma boa semana a todos vocês.

15 comentários:

Anônimo disse...

Renato,
muito bom! quantas hipóteses, quantos "eu poderia". Esse discurso nos ônibus está em todo Brasil. Não deixa de ser uma sutil ameaça ou um apelo para o sentimento de culpa de cada um. Também é um apelo para um alívio, ufa, em cada passageiro. Não é um assaltante, é tão somente um poeta-pedinte. Continue assim, Renato, me mande sempre as atualizações de seu Blog
Carlos Carrion

Anônimo disse...

Professor, seu texto fala do individualismo (ou egoísmo) contemporâneo... Uma vez, em 1980, eu estava num ônibus em Madrid e entrou um rapaz bem jovem, de calça jeans, camiseta e tenis (limpos) e disse alguma coisa em espanhol muito rápido que eu não pude entender. Mas vi que muitas pessoas começaram a dar dinheiro para o rapaz. Então perguntei ao moço que estava sentado ao meu lado: O que está acontecendo? Porque estão dando dinheiro para ele? - Porque ele pediu - disse o moço. Mas ele está tão bem, não parece precisar, eu disse. E o moço:
Pedir é muito humilhante e nós acreditamos que se uma pessoa pede é porque ela precisa mesmo.
Deise

Unknown disse...

E eu podia tá matando um gaúcho que escreve uns trens desse. Mas tô aqui lendo esse texto sem pé nem cabeça

Rosangela disse...

Ái Renato, eu ADOREIIII! Sempre penso nesses "eu podia" qdo vejo algum pedinte. As vezes eu realmente fico com pena, mas muitas vezes com raiva mesmo. Raiva daqueles que colocam as crianças pra pedir e ficam na outra esquina sentadão esperando a grana recebida por elas. Raiva desses marmanjos que dizem "é pra completar o remédio dona"...Raiva desse governo, que só rouba, rouba e deixa o país nessa miséria.Mas como eu tb sou egoísta sempre acabo pensando no "eu poderia SIM estar em NY"...ahahahahahh.
Beijo grande, Ro

Fluidometria disse...

Renato, continua a ler tua prosa/poesia.
Mas estou preguiçosa ou com um PC bombado pelo Speedy ou um "congela daqui, outro acolá".
Este texto, no entanto e entre mentes, me faz tentar ser mais ligeira que a "próxima queda"...
Pensar e repensar dramas, vontades e sonhos ao viajarmos num ônibus, metrô, carro ou a pé são tão corriqueiros que mal me dou conta de "pensar" e ler estes pensamentos.
Razões infinitas nesta tua linguagem de fome de instintos, pois apesar de me rever em algumas questões o senso comum de dúvidas, resta tentar pensar agora num se...
Se eu não tivesse lido o texto, o que estaria fazendo agora?
Sempre bom perceber que nos desligamos de manter uma visão do que fazemos, onde estamos e o que pretendemos.
Adoro essa aproximação mental e intimista.
Depois dessa Páscoa e das novidades é esperar saber: e pra onde iremos?
Beijos,
MIRIAM

Adélia disse...

Caro Amigo Renato: por falar em "eu poderia fazer", confesso que quando, ansiosa, abro seu Blog, também corre-me paralela a vontade de romper com "o silêncio repleto de pensamentos", ao constatar que todos nossos endereços eletrônicos vêm abertos, à disposição da sanha criminosa dos hackers. Por que , amigo, você não lança-mão do CCO?
Abraços
Adélia Dias Baptista

Adélia disse...

Caro Amigo Renato: por falar em "eu poderia fazer", confesso que quando, ansiosa, abro seu Blog, também corre-me paralela a vontade de romper com "o silêncio repleto de pensamentos", ao constatar que todos nossos endereços eletrônicos vêm abertos, à disposição da sanha criminosa dos hackers. Por que , amigo, você não lança-mão do CCO?
Abraços
Adélia Dias Baptista

Anônimo disse...

Professor Renato.

Um texto que mudou meu dia. Cenas comuns a quem anda pela cidade, mas pelo seu olhar (e por isso reveladoras).
Obrigada,
um abraço,

Rebeka Figueiredo.

Patrícia Kusunoki disse...

Adoro.

Um Professor Indignado disse...

Os seus amigos, Renato, às vezes se apresentam mais inspirados que você mesmo. Fiquei lendo os comentários e positivamente surpreso; ainda existe inteligência viva neste País. Sobre o fato em si, não dá para confiar em ninguém, infelizmente. Uma das minhas colegas de trabalho foi, na Paulista mesmo, enganada por um falso surdo, que roubou a sua sobremesa; foi hilário. Penso que os espanhóis não conhecem a tradição golpista que existe por aqui, que começa pela Presidência da República e se alastra como um câncer. Agora, para entrar no clima, depois de uma sessão de RPG, eu gostaria muito de estar numa cama agora, mas estou aqui suportando as neuroses de meus colegas servidores públicos. Um abraço a todos.

Mauricio disse...

Ainda bem que não tomo mais ônibus, a não ser de vez em quando. Quando tenho médico na Paulista deixo o carro em casa. Nunca temos troco, o cobrador e eu. A grande maioria paga com o cartão. A solução é o cobrador pedir que eu desça sem pagar. Tudo bem, assim é mais simples. Bom dia, bom trabalho.

Lívia Lima disse...

Muito bom o texto. Engraçado como só no caso do ônibus é que os "podias" são negativos, pois nós, ao contrário sempre achamos que "podíamos estar fazendo" alguma coisa melhor.

Abs.

Lívia Lima
www.a-liviando.blogspot.com

Anônimo disse...

Rento,

Muito bom. A mim vieram pensamentos que nos abraçam a todos momentos: incômodos de como poderia ser melhor o aqui e o agora e o que eu faço para isso.
beijos
Cibele Tommasini

Rê Minami disse...

Nossa, professor! Adorei seu texto!
Tenho que soltar o velho jargão: "Seria trágico se não fosse cômico"!
Eu que pego ônibus e trens diariamente e estou constantemente ouvindo o "eu podia estar matando..." e várias vezes me peguei com um raciocínio desses!
Me senti meio pedinte do destino, pois a gente pensa: "Eu podia estar fazendo sucesso com minha banda, eu podia estar tomando um sol nos Lençóis, mas estou aqui trabalhando para pagar as contas".
É uma pena!

silvana tavano disse...

oi, Renato,
eu não poderia ter começado melhor o meu dia -- belo texto.
Silvana