domingo, 22 de novembro de 2009

AO MESTRE, COM CARINHO

Cada geração traz à sociedade um certo desconforto. Faz parte do jogo. Desconfortáveis (e geniais) também foram as inovações de Piazzolla no tango tradicional.

Imaginemos
o fole do bandoneón como sendo o curso da vida humana. Sabemos que sua duração média se expande, mas isso não implica que nos tornemos melhores ou mais criativos. A expansão se concentra nas extremidades. Embaixo, junto à mão esquerda de Piazzolla, situa-se a velhice, que a linguagem corporativa escamoteia com essa bobagem de "terceira idade". No alto, a adolescência, rompante.

Ah, não é fácil adolescer. Já é envelhecer, sem saber. E como saber? A universidade empapuça os jovens de informações, mas fracassa no que deveria ser sua missão essencial: acolher pirralhos e desovar adultos. A alquimia não acontece. Marmanjos continuam a se portar como infantes travessos, mesmo com diploma na mão. Não sobreviveriam um dia sem seu suspensório financeiro, a mesada, ou sem essa mamadeira moderna, o telefone celular.

Fala-se na "geração canguru", jovens que se recusam a deixar a casa dos pais. Ao protelar o conhecimento que gerações anteriores semearam nos caminhos do mundo (tabus, desafios, tradições e contradições) eles cultivam uma espécie de esquecimento cultural. Um Alzheimer coletivo, digamos. Isto torna a adolescência cada vez mais longa.

No outro extremo do bandoneón, a velhice também está, por assim dizer, inflacionada. Vive-se cada vez mais, porém (é claro) cada vez menos como se vivia antes. Toca-se o barco com um crescente grau de dependência
em relação aos que estão em idade produtiva, na forma de cuidados, consolo, assistência, pensões, remédios, aparelhos. Outra "geração canguru", semelhante à adolescência, se espicha na parte de baixo do fole, junto à mão esquerda de Piazzolla.

Já o segmento central do bandoneón não se expande muito. Permanece mais ou menos como sempre foi. No entanto é ali, nas décadas velozes que correspondem à vida adulta de uma pessoa, que brotam os pilares da civilização: a pirâmide, a semente, o metrô, o remédio, o tempero, a teoria, a pintura, o verso inspirado, a sinfonia, a ponte pênsil.

Sustentar extremos não é tarefa fácil. Bem, fazer o que Piazzolla fez com o tango, convenhamos, também não era.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

NÃO VER PARA CRER

Jantar a luz de velas pode ser romântico. Jantar no breu total, disso nunca se ouvira falar. Nem na Rio Grande de outrora, no tempo das galochas.

Agora, essa. De Paris, a cousa se espalhou para outras cidades do mundo, entre as quais São Paulo. A premissa do jantar no escuro é que desativar a visão potencializa o paladar e o olfato. De olhos vendados, somos apresentados a sabores indecifráveis e a pessoas estranhas. Apenas vozes, é verdade. Porém, com a preponderância da voz, uma pessoa ganha densidade. Deixa de ser uma figura para se tornar uma presença.

Nas noites da minha infância, a cidade de Rio Grande sofria frequentes cortes de energia elétrica. Os adultos chamavam a trôpega CEEE de "Companhia Encarregada de Escurecer o Estado". As crianças saíam à rua excitadas com a chance de fazer o que seria incabível com luz nos postes e adultos vigilantes.

Mas o que nos movia não era apenas a sensação de liberdade ou, se quiserem, de impunidade. Era também um fato mais profundo: o escuro estimula a imaginação. Sem luz, a cidade se tornava uma aventura. Quem ouve futebol pelo rádio, debaixo do cobertor, sabe que ali qualquer pelada ganha a emoção de uma final de copa do mundo.

A visão pode atrapalhar. Até mesmo ao jornalista, que é um ser apressado. A pressa nos faz confiar demais no que vemos. O olhar tende a embotar os outros sentidos. Na ECA, o professor Edvaldo Lima certa vez nos passou o exercício de captar os detalhes do tronco de uma árvore usando apenas o tato, para depois descrevê-lo. Metade dos alunos, de olhos vendados, era conduzida ao jardim pela outra metade, que orientava seus passos e seus movimentos. Assim como o pessoal que serve os comensais em um jantar no escuro. Foi uma noite inesquecível.

Se é um modismo? É possível. Mas para mim, francamente, o fato sociológico vale menos que a experiência sensorial. Fechar os olhos de vez em quando pode ser um hábito saudável. Senão na mesa de jantar, ao menos diante da TV. O olhar é um dos
tiranos da vida moderna. E gostamos demais dos tiranos.