quinta-feira, 23 de junho de 2011

PROFANO E SAGRADO

Vínhamos pela Sete de Abril, a pé. O centro da cidade estava quase deserto naquela manhã ensolarada de domingo. Perto da entrada da Galeria Ipê, passamos a ouvir um intrigante rumor de fricção. Vinha de baixo, como uma chuva invertida. Algum insondável processo tectônico devia estar crepitando no chão de São Paulo. Muito estranho, de fato. O rumor se avolumava a cada minuto. Agora já fazia pensar em algo como uma avalanche de cascalho. 

Na Xavier de Toledo, deparamos com uma torrente de esqueitistas que desciam a rua em direção ao Teatro Municipal. Milhares. Eu não saberia dizer quantos. Não paravam de passar. Notei raras meninas numa horda de marmanjos rodantes, felizes. No meio dos esqueites, receosas viaturas policiais trinavam as sirenes para não serem levadas de roldão. Alguns esqueitistas faziam piruetas. Outros fotografavam ou filmavam a própria marcha, caudalosa e incessante como um rio amazônico. 

Os esqueitistas cercaram o teatro recém-reaberto,empoleiraram-se na escadaria e passaram a gritar palavras de ordem. Não entendi o que diziam. Mas dava para sacar que o clima era menos de manifestação do que de festa. Muita gente assomou às janelas e terraços do teatro para ver a balbúrdia na escadaria. Algum concerto deve ter sido interrompido.

Essa sem-cerimônia dos esqueitistas, ao cercar o Municipal, recordou-me que em Roma, de Fellini, um raide noturno de motociclistas toma de assalto as ruas do centro histórico da cidade. Luz e sombra. O efêmero em contraste com o eterno. Fellini em seus grandes momentos.

Mas voltemos a São Paulo. Nesta época do ano, no início da tarde, fachos amarelados atravessam os vitrais da face oeste do Mosteiro de São Bento, criando hipnóticos efeitos de chiaroscuro no interior da nave. Há quatrocentos anos, Caravaggio teria usado esses nichos iluminados, que sobressaem na penumbra do recinto, para pintar seus semblantes patéticos. Mas o que temos ali, hoje, é um homem que, não satisfeito em curtir o clima sacro que o cerca, tenta apreendê-lo com a câmara do celular. Eleva o aparelho bem acima da cabeça, com as duas mãos, numa pose reverenciosa e idêntica à do padre que exibe o cálice aos fiéis.

No imundo e aristocrático centro de São Paulo, o profano e o sagrado dançam de rostinho colado. Em benefício de ambos, espero.

7 comentários:

Anônimo disse...

Querido amigo,
Sempre me delicio com seu olhar sensivel que demostra pela cidade que adotou!!Graça

Cia Faz e Conta disse...

Muito bacana... O Centro de São Paulo tem esta singularidade, sagrado e profano juntos. Outro trecho interessante para se observar é a Av. Tiradentes próx. ao Museu de Arte Sacra, à Rota, à rua das noivas... beijo e saudade.

Carlos Carrion Torres disse...

PQP! Que maravilha! Pura poesia, Caravaggio, chiaroscuro, luz que se filtra pelos vitrais, esqueitistas, Fellini, motos em Roma cidade eterna, celulares que fotografam imagens que ninguem mais verá. Parabéns, Renato, desta vez estás mais poeta do que jamais. Carlos Carrion

Inês disse...

Renato,

Diogo era um desses esqueitistas, com um bando de amigos. Pura festa. Adolescentes descobrindo a cidade em cima das rodinhas. Mãe fica torcendo para que anjo da guarda exista e segure as quedas, você pode imaginar, mas adora vê-los viver. Beijo.

Anônimo disse...

O seu olhar sobre São Paulo é uma das inúmeras faces deste mosaico humano que tanto nos fascina e assusta pela imprevisível manifestação de graças e desgraças. Vivas aos que lhe extraem a poesia como você.
abraço. Antonio

Anônimo disse...

Caro amigo Renato - admiro muito sua sensibilidade. Todas as manhãs, quando passo pelo Largo São Bento,em direção ao escritório. ouço 9 sonoras badaladas.
Faz-me bem pensar que são para mim...
Abraços
Adélia Dias Baptista

Um Professor Indignado disse...

Ser poeta é um estado emocional. Dessa vez, não tenho o que efetivamente comentar. Somente fiquei deliciado com as metáforas. Meu caminho pela cidade é mais modernoso. Bairro da Pompeia que está perdendo seu ar de operário, com a construção de novos prédios. Metrô geralmente, com gente apressada (parece que nasceram todos de 5 meses) ou ônibus lotado no meio do mar de trânsito. Encerro minha jornada na Av. Paulista, onde as tribos se reúnem. Gosto da cidade onde nasci, mas preferia uma com menos gente. Uma dica: encontrei um fotógrafo que está documentando a cidade antiga. Seu site: www.belapauliceia.com.br Um abraço.