quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A QUEDA DA CASA DE JASPERS



No começo do confinamento, há seis meses, o silêncio das ruas me permitiu ouvir não só o gotejamento da água dentro do filtro de barro, como também a voz de um sábio. Salvo engano, terá sido mesmo Karl Jaspers (1883-1969), o filósofo existencialista alemão que aparece na foto acima, quem afirmou mais ou menos o seguinte: tudo aquilo que existe no mundo, podemos encontrar dentro de nossa própria casa. 

Concordo, porém acrescento que a casa de qualquer um de nós, hoje, deve ser algo bem diferente da época em que Jaspers formulou esse pensamento. Nosso ambiente doméstico está saturado de sons e imagens que brotam dos mais diferentes dispositivos eletrônicos, com telas enormes ou diminutas, que alguns carregam consigo até quando comparecem ao vaso sanitário. 

Mesmo trancados em casa, chafurdando em álcool gel, a pandemia nos atinge com estatísticas dramáticas e um emaranhado de análises cuja consistência não temos condições de aferir. Nos primeiros meses, permaneci atento ao que diziam médicos, infectologistas, epidemiologistas, gestores da saúde pública etc. Depois notei que cada vez tinham menos a dizer, substancialmente. Limitavam-se a chover no molhado sobre as medidas básicas de prevenção e a chutar opiniões sobre a curva de propagação da doença. 

Desse momento em diante, me desinteressei do teor do que os midiáticos dizem, para concentrar minha atenção em seu modo de falar e nos elementos que utilizam ao aparecer nas telas. No âmbito da comunicação, vivemos uma pandemia de artificialismo que vai além do assunto do momento, as fake news. A expressão, em si, já é meio fake. Foi importada do hemisfério norte para designar boato, mentira, maledicência, algo que provavelmente já existia entre nós desde o tempo em que vivíamos em cavernas ou, quiçá, pendurados nos galhos das árvores. 

Hoje, nossas casas confortáveis, às vezes acarpetadas, estão impregnadas não só de ácaros, mas também palavras e imagens que não são o que parecem ser. Entre o emaranhado de vozes que se elevaram durante a pandemia, pude notar que se disseminou o uso do você em situações que não dizem respeito ao interlocutor, apenas para (supostamente) reforçar o efeito de uma observação geral. < Você precisa coibir o uso da cloroquina; diz o médico ao repórter, como se a este último, e não às autoridades, coubesse tomar tal providência. 

Desconfio que esse modismo, uma vez mais, deriva do inglês. Décadas atrás, tivemos um surto de “futuro do gerúndio”: < Vamos estar proibindo o uso da cloroquina; alguém diria na época. Esse modo de falar foi chique, no início, restrito aos ilustrados, que depois o esnobaram quando foi quando assimilado pela plebe. Ao migrar dos bairros abastados para a periferia das cidades, os modismos cumprem a mesma trajetória centrífuga desse novo vírus, que agora castiga os que não viajam. 

Além desse espúrio você, usado em sentido amplo, verifica-se também um surto da expressão com certeza, já em vias de desbancar o clássico se Deus quiser. Nada grave, porém significativo. Por que será que justamente numa época como esta, de tanta incerteza, fomos adquirir o hábito de invocar o seu oposto, a torto e a direito, e tanto mais em situações imprevisíveis? 

Quem vai à mídia falar da covid faz o possível para esconder sua incerteza, por mais que a tenha. Admiti-la seria frustrar o homem do povo, que se nutre de esperança, mesmo que seja falsa. Por muito tempo imaginei que nossa tradicional canja de galinha, para combater a gripe, fosse tradição interiorana, caseira, um elemento folclórico e talvez honorífico, por ter o imperador Pedro II como notório aficionado. Mas parece que não. Li em algum lugar, certa vez, que isso começou na gripe espanhola. O quinino não fazia efeito. Nada fazia efeito. Então, para não ficarem calados diante do paciente, os médicos da época se saíram com essa: < Vá para casa e tome uma boa canja de galinha. 

Ora, um placebo, ou melhor, um consolo, não deixa de ser algo semelhante a uma fake news. Isso me ocorreu na época em que todo mundo, na mídia, tinha algo a dizer sobre a cloroquina. Para mim, esse assunto continua tão envolto em brumas quanto a própria vacina. 

Na Idade Média, tiveram a brilhante ideia de sair matando gatos, na suposição de que esse animal sorrateiro disseminava a peste entre os povos da Europa. Com isso, dizimaram o predador do rato, verdadeiro transmissor da doença. A coisa, é claro, ficou pior. Naquela época, crendices tinham status de conhecimento. Não sei se é tão diferente hoje em dia, caso contrário a internet seria menos propícia do que as tavernas medievais para a propagação das fake news. Isso me ocorreu meses atrás, ao acompanhar as inflamadas controvérsias sobre como fazer face à pandemia do coronavírus. 

Não duvido que mesmo os cientistas de hoje, como os sábios de outrora, possam tomar um rumo totalmente canhestro (como matar os gatos) ao tentar resolver um problema que, no fim das contas, não é para ser resolvido, mas dissolvido. Tenho para mim que vamos superar esta pandemia de modo gradual, talvez secreto, como a água que pinga dentro do filtro de barro. Se alguém anunciar a chegada da vacina como o dia da vitória, em que enfim poderemos sair às ruas para queimar as máscaras, como as mulheres fizeram com os sutiãs na década de 1960, acho que será apenas mais uma fake news a rolar por aí. 

Nas telas de nossos aparelhos, a todo momento ouvimos pessoas a usar termos como narrativa e protocolo, que viralizaram durante a pandemia. Todo mundo tem algo a dizer no jargão do momento, todo mundo tem uma carta na manga. Mas acho que não se deve esperar tanto de soluções que vêm de cima, ou vêm de longe, como é o caso da vacina. A pandemia será superada como resultado do nosso minucioso aprendizado de medidas de assepsia e do treinamento diário dos médicos. Dizem que o velho filtro de barro tem o melhor de todos os processos de filtragem. O mais lento, mas também o mais seguro. 

A certa altura, durante o inverno, tive a impressão de que no Brasil, em vez da propalada imunidade de rebanho, estávamos mais perto de uma impunidade de rebanho. Corrupção e pandemia eram os assuntos que dominavam os noticiários do início ao fim. Não saía disso. Apliquei minha velha tática: TV sem som, só imagem. Além de me aprimorar em leitura labial, pude observar melhor o que as pessoas, diante da câmara, desejam comunicar com os artifícios que estão além da linguagem verbal.

Espantei-me com a quantidade de gente, entre jornalistas e entrevistados, que aparecem na tela tendo atrás de si uma estante de livros. Recordei que, na década de 1990, quando os computadores eram novidade, todo mundo fazia pose debruçado naqueles enormes monitores de vídeo como demonstração de modernidade. Naquela época, ninguém dava a mínima para os livros, a não ser o presidente da república, em seus pronunciamentos em rede nacional. 

Para minha surpresa, eles ressurgem agora, sempre recheados de tinta e celulose, com suas lombadas coloridas, como para respaldar a credibilidade do infectologista que dá o seu pitaco na TV sobre os possíveis rumos da pandemia. Quem chegasse de outro planeta teria a impressão de que no Brasil se lê mais do que na Noruega, ao ver tanto livro como cenário de fundo. 

A conexão é imediata, por meio da imagem. Acho que uma grande massa de brasileiros deve achar que um sujeito instruído que fala na TV leu ou pretende ler todo o material que aparece atrás dele. Um século atrás, muitos achavam que o ilustre Ruy Barbosa, nosso grande polímata, tinha lido todos os livros existentes no mundo. 

O fake não se limita às news, mas se faz presente também nas expressões da moda e nos elementos visuais. Seria o caso de falar coisas como fake saying, fake scenery, já que apreciamos tanto a língua inglesa, não só em fake news. Um grande jogo de cena ocupa cada milímetro da telinha ou da telona de onde não desgrudamos os olhos nesta já tediosa (mas reveladora) quarentena. Bem, se aguentamos até aqui, agora vamos até o fim.

2 comentários:

Ronaldo Zechlinski de Oliveira disse...

Caro Renato, rico texto. Sempre me chama atenção, a quantidade de livros que " amadrinham" os nossos entrevistados ou entrevistadores. Em um Brasil, que mandatários de eleição da elite acadêmica soltam pérolas como esta :"Eu não gosto de ler, eu tenho preguiça de ler"

Vicente Alessi-Filho disse...

Chegaremos lá Renatone. Ao fim. Bjs