As traiçoeiras calçadas em estampa
pedrês de minha cidade natal me levam para onde elas bem entendem. Outro dia,
dei por mim diante do prédio austero, porém saudoso, do Colégio São Francisco.
Ao contemplar aquela fachada cinzenta e retilínea de cimento escovado, recordei
como se fosse um mantra: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados
dos catetos.
Essa foi uma das muitas coisas que
aprendi lá dentro do colégio, onde estudei de 1965 a 1968. É bem verdade que,
ao longo da vida, nunca tive chance de aplicar na prática o célebre Teorema de
Pitágoras. Invejo os amigos que projetaram suas casas. Alguns até chegaram a
botar a mão na massa. Bela experiência, creio. A esses afortunados foi dado
depois usufruir do aconchego de seus próprios catetos, tapetes e hipotenusas.
À tribo dos contemplativos, à qual
pertenço, resta o consolo de saber que o valor de um ensinamento, mesmo em
geometria, pode transcender sua aplicação prática. Eu não estaria escrevendo
este texto agora, não fosse o teorema de Pitágoras, que um irmão marista
demonstrou no quadro-negro do São Francisco.
Quando me encontrava na calçada do
colégio, reparei que a porta principal estava semiaberta. Resolvi entrar. A
atendente da portaria, ao me ver, abriu um sorriso. Minhas rugas faciais, ao
transbordarem do cachecol, logo deixaram claro para ela que não estava diante
de um espectro, e sim de um provável ex-aluno.
Pedi para olhar o pátio. Ela
consentiu, desde que fosse rápido, pois era horário de aula. Por uma fresta da
porta, durante menos de um minuto, pude contemplar o descampado interno que
deve ter uma área bem maior que a de um campo de futebol.
Meus olhos se detiveram no centro do
pátio. Ali, certa vez, entrei de gaiato em um episódio que me custou caro. Era
a época das festas juninas. Durante o horário do recreio, em que centenas de
adolescentes do sexo masculino gastavam testosterona em brincadeiras imbecis,
surgiram no pátrio três gurias com o uniforme da escola das freiras, situado lá
do outro lado da Praça Tamandaré. Traziam bandejas repletas das chamadas “maçãs
do amor”, vermelhas e suculentas como aquilo que um marmanjo pode sonhar de mais
pecaminoso.
Aconteceu o previsível: um tumulto.
As gurias se apavoraram, indefesas em meio a uma manada de lorpas que se
compraziam em intimidá-las com macaquices e provocações. Não creio que algum de
nós fosse se atrever a encostar o dedo numa delas, mas a grosseria correu
solta. Mesmo achando que aquilo passava das medidas, fiquei por ali, na linha
de frente, como testemunha de um fato inédito. Naquela época, não se viam
mulheres no interior do colégio marista, que funcionava como uma caserna.
De repente, duas figuras ágeis,
vestidas de negro, irromperam no meio da turba. Os maristas se apressavam em
proteger as gurias das maçãs carameladas. Pegaram logo pelos braços – mas sem
critério algum, só na gataria – os que estavam mais próximos delas. Fui um dos
contemplados. Eles nos arrastaram pelo pátio, ao longo de uma linha imaginária
que seria a hipotenusa de dois triângulos justapostos, em direção à secretaria
do colégio. Pronto. Lá estava eu, junto com outros quatro ou cinco condenados.
O pior delito é estar na hora errada,
no lugar errado. Não adiantou eu argumentar que apenas assistia à cena. Como os
demais alunos, fui mandado para casa com a seguinte observação na caderneta
escolar: Suspenso por três dias para aprender a conviver com o elemento
feminino. Que tal, essa? Elemento feminino. Aludir à mulher eludindo
a palavra. Nunca mais vi uma vigarice verbal tão canhestra, embora vivendo num
país onde o eufemismo é uma crendice nacional. Mesmo então, sendo eu um pivete
machista, achei a expressão ridícula. Uma feminista hoje a refutaria não com a
maçã do amor, mas com botinadas na porta do colégio.
Não sei se a suspensão foi benéfica
para os demais sentenciados. Para mim, foi um furo n’água. Minha família, de
forte predominância masculina, era o lugar menos indicado para se aprender a
lidar com o dito elemento feminino. E se isso fosse mesmo importante,
caberia aos maristas propiciar tal ensinamento aos seus alunos. O colégio devia
ter sido misto desde sempre, como hoje é.
Muita coisa começou a mudar dentro do
São Francisco na segunda metade da década de 1960, como resultado da
modernização do catolicismo proposta no Concílio Vaticano II. Os padres
abandonaram o latim, a batina e, sobretudo, a postura altaneira dos clérigos.
Quanto aos irmãos maristas que eram nossos professores, de repente surgiram
para dar aulas com calças e camisas coloridas. Estávamos habituados a vê-los de
preto, crucifixo sobre o peito. Nem eles pareciam muito à vontade em roupas que
não mais representavam uma imposição externa, e sim um gosto pessoal, isso era
meio que nem ficar nu.
Nosso jovem diretor, um homem
bem-conceituado e também boa-pinta, deixou imprevistamente a congregação para
se casar com uma professora, segundo as vozes correntes. Seguiu-se uma
debandada de irmãos maristas que também caíram nos braços do elemento feminino.
Portanto, os mestres também gostavam do balacobaco, e não apenas os pupilos, que éramos nós,
punheteiros reticentes e atormentados.
A verdadeira insanidade estava no
celibato. Sabia-se que um dos irmãos maristas assediava alunos. Um colega nosso
teve de espantá-lo com a ponta do guarda-chuva. E depois nós é que precisávamos
desfiar nossos pecadilhos de neófitos a padres que comodamente se ocultavam
atrás das treliças dos confessionários.
Para mim, esse jogo de luz e sombra
que grassa na face da Terra começou a ser demonstrado por a + b, como um
teorema, a partir dessas coisas graúdas e miúdas que aconteciam nos bastidores
do colégio marista e repercutiam à boca pequena nos lares da paróquia de Nossa
Senhora de Fátima, a sudoeste da Praça Tamandaré. As pessoas sabiam, mas
ninguém falava delas abertamente na feira da Paranaguá, só com o rosto oculto
sob a espuma branca do Salão Itamarati.
Aos poucos, fui me dando conta de que
as coisas sobre as quais não se falava eram as mais importantes. Em uma
manhã daquela época, estive metido em uma lenta fila no interior do prédio
esbelto do nosso correio central, defronte ao canto nordeste da Praça
Tamandaré. Enquanto esperava a vez para selar minha carta no guichê, pus os
olhos sobre um cartaz de propaganda do regime militar. Havia nele duas fotos em
contraponto. A primeira, suposto retrato do Brasil anterior ao golpe militar,
era uma cena lúgubre em preto e branco. A outra, que buscava enaltecer os
benefícios da chamada “revolução”, era colorida, arejada, alegre, com gente
sorridente que nem nos anúncios de refrigerantes.
Naquela época eu era incauto para
fugir de casa, com hepatite, para ir jogar futebol, mas não debiloide a ponto
de engolir a iniquidade presente naquele cartaz. Se o regime militar era assim
tão bom, por que precisava lançar mão de um recurso tão primário, dois pesos e
duas medidas, para simular que o que havia antes dele era um cenário imerso em
trevas?
Aí tem coisa, pensei. Essa suspeita
foi o gatilho para a aquisição de uma consciência política que só iria se
moldar anos mais tarde, em São Paulo, onde cultivei relações entre opositores
da ditadura. Tornei-me um deles. Era impossível não odiar um regime que
censurava, reprimia, torturava e matava, e ainda por cima difundia a ideia de
que atrocidades desse tipo eram típicas dos países comunistas. Era uma verdade
pela metade, mais hipócrita que a mentira completa.
Interessei-me pelos catecismos da
esquerda, sem ter ainda a condição de filtrar um tró-ló-ló articulado como se
fosse um teorema. Conheci militantes tão convictos e austeros quanto os irmãos
maristas, só faltava a batina. Para eles, o capitalismo era coisa do capeta. E
o socialismo, a maçã do amor. De novo, a mesma jogada de denegrir o inimigo o
quanto possível.
Talvez eu deva agradecer ao regime
militar por aquele cartaz que mostrava de forma tão didática o que é a
hipocrisia. Porém hipócrita seria eu próprio, agora, se afirmasse que ela
predomina apenas nos regimes conservadores. Eis aí um dos poucos atributos
humanos que se distribuem de forma homogênea, digamos democrática, entre todas
as tendências ideológicas.
Aceita-se a hipocrisia como inerente
à política. Bem, não contem comigo. Mesmo quando fugi de casa com hepatite, ou
quando cheirei um litro de éter com mais dois amigos, mesmo aquela mentalidade
quase suicida não me impediu de simpatizar com os jovens americanos que se
recusavam a atravessar o planeta para matar vietnamitas. São atitudes
compatíveis, adolescentes, alguém diria. Que sejam. Talvez seja até saudável
trazer um pouco da adolescência para vitalizar a velhice.
Hoje, espanta-me que pessoas esclarecidas sejam capazes de se indignar com a postura de Israel em relação aos palestinos, mas não com a da Rússia em relação aos ucranianos. Dentro do Brasil, a coisa se repete. A hipocrisia alimenta o confronto de extremos que se instalou entre nós e até se acirra em meio a pestes e catástrofes. É um círculo vicioso. A própria polarização política estimula os contendores a lançar mão das mesmas armas do adversário, porém de forma dissimulada, de modo a promover um contraste de aparências. Como no cartaz do correio.
Com quase 40 anos de democracia, temos hoje no Brasil uma situação mais infernal do que a cegueira coletiva imaginada por Saramago, que ao menos seria um denominador comum. Trata-se, isto sim, de um daltonismo seletivo que nos faz enxergar, como no cartaz do correio, apenas as cores da nossa tribo. Somos os donos da maçã do amor. A tribo inimiga não passa de um borrão em preto e branco. Versão tropical do Teorema de Pitágoras: o quadrado da hipocrisia é igual à soma dos quadrados dos capetas.
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