O pensador francês Edgar Morin rememora sua viagem à China, em 1992, na entrevista concedida a Andrei Netto e publicada domingo retrasado no Estadão. “Pude comprovar a curiosidade e também a inteligência que talvez tenha origem nas fusões do taoísmo e do marxismo”, diz ele, referindo-se à juventude chinesa.
Contraponto instigante. O marxismo interpreta a vida social de modo evolutivo. Uma flecha desliza no ar em busca de um alvo hipotético, a igualdade. Seu propulsor é a luta de classes. Ou seja, a oposição de forças contrárias.
O taoísmo enfatiza não a disputa, mas a alternância. Não se trata de um movimento progressivo, mas giratório. O alvo não é algo externo, distante. Em vez da flecha, temos um carrossel. O eterno retorno. A China gira em seu próprio eixo. Abre e fecha, abre e fecha, ao longo dos séculos. Ninguém a entende. Só depois.
Há dez anos os chineses, que ainda ostentam a foice e o martelo, preservam seu enclave capitalista, Hong Kong, como um ambiente de proveta para monitorar as mutações de um vírus. Mas aplicam o resultado desses estudos do lado de fora de suas fronteiras. Inundam o mundo com bugigangas a preços incomparáveis. Eles são possíveis, sabemos, à custa de uma massa humana submetida a um regime de trabalho não muito diferente dos antigos egípcios que carregavam pedras para as pirâmides.
Os chineses disseminam uma espécie de “capitalismo pit bull”, expressão que tomo emprestada de um professor da Unicamp, Francisco Foot Hardman. Os marxistas chamariam isso de “contradições”. Ué, onde já se viu acender uma vela para Deus e outra para o Diabo?
Mas o taoísmo não tem essa de “contradições”. Tudo está contido no símbolo yin-yang. Naquele círculo em preto-e-branco, que gira como um carrossel, uma bolinha (uma Hong Kong) indica a presença de cada um dos elementos dentro do campo oposto. O individualismo gera dentro de si uma espécie de nostalgia humanitária, e vice-versa.
Aos chineses de hoje caberá descobrir como será possível construir um mundo mais solidário sem abrir mão dos fones do ouvido. Sejamos otimistas. A salvação sempre foi um milagre.
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
SEIXOS QUE ROLAM
De uns anos para cá, os jogadores de futebol passaram a chamar o técnico de “professô”. Pronunciam a palavra com reverência e orgulho, escandindo as sílabas, saboreando as vogais como se sorvessem o sumo de uma suculenta picanha.
É compreensível. Grande parte dos jogadores não teve os professores que deveria ter tido. Encontrar o mestre nessa figura paternal e autocrática do treinador é um jeito de redimir-se de um passado de desamparo social, nas periferias.
Já os universitários bem nutridos pronunciam a palavra professor com a brevidade de quem toma um iogurte num gole só. Dizem “p’fssor”, pulando as vogais. Também isso é compreensível. Quem usa muito certa palavra tende a simplificá-la. Não só por força do hábito, como porque o interlocutor é capaz de captá-la, digamos, por amostragem. Uma pitada dela é o quanto basta.
Assim como meus alunos dizem “p’fssor”, os portugueses dizem “P’rtgal”, não “Portugal”, com todas as vogais, como dizemos no Brasil. Penso nas palavras como seixos que rolam e aparam as arestas. Ao longo do tempo, desvencilham-se do que não interessa mais. Foi assim que “à vossa mercê” virou “vosmecê”, “você”, “cê”.
Talvez o português ainda venha a se tornar uma língua eslava, como uma daquelas que nos assustam pela profusão de consoantes. Não entendo desse assunto. Entendo talvez um pouquinho de seixos rolados, por vê-los rolar.
Acho perda de tempo promover uma reforma ortográfica na ilusão de unificar o português em países tão díspares. As mudanças propostas são irrisórias. Vai ser um furo na água. Além disso, não sei se teríamos a ganhar com uma uniformização. Isto é coisa de milicos.
O mundo em que vivemos não pode mais ser pensado em termos de grandes estruturas. Valores e costumes já não são questões nacionais, mas antes de tribos e bairros. Assim haverá de ser também com a língua e seus milhares de palavras. Os seixos precisam rolar.
É compreensível. Grande parte dos jogadores não teve os professores que deveria ter tido. Encontrar o mestre nessa figura paternal e autocrática do treinador é um jeito de redimir-se de um passado de desamparo social, nas periferias.
Já os universitários bem nutridos pronunciam a palavra professor com a brevidade de quem toma um iogurte num gole só. Dizem “p’fssor”, pulando as vogais. Também isso é compreensível. Quem usa muito certa palavra tende a simplificá-la. Não só por força do hábito, como porque o interlocutor é capaz de captá-la, digamos, por amostragem. Uma pitada dela é o quanto basta.
Assim como meus alunos dizem “p’fssor”, os portugueses dizem “P’rtgal”, não “Portugal”, com todas as vogais, como dizemos no Brasil. Penso nas palavras como seixos que rolam e aparam as arestas. Ao longo do tempo, desvencilham-se do que não interessa mais. Foi assim que “à vossa mercê” virou “vosmecê”, “você”, “cê”.
Talvez o português ainda venha a se tornar uma língua eslava, como uma daquelas que nos assustam pela profusão de consoantes. Não entendo desse assunto. Entendo talvez um pouquinho de seixos rolados, por vê-los rolar.
Acho perda de tempo promover uma reforma ortográfica na ilusão de unificar o português em países tão díspares. As mudanças propostas são irrisórias. Vai ser um furo na água. Além disso, não sei se teríamos a ganhar com uma uniformização. Isto é coisa de milicos.
O mundo em que vivemos não pode mais ser pensado em termos de grandes estruturas. Valores e costumes já não são questões nacionais, mas antes de tribos e bairros. Assim haverá de ser também com a língua e seus milhares de palavras. Os seixos precisam rolar.
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