domingo, 4 de maio de 2008

A MENINA, O PADRE E A MÍDIA

Outono de 2008. Uma menina de 5 anos é jogada do sexto andar. Um padre de 41 anos pendura-se em mil balões e some nas nuvens. O mundo está ficando como o diabo gosta.

Ou como a mídia gosta. Ela sorveu até a última gota a tragédia de Isabella Nardoni. Era como se até o cachorro do pipoqueiro da esquina tivesse algo de relevante a declarar ao povo brasileiro.

Contam que um fotógrafo da velha guarda do jornalismo guardava uma boneca na gaveta para quando o chamassem a cobrir desastres aéreos. Então a levava para fotografar em primeiro plano, junto aos destroços do avião. A vendagem do jornal ia às nuvens.

Se o lado trágico foi exacerbado no caso de Isabella Nardoni, ao do padre Aderli de Carli restaria um timbre burlesco. Era a necessária descompressão emocional para quase um mês de celebração do martírio infantil. Ninguém agüentava mais. Mas todo mundo queria mais.

Para a mídia, a aventura (midiática) de um padre que subia aos ares em mil balões coloridos era uma história que – permitam-me a expressão – caiu do céu. Um conto de García Márquez prontinho. Era só mandar o repórter chegar antes do outro repórter.

O epíteto que coube a Aderli de Carli, “padre voador”, já traz embutido o caráter jocoso que se impingiu à sua desditosa aventura. Tivesse ela dado certo, e o padre estaria nas bancas de revista e programas de auditório. Talvez até em palácios e palanques. É assim que funciona. Não duvido que revistas masculinas já não estejam pensando em sondar alguma das mulheres que ganharam notoriedade com a tragédia do Edifício London. Nada como um dia depois do outro.

No que andei lendo (não muito) sobre Aderli de Carli, senti falta de referência a um outro “padre voador”. No século XVIII, o jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão também concebeu ousados projetos aerostáticos. Saramago o celebra numa obra-prima, Memorial do convento (1982). Mas pouco se fala dele no Brasil. Nem mesmo em São Paulo, que abriga seus restos mortais na Catedral da Sé.

Para Santos Dumont, tudo. Para Gusmão, nada. Para a Isabella defenestrada, o estrelato. Para a Isabella desnutrida, a estatística. Às vezes me parece que a mídia, a exemplo do padre Aderli de Carli, também se pendurou num monte de balões coloridos. E voa para o oceano.

8 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, Renato!
Além de um padre com o mau hábito de exibicionista, sobrou a menina linda e que foi destroçada pelo pai e madrastas.
Pergunta: E a mãe? Não lhe cabe culpa por omitir as ameaças da família de posses e cheia de advogados correlacionados?
Cadê o poder da verdade, se nos EUA ainda admoestam quem não cometeu pecados?
Cadê a história do padre, sua família, sua realidade?
E a ação do nosso bom jornalismo encubriu o ato do Cabrini...
E outros tantos algozes das histórias em quadrinhos... ops, desculpe, histórias do dia-a-dia em jornais bombásticos, onde a nota de um minuto pode virar série de mais de mês!
O direito de liberdade está num austríaco que reteve afilha em casa, sem a esposa saber.
Tudo isso com doses de glamour, lançamento de perfume do Roberto Carlos e Ronaldinho mostrando que mulher não se conhece fácil, não!
É! Desta vez a mídia bombou mesmo.
Beijos pra próxima histórinha mal contada...
Beijos pra ti, que bem soube misturar as estações deste novo frio brasileiro.
MIRIAM

Anônimo disse...

Perdão, mas os erros são propositais...
Beijos,
MIRIAM

Unknown disse...

Excelente ! Nada como terminar o feriado com uma reflexão brilhante.
Abraços
PS: Admin é a alcunha do piloto meia boca / saxofonista meia boca: João Manoel o Fiel Escudeiro.....

Unknown disse...

Muito bom o teu traçado paralelo.Quanto a nossa mídia, que vergonha!É verdade que a cada dia devemos sempre mais manter as televisões desligadas e deixar de comprar jornais.Fica a sugestão.
Grande abraço.
Norma.

Ararigboia disse...

Caro amigo Renato
Como sempre, vc é de uma inteligência magnífica naquilo que nos brinca com teus textos.
Vc sabe que vivi "in persi" essa coisa de lidar com perfil criminoso e no caso da menina Isabella, acho que estamos vivendo os horrores que nós mesmos estamos criando em nosso dia-a-dia.
Essa apologia ao horror está nos consumindo e nos tornando cada vez mais horríveis.
O teu texto deve ser encarado como um alerta para todos nós que adoramos viver as trevas do satanismo humano em detrimento da luz da bondade e do amor que também existe dentro de nós.
Nós, vivemos cada vez mais o espetáculo burlesco e malígno e acentuamos ainda mais as nossas vaidades quando tentamos mostrar que somos aquilo que não somos e até aqueles que deveriam cuidar dos valores espirituais tb se contaminam com essas bobagens.
Um forte abraço e que Deus te ilumine sempre para que possamos ler textos maravihosos , escrito por alguém não menos fantástico.

r a c h e l disse...

O pior é que fora esse mundo não tem um outro melhor que ele pra gente pedir pra descer.

Beijos, querido, belo texto, ótima crítica. Só não estou certa se gostei do novo vizoo do cantinho, mas o conteúdo tá de primeiríssima.

Abs,

Um Professor Indignado disse...

Renato, parece-me que os idealistas estão acabando. Tirando o Dines e você, ninguém mais protesta contra a mídia sensacionalista. Em um dos jornais, a Folha ou o Estadão, não me recordo, saiu uma matéria afirmando que, a cada instante que o caso Isabella era abordado, dobrava imediatamente a audiência de qualquer canal de TV. Como dizia o Professor Clóvis de Barros Filho, saímos da ditadura militar para a ditadura da mídia, da audiência, do IBOPE. Não quero praticar Sociologia nem Psicologia, mas as pessoas vivem hoje uma vida tão limitada, tão sem sonhos, que o inusitado desperta a atenção e exige que se acompanhe todos os detalhes jornalísticos. Agora, passamos do padre para o deputado Paulinho e para o Ronaldo e seus travestis. Qual será o próximo fato bombástico? Uma amante para o Lula? Corrupção do Serra? A morte do Bush? Um ataque nuclear de Israel? Ou contra Israel? Continuo acompanhando os jornalistas, mas cada dia mais crítico e menos tolerante com essa porcaria de noticiário.

Priscila Ferreira disse...

Mas quem precisa lembrar de Saramago e de história diante de tantos fatos interessantes sendo tão minuciosamente incessantemente e odiosamente detalhados bem à nossa frente!
Infelizmente temos esse assunto para poder discutir.
Lamentável!

Texto formidável!