domingo, 20 de abril de 2008

BOLINHAS DE GUDE

Aqui perto há uma loja acolhedora, meio caótica, apinhada de cousas e lousas. Às vezes entro lá para saber se estou precisando de algo inútil. Sábado, notei no balcão dois recipientes cheios de bolinhas de gude.
> Ainda tem quem jogue?
< Crianças, não. Mas os antigos compram.
Vi que a atendente não me incluía entre os antigos, fosse por cortesia ou erro de avaliação. Quem sabe até me incluísse, mas essa categoria teria para ela algum aspecto honroso que ainda me escapa. Na dúvida, abstive-me de comprar bolinhas de gude.

Essas esferas de vidro têm valor histórico para muitas gerações. Foi o inocente joguinho de rua que precedia a sinuca, na época em que era fácil encontrar um canteiro de terra em qualquer quarteirão. Na ditadura militar, quando o chão das cidades foi impermeabilizado pela febre da construção civil, as mesmas bolinhas de gude serviram para derrubar cavalos da polícia, no momento em que a repressão investia contra os estudantes.

Os cassetetes, então, ainda eram temidos. Hoje parecem elementos decorativos, como as espadas dos Dragões da Independência. Neste tempo de violência generalizada, comprar um fuzil automático deve ser tão simples, para uns e outros, quanto para mim teria sido comprar bolinhas de gude. Que lugar sobra para o velho cassetete no mundo globalizado? A própria polícia, com seu arsenal de recursos (gases, jatos d’água, balas de borracha etc.), não deve se dar mais ao trabalho artesanal de reprimir os ímpios à base de bordoadas nas nádegas.

Há muito não vejo na mídia a palavra cassetete, antes comum no noticiário. Para os redatores jovens, ela deve soar tão passadista quanto palmatória, o instrumento punitivo que um dia se usava nas escolas. Não que o cassetete, mesmo outrora, fosse capaz de resolver todos os problemas de ordem pública. Mas funcionava como símbolo da autoridade policial, do mesmo modo como as bolinhas de gude davam identidade ao menino impúbere.

Na vitrine dessa loja, um brinquedo reproduz o equipamento de um policial, com cassetete e tudo. Custo a crer que um garoto de hoje possa se interessar por aquilo. Mas, se está lá, é porque vende. Vai ver, quem compra também são os antigos. Temos de descobrir quem são eles.

8 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Renato. Só mesmo você para associar bolas de gude, cassetetes e palmatórias. Muito bom! Um abraço, Carlos Machado

Anônimo disse...

Renato
parabéns! Poético, nostálgico, tocante...
Carlos Carrion

Anônimo disse...

Só tu, Renato, para lembrar das bolinhas de gude com tanta liberdade.
Os cassetetes mudaram. Modernos são de outro material. Ferro ou aço, com uma capa que não a de couro.
Machucam mais a memória e não permitem respirar, se caem em pontos pré-determinados.
Os cavalos ainda poderão cair sobre as bolinhas que tem não dois, mas três tamanhos. A maior, cobiçavamos pelo colorido. Hoje eles tem colorido e trazem um olho, uma pintura abstrata e um inseto ou produto do mar preso dentro de sua área interna.
O caos dessa lojinha me faz lembrar nossa voraz vontade de encontrar um passado que nos permitia sentir um abraço de verdade, de pais preocupados em um carinho...
Pena que tudo isso será só lembrança escrita de tempos passados.
Ainda bem que essas lembranças somos nós.
Grande beijo e ótima semana.
Miriam

Nei Duclós disse...

Crônica maravilhosa, emocionante.

Anônimo disse...

Bolinhas de gude, bolinhas de sabão, bolinhas de meia cheias de lembranças - boas e ruins - mas sempre lembranças. bjs. MAmélia

Unknown disse...

Renato,teu texto tecido com tanta precisão me levou a viagens quase esquecidas. Lembro de quando meus irmãos jogavam bolas de gude e eu só podia ser uma expectadora frustrada, pois a brincadeira era exclusiva dos guris.Sei também de muitas histórias terríveis do uso de cassetetes, de palmatórias(que não conheci)contadas por minha avó.Eu ficava horrorizada.Hoje tanto as brincadeiras como os objetos de tortura são outros.Grande abraço.

Anônimo disse...

Eu, um dos antigos (achou um!), anos atrás, fiz o papel de maluco aos olhos de todos, sendo o único da praia que freqüentávamos, a ensinar a minha filha única e suas amigas, a fazer castelos de areia.
Não me perdoaria de não transmitir esta fantástica brincadeira às crianças de então. Chegamos até a empinar pipas solitariamente. Mas não tive um filho pra ensinar o delicioso jogo de bolas de gude, que tanto divertiu as gerações de todas as classes (hoje talvez continue nas periferias).
Quem sabe criamos uma ONG para resgatar este contato com o chão, para tirar um pouco a garotada das telas?
Abraço
Antonio

Priscila Ferreira disse...

Bom mesmo é jogar pinball no computador, viver sem uma ideologia para lutar contra a atual condição política e levar facas ás salas de aula para ameaçar professores...isso é que é bom!
E viva a tecnologia! rs...

P.S.: mesmo sendo uma menina, eu joguei bolinha de gude (adoooro!)

Ótimo texto professor!