Ainda recordo a placa de meu primeiro carro: CV 2912. Um Fusca 1973, amarelo, 1500 cilindradas. Ele pisca as lanternas para me mandar lembranças. Para mim, foi a extensão do Submarino Amarelo, como na canção dos Beatles.
Comprei esse Fusca quando cursava o segundo ano da faculdade. Trabalhava como revisor de textos. Um bom emprego, mas nada do outro mundo. Este mundo, sim, é que era bem outro. Para um estudante, comprar um carro zero não era nenhuma façanha. Muitos outros o fizeram. Só mudava a cor.
Comprar um carro novo, hoje, me parece algo menos próximo no horizonte de um jovem de 19 ou 20 anos que só possa contar com suas próprias forças. Sem respaldo familiar, é jogo duro.
Volta e meia, alguém se refere à década de 1960 e à primeira metade da de 1970 como "anos dourados". De fato o foram, do ponto de vista econômico, para a classe média. Com fartas oportunidades, quem se importava com os desmandos da ditadura, a carnificina nos porões? Uma minoria.
Mas essa minoria é quem escreve a história. Por isso "anos dourados" soa tão despropositado quanto "milagre econômico", na linguagem oficial. Um livro didático atual deve ser, no mínimo, reticente em relação a isso. Um dia desses, minha filha veio me perguntar algo sobre a década de 1970 e usou a expressão "anos de chumbo". Surpreendi-me. Eu não sabia que a plúmbea metáfora já era de uso corrente nas escolas.
Foi a crise do petróleo, em 1974, que transformou o ouro em chumbo. Não fosse esse fato externo, creio eu, o regime militar brasileiro teria demorado mais a entregar a rapadura. Funcionar, ele funcionava. Panis et circenses para as massas. Fuscas coloridos para os jovens da classe média.
O que marcou a minha geração foi ter vivido a prosperidade junto com a falta de liberdade. Este dilaceramento nos diferencia das gerações anteriores. Tivemos de engolir ouro e chumbo no mesmo copo.
Espero que os jovens de hoje e do futuro não precisem passar por essa mesma experiência. Não recomendo. Ela produz uma espécie de culpa misturada com nostalgia. Esse desconforto só se desfaz quando aprendemos o óbvio. O rei está nu, como sempre esteve. Mas é preciso escolher outro metal para representar os tempos idos da juventude. Ouro e chumbo são águas passadas.
10 comentários:
em compensação, sempre me surpreendo qdo escuto meus pais chamarem de "revolução" o golpe de 64.
É verdade que tivemos dois períodos de prosperidade econômica na república brasileira em que, infelizmente, os direitos humanos andaram esquecidos. Um deles foi a era Vargas, em que a indústria brasileira teve um dos períodos de maior desenvolvimento. Sob o governo JK tivemos uma seqüência desse desenvolvimento, já como liberdade, mas, com o aparecimento do fantasma da inflação. Durante a ditadura militar tivemos o período do “milagre”, o qual se esgotou e a abertura política tornou-se a única luz no fim do túnel. Com o plano real iniciamos um terceiro período republicano de estabilidade econômica que atingiu seu apogeu no atual governo. Em plena crise mundial temos grandes empresas públicas e privadas ostentando invejáveis lucros. Passei por tudo isso e acho que agora é melhor. Nem dos fuscas tenho saudade. Tive alguns, todos novinhos, depois tive o Gol (apelidado contra) 1300 refrigerado a ar; depois o Voyage e agora o Fox. Tenho um amigo que tem um fusca amarelo. Roubaram o motor e ele comprou outro. Eu não quero mais saber de fusca.
O ouro e o chumbo deram lugar ao silício, embora a maioria dos webnautas nem imagine o que tem por trás da tela e do teclado.
Neste mundo cada vez mais virtual, de comportamentos moldados pelos imortais de Hollywood, a eficácia da manipulação pela propaganda, com os recursos atuais, atingiu um nível de resultado imediato inimaginável há poucos anos. Vide a campanha do Obama, méritos à parte.
Assim, o jovem hoje é escravo do apetite sensorial, sem ideologias, e isto está sendo muito bem explorado.
Particularmente, espero que acordem logo para a emergência ambiental, ou terão muito menos oportunidade de ajustar suas aspirações por muitas gerações.
Abraço
Antonio
Eu ainda mantenho o fusca, Branco 72, reluzente como o Ouro, Poluente e necessário como o Chumbo. Conectado, plugado, "siliconado". O rei anda nu, já andou no tremendão, já assinava os AI, depois presidiu, Constituiu, e agora ainda manda sob as sombras de uma justiça "moderna". Saudades mesmo do submarino Amarelo.
Caro amigo Renato - sua crônica me fez voltar aos anos de chumbo e à inquietação quanto ao futuro famíliar, sobretudo de meus quatro filhos. Em meu fusquinha de cor berilo, percorri inúmeros super mercados, desabastecidos, em busca de leite Ninho.Foram anos terríveis e só tenho saudade de meu valente fusca.
Beijos
Adélia
Por acaso, esse Fusca é aquele do "escreva, cabo!"?
Anos dourados? Sempre estranhei o nome dado àquele período da ditadura militar brasileira. Era jovem à época e me lembro das torturas nos porões do DOI-CODI, do Herzog, das bombas de gás lacrimogênio estourando nas ruas. E por aí vai. A dualidade é que eu era jovem e tinha os sonhos inerentes à idade. Dançava aos sábados, namorava, como uma jovem o faria em tempos normais. No entanto, era proibido falar muito do que se pensava, era proibido até cantar determinadas músicas. De Geraldo Vandré, por exemplo. Certamente, a denominação atual é mais coerente. Chumbo com significado de tiro, de bala, de arma de fogo. Espero que nunca mais voltem tempos como aqueles.
Olá Renato!
Lamento informar que:
Nos Anos de Chumbo escapamos por quase um ano deste país.
País com armas, proibido dizer que se amava a liberdade.
Proibido sorrir na frente da polícia.
Proibido orientar alguém na rua, que desconhecesse locais depois das 10 da noite.
Mas se podia dançar colado, beber vaca preta, rum Montilla, olhar as estrêlas, ter um vestido de baile numa noite de festa de 15 anos, com a primeira maquiagem pesada e que só se repetiria depois dos 18 anos.
Podia se conversar ao pé do ouvido e levar a chave de casa, desde que um pai responsável nos trouxesse de volta, o mais tardar, a meia noite e no Ano Novo podia até ser que voltássemos de manhã, depois do café no Aeroporto.
Podia ter a volta do cinema a pé, fosse no centro de São Paulo, quem sabe da Av. Paulista em reforma, paquerar os meninos na descida da Augusta e tão ocupados quanto as meninas, pra poder tomar um sorvete e comer as pipocas no cinema, talvez trocar o número do telefone.
Podia chorar e a mãe querer saber por que e ficar com o colo da menina à noite, conversar do último show de música da Record, falar do homem que pisou na Lua e descobrir que o Metrô, recém-construído, era rápido e especial.
Mas tudo isso foi embora com a covardia do fim da noite mal-dormida e os problemas de escolhas definitivas da vida.
Desta vez atrás de uma riqueza ilimitada ou só pra sobreviver e conquistar o próprio espaço neste mundo de meu Deus!
Agora nem chumbo, nem ouro.
Busca de estar vivo, pensante, amante da própria sobrevivência e de uma mudança das entrelinhas cada vez mais doentes da sociedade, sem educação, sem saúde, sem moral e mesquinhas e fora do equilíbrio de Leis distorcidas pelo prazer de coibir uma vida sadia.
Viva as drogas de todas as espécies, bailes funk, moral perdida na ilusão de ter uma liberdade promiscua e sem saída para um novo amanhã deste século XXI.
Beijão neste teu coração que palpita como eterno homem da procura da Eternidade sadia.
MIRIAM
O homem com cara de Bela Lugosi falava diante de uma parede de livros. Meus pais, mais moços do que eu hoje olhavam sérios a pequena televisão, quando terá sido? O que aquele homem mal encarado falava de tão perturbador?
Nasci alguns meses depois do golpe de abril, dos anos de chumbo guardei o medo da polícia com os grandes carros pretos da ROTA, o desconhecimento da letra do hino, porque canta-lo era feio, o silêncio dos professores nos sete de setembro nos ensinava isso e a desconfiança perene da política e do poder. Dourados? Não para mim que queria 'sair' da infância como que de uma roupa apertada.
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