quarta-feira, 17 de junho de 2009

VIAGENS IRREVERSÍVEIS

O geógrafo Franco Farinelli fala em reversibilidade do movimento para contrapor as viagens de Marco Polo e Colombo. O navegador genovês confiava nos mapas, tinha pressa, muitas ambições e compromissos com patrocinadores. Tinha agenda. O veneziano transformou-se no caminho, esqueceu o tempo. Por pouco não teria jamais voltado para casa.

Tipos de viajantes e modos de viajar foi o tema de meu
recém-concluído doutorado em Letras. A tese, intitulada Em trânsito - Um estudo sobre Narrativas de Viagem, está na íntegra em www.renatomodernell.com.br/arquivos/em_transito.pdf.

A reversibilidade do movimento evoca minha experiência pessoal. Aos 22 e aos 33 anos de idade resolvi viajar levando a vida em aberto. Vendi o pouco que tinha e saí do país sem passagem de volta nem previsão de retorno. Na primeira vez, por medida de economia, fui de navio. O Cabo San Roque, espanhol, de umas 15 mil toneladas, fora um barco glamoroso nos anos 60 mas já estava decadente naquele outono de 1976 em que fazia sua última travessia do Atlântico em linha regular de passageiros. O detalhe ornamentou minha aventura.

Nenhuma das demais viagens que fiz rivalizou, na essência, com aquelas sem passagem de volta. As outras tiveram
a premissa do retorno como fator de perturbação, feito uma torneira gotejante. O ritual da volta para casa pode ser reconfortante, mas nunca vertiginoso e revelador quanto a consciência, ao partir, de talvez se estar vendo tudo à volta pela última vez. O gostinho do irreversível. Mesmo quando se retorna de uma viagem em aberto, sente-se o mundo habitual de modo diferente. Então não será uma volta, mas um salto para um patamar existencial situado uma oitava acima do momento da partida.

Entre Marco Polo e Colombo, cravo Marco Polo e empate. Dispenso a pressa e o estresse de Colombo. A liberdade possível, hoje, é viajar sem agenda, sem mapa, em um mundo que sacraliza a precisão do GPS.

Não pude repetir, aos 44 e aos 55, as viagens em aberto realizadas aos 22 e aos 33 anos. Quem sabe o farei aos 66 anos, se antes os anjos não vierem me levar para a Banda Larga. Essa viagem, sim, é irreversível. E de graça, penso eu.

12 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto!

E espero um dia fazer uma viagem dessas. Até agora as minhas são apenas literárias :(

abraço!

Faz e Conta disse...

Eu fiquei te devendo o livro de uma autora que fez uma viagem ao mundo Tchecoviano. mas sempre é tempo de se ler um bom livro.
Quando eu resgatar o me exemplar eu te empresto.
Boas viagens!

Carlos Carrion Torres disse...

Renato,
Gostei muito de saber das suas viagens, do seu espírito aventureiro, da sua admiração por Marco Polo. Porém, gosto também da disciplina burocrática de Colombo.
Admiro e invejo respeitosamentes suas viagens de 22, 33, 44, ec, anos. Bom post, gostei!
Aliás, voce já esteve nos países da EX. URSS, nos 3 do Cáucaso e nos 5 da Ásia Central?
Carrion

Andarilho da Luz disse...

Uma viagem irrevesível...
Eu estou aqui, pensando cá com meus botões, sobre o belo texto que você acaba de me mandar e, cheguei a conclusão de que todas as viagens são irrevesíveis, uma vez que serão sempre uma ida sem volta.
Por que ida sem volta?
Porque vamos e, no caminho, assim como no destino final descortinamos um mundo novo dentro de nós que, sempre ficará preso à memória da ida.
Renato, como sempre você é brilhante.
Um forte abraço.

Unknown disse...

Agora sim posso ler o Doutorado ! Depois comento.A foto da semana esta bem melhor !
Abs

lando disse...

Está no sangue do gaúcho! Um dia ele arruma o bornal, confere o cantil e sai mundo a fora.
Volta, fecha a porteira, para deixar a estância protegida.
Não pensa em voltar.
Talvez volte um dia para tomar um mate quente e dar uma abraço em quem ficou.
Corre nas veias gaúchas.
Grande texto. Faltou a acordeona.

Anônimo disse...

Caro Renato

Um passeio pelo seu texto, e uma leitura diagonal preliminar de duas horas pela sua magnífica tese (que será devidamente lida tão logo possível), já me transporta para um patamar diferente e seguramente melhor do que aquele de onde parti, e te agradeço por isso, como sou grato a todos os bons autores (criadores) que leio. Quando então podemos levar todos os sentidos do corpo, além da mente, numa viagem qualquer, não há como voltar o mesmo, ou reconhecer o mesmo ao redor. E "navegar é preciso".

Abraço
Antonio

Monica Martinez disse...

De graça nada, Renato. Enterro sai é muito caro rs

Um abraço e parabéns pelo texto delicioso

Monica Martinez

Laura disse...

Oi pai!
Belo texto!
Gostei bastante também do que fala do pessoal do café da manhã... eles têm razão, esse blog tá meio sério. Mas não deixo de estar super orgulhosa de você, por defender tão bem seu ponto de vista.
Gostaria de colocar que as viagens dos 44 e 55 anos deram lugar a sua função de pai :) Vai dizer que cuidar da filhota aqui não é uma viagem? ;D

Beijo!

Unknown disse...

Como eu prometi !!!
Abs e ótimas férias
http://dicasdecinemasp.blogspot.com/

Zizi disse...

Renato, lindo texto, parabéns. Um 'navio em chamas' pelas costas para temperar uma viagem.Deve ter sido maravilhoso.
E as próximas certamente serão.
Abraços.
Zizi

Um Professor Indignado disse...

Um professor do Mestrado comentou sobre a relatividade do tempo. Somente existiria o presente, pois o futuro está sempre por vir e o passado foi presente algum dia. Ele até brincava, justificando a infidelidade, pois o marido ou a esposa de agora não é o mesmo ou a mesma daqui há um segundo e, portanto, são pessoas diferentes, agindo de modo diferente. Assim, uma viagem nunca se esgotaria em si mesma. Cada um de nós, visitando os mesmos locais, teria visões diferentes. Mesmo a morte não será uma grande viagem para um infinito que não podemos explicar? Eu gostaria de viajar, porém, para algum país onde não existem torcedores fanáticos. Daqui há pouco, onde moro, ficará um inferno com a enxurrada de corinthianos que passarão por aqui. Vocês têm alguma sugestão?