Devo ao amigo Francisco Moura, entre tantas coisas, meu primeiro contato com a prosa de Winfred Georg Sebald (1944-2001). Esse autor alemão, que ensinou em universidades inglesas, produziu narrativas de viagem que articulam diversos gêneros da escrita.
Sebald é um portento ao descrever pessoas e lugares. As coisas e a história das coisas. E, em cada coisa, a história do mundo. Como outros autores magistrais, ele de início nos impõe um estado de incerteza que aos poucos se torna delicioso, como a mim também ocorre nos filmes de Lars von Trier. Se perguntado, eu demoraria a responder se estou gostando ou não. Mas é isso. Uma grande obra vem para nos ensinar o jeito de gostar dela. Isso também ocorre com certas mulheres.
Em Os emigrantes (Die ausgewanderten), Sebald chega no quarto de uma hospedaria em Manchester e dá de cara com o curioso teasmaid, engenhoca que combina as funções de despertador e máquina de fazer chá. Escreve: "Quando soltava o vapor do cozimento, o aparelho, construído sobre um consolo de lata cor de marfim, de aço brilhante inoxidável, parecia uma usina em miniatura, e quando escureceu vi que o mostrador do despertador era fosforescente, num sossegado tom verde-claro que eu conhecia da infância, e que inexplicavelmente sempre me parecera proteger as minhas noites".
Um aparelho desses, imagino, só podia mesmo ter sido bolado na Inglaterra. Ele conjuga duas obsessões que se entrelaçam na cultura britânica: o chá e a hora do chá. O sabor e o tempo. Coisas díspares, em princípio, mas que juntas constituem como que um marco existencial.
Os jornalistas da minha geração amavam suas máquinas de escrever. Aquelas nossas usinas em miniatura (com a licença de Sebald) eram capazes de realizar, ao mesmo tempo, duas operações indissociáveis: formar palavras e imprimi-las. O chá na hora do chá. Hoje os computadores refletem textos na tela, mas depois somem com eles. Milhões de frases escritas jamais conhecerão a aspereza do papel, que contém o percurso da humanidade.
Talvez eu jamais chegue a operar um teasmaid. Não sei se algum dia ainda voltarei à Inglaterra. Mas no centro de São Paulo, um dia desses, vi um cara tamborilando no teclado de uma máquina de escrever. Era um despachante, se não me falha a memória.
9 comentários:
Renato, maravilha, parabéns! Eu nunca ouvira falar de Sebald, muito menos de "Teasmaid". Não há nada sobre nenhum dos dois na Wikipédia pt. Sobre "Teasmaid" só há nas Wikipédias em Inglês e em Alemão. Se Deus quiser, até o fim do dia haverá na nossa Wiki-pt.
Carlos Carrion
Teu jeito gostoso e discreto de falar das mulheres como "quem não quer nada"!De alguma forma demonstrastes sensibilidade e um jeito ineressante de nos observar!!
Grassa
Que delícia de texto, Renato! Lembro-me de uma Olivetti Lettera 44 que rodou o mundo comigo. (Certa vez foi até Nova Delhi, numa besteira da companhia aérea que nos transportava de Paris para São Paulo; mas voltou.) Preciso ler esse escritor de literatura de viagem... Nunca tinha ouvido falar nele antes de assistir à tua defesa de tese... ;)
Renato, é incrível essa tua intimidade com as palavras. Observa como conseguiste aguçar os sentidos de teus leitores/comentaristas: "maravilha" "gostoso", "delícia". A mim o texto despertou um baita saudosismo.
Caríssimo professor,
sempre acompanho seus textos. São atraentes, de tal forma que a leitura corre, as linhas passam, enquanto, inconscientemente, vc pede para o seu relato não findar.
Para mim, seu blog, se me permite, é paradigmático. Inspiro-me nele para fazer de meu blog algo tão sedutor.
Um grande abraço
Caro Renato
Crônicas como esta nos revela os Sebelts e Teasmaids ocultos das nossas vistas, e nos remete à diversidade da manifestação humana, tempero da realidade tão insossa para tantos.
Mas ao acessar seu blog, me chamou atenção a sua foto de outrora com um dos seus companheiros caninos de viagem. Vi por anos você caminhar com a pastora Kika com a alegria e cerimônia de parceiros, e me inspirava na profundidade desta amizade para não desperdiçar meus momentos com meu Yankee.
Abraço
Antonio
Não podemos esquecer que sobrevivemos dentro de contextos históricos. Quando olhamos para o passado, temos um misto de nostalgia e desprezo. Também seremos tratados da mesma forma pelas gerações futuras. Um filósofo me disse, de modo bem irônico, "como a Humanidade viveu tanto tempo sem celular". Estamos caminhando para um mundo absolutamente virtual; será que algum dia existiremos fisicamente ou seremos meras ilusões?
Descobri recentemente o talento de Sebald e sinto por ele ter deixado uma obra tão pequena. Um escritor incrível!
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