Cada geração traz à sociedade um certo desconforto. Faz parte do jogo. Desconfortáveis (e geniais) também foram as inovações de Piazzolla no tango tradicional.
Imaginemos o fole do bandoneón como sendo o curso da vida humana. Sabemos que sua duração média se expande, mas isso não implica que nos tornemos melhores ou mais criativos. A expansão se concentra nas extremidades. Embaixo, junto à mão esquerda de Piazzolla, situa-se a velhice, que a linguagem corporativa escamoteia com essa bobagem de "terceira idade". No alto, a adolescência, rompante.
Ah, não é fácil adolescer. Já é envelhecer, sem saber. E como saber? A universidade empapuça os jovens de informações, mas fracassa no que deveria ser sua missão essencial: acolher pirralhos e desovar adultos. A alquimia não acontece. Marmanjos continuam a se portar como infantes travessos, mesmo com diploma na mão. Não sobreviveriam um dia sem seu suspensório financeiro, a mesada, ou sem essa mamadeira moderna, o telefone celular.
Fala-se na "geração canguru", jovens que se recusam a deixar a casa dos pais. Ao protelar o conhecimento que gerações anteriores semearam nos caminhos do mundo (tabus, desafios, tradições e contradições) eles cultivam uma espécie de esquecimento cultural. Um Alzheimer coletivo, digamos. Isto torna a adolescência cada vez mais longa.
No outro extremo do bandoneón, a velhice também está, por assim dizer, inflacionada. Vive-se cada vez mais, porém (é claro) cada vez menos como se vivia antes. Toca-se o barco com um crescente grau de dependência em relação aos que estão em idade produtiva, na forma de cuidados, consolo, assistência, pensões, remédios, aparelhos. Outra "geração canguru", semelhante à adolescência, se espicha na parte de baixo do fole, junto à mão esquerda de Piazzolla.
Já o segmento central do bandoneón não se expande muito. Permanece mais ou menos como sempre foi. No entanto é ali, nas décadas velozes que correspondem à vida adulta de uma pessoa, que brotam os pilares da civilização: a pirâmide, a semente, o metrô, o remédio, o tempero, a teoria, a pintura, o verso inspirado, a sinfonia, a ponte pênsil.
Sustentar extremos não é tarefa fácil. Bem, fazer o que Piazzolla fez com o tango, convenhamos, também não era.
3 comentários:
Estranho comentar quando o tema é Piazzola e adolescencia.
Conheci esta mais que absurda música através da minha mãe em pré adolescencia. Ela apagava as luzes da casa a espera de meu pai e dizia: Ouça Tereza, essa musica é punhal.
Eu ouvia emocionada ao lado dela.
Bem mais tarde em 86_ Piazzolla no Teatro Guaíra. Eu com minha mãe na platéia e o único autógrafo que desejosa busquei e que anos depois num arrebato ofereci a um amigo bandoneonista.Quase arrependida...
Agora escuto, Renato, Concerto de Aconcagua. Lindo_ lindo. Grata pela lembrança desta sempre adolescencia...
Piazzola e o ciclo da vida? O Renato estava inspirado! Nunca gostei muito desses rótulos: criança, jovem, adulto, velho, idoso, etc. Fica sempre uma falsa expectativa de como deveríamos nos comportar; se fugimos a essa "normalidade" prevista somos considerados vagabundos, inúteis, marginais, aproveitadores, deslocados, etc. Uma das minhas filhas esticou um pouco a sua adolescência; ela não acredita muito na Humanidade, muito menos no povo brasileiro. Está decidindo como viverá sua vida futura. Eu já estou sendo tratado como idoso, apesar dos meus ainda 56 anos de idade. Incomoda; parece que eu deveria ficar em casa, assistindo TV, cuidando de bichos de estimação e visitando netos (não os tenho). Na rua, sou empurrado, pisado, desconsiderado. Mas, continuarei contribuindo para a Humanidade, na medida do possível. E o Piazzola demonstra que há cultura inteligente na América Latina.
Bela metáfora para uma reflexão sobre a importância de se manter no caminho do meio, sem perder a inocência própria da juventude nem a flexibilidade que a nocência da vida muitas vezes insiste em petrificar.
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