quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

PRAZERES TRANSVERSAIS

A City Lights, na Califórnia, desponta como a melhor livraria do mundo na lista do Lonely Planet's Best in Travel 2011. Entre as dez primeiras, sete ficam em grandes cidades: Buenos Aires, Roma, Berlim, Paris, Londres e Pequim, além de São Francisco. 

Não sei se uma grande cidade é sempre uma metrópole. Para mim, tamanho não é documento. Deve haver algo mais, ou algo menos concreto. Vou arriscar dois disparos.

Primeiro: uma metrópole é um lugar de prazeres miúdos, transversais. Exemplo: tomar café na padaria da esquina. Ou tropeçar numa livraria desconhecida, mas que sempre esteve ali, à nossa espera. Segundo: uma metrópole é uma cidade que tem um pensamento sobre si própria. Um pensamento profundo, fermentado. A metrópole tem caldo grosso.

São Paulo tem isso. Podemos incluí-la entre as dez metrópoles mundiais do século XXI. Se ainda não temos uma livraria na lista do Lonely Planet´s, creio, é porque nossas principais casas do ramo, embora exuberantes, deixaram-se contaminar por esse farfalhante espírito de shopping center. Só em poucas, e discretas, ainda se respira certa reverência ao livro. Ao cheiro do livro.

O livro não desaparecerá, acredita Umberto Eco. Como objeto, teria atingido um grau tão alto de simplicidade e síntese que, segundo ele, não pode ser superado por outro artefato  com finalidade semelhante. A bicicleta seria outro exemplo. Paul McCartney, quando esteve em São Paulo, escapou do hotel e foi pedalar em um parque, anônimo. A metrópole, insisto, é o lugar dos prazeres transversais.

Ah, sim, a padaria da esquina. Quase me esqueço dela. O pão (como o livro e a bicicleta, talvez a bola) também atingiu o estágio da imortalidade. Atravessa os milênios, em inesgotáveis formatos e receitas, aqui e acolá, sem jamais deixar de ser aquilo que é. Podemos até parar de comer pão, para não engordar. Mas uma cidade sem o cheiro do pão seria inabitável.

O Lonely Planet´s Best in Travel devia listar as dez melhores padarias do mundo, além das livrarias. Nesse caso, São Paulo estaria no topo. Se você tem dúvidas, vá até a padaria da esquina. A metrópole é feita de prazeres miúdos. Os grandes prazeres são para os turistas.

9 comentários:

Ana Luísa Lacombe disse...

Pois é... Qual é sua padaria agora? Continuo ali, com Cabral, Leo, Lady, Damião e o antipático Carlos e seu indefectível mau humor...
Saudades do companheiro de padoca.
Beijo

Anônimo disse...

Renato
Belo e tocante o seu texto.

Nós que temos idade para ter testemunhado e vivido nas últimas décadas São Paulo criar, conservar, perder e renovar a sua substância como metrópole, ainda com o privilégio de conhecer alguns outros lugares como referência, podemos saborear com mais consciência os prazeres miúdos que formam o tecido das relações humanas de valor desta cidade.

Quanto ao nosso inestimável livro impresso, imaginando o futuro próximo, com a população e a inclusão social projetada, não haverá solução sustentável que viabilize sua continuidade, salvo ocorra alguma das inesperadas alternativas surpreendentes que a tecnologia nos oferece.

Enquanto isso, prosseguimos também curtindo nossa leitura não digital e o nosso cafezinho de cada esquina.

Abraço
Antonio

Pedro Monteiro disse...

Renato, realmente, as padarias têm um pouco dos pubs ingleses, um toque das cantinas italianas, não deixo de frequentar minha padoca um dia sequer,o único problema é que ali se fala muito de futebol... algo que a gente nem sempre está a fim.

Geraldo Hasse disse...

Moderno,
vim aqui na esperança de encontrar algo sobre o mico de Abu Dhabi, de onde 5 mil colorados estão voltando enrolados nas bandeiras da soberba gaúcha. Não precisa apontar um culpado, nem um responsável, mas escreve alguma coisa, che, pois a autoestima vermelha sangra enquanto os azuis riem feito hienas nas esquinas.

DIMAS A. KUNSCH disse...

Renato,
Um abraço, primeiro. Junto com um agradecimento pelo prazer proporcionado em elevada dose por seu texto. Aprecio imensamente essa visão da cidade em seu varejo cotidiano. E essa homenagem tão respeitosa ao mundo encantado das padarias. Ah, conheço uma, duas, três...

Adélia disse...

Caro Amigo Renato: ainda guardo com muito carinho o cheiro de pão saindo do forno: tanto na padaria, como na cozinha da minha mãe. São emocões que nunca se apagam...
Abraços natalinos
Adélia

Um Professor Indignado disse...

Nasci em São Paulo e viajei, infelizmente, muito pouco pelo Brasil. Não sou de saudosismos. A cidade nunca teve um planejamento decente e parece que nunca o terá. Claro que encontramos prazeres, em andar por algumas ruas e parques, tomar um café em cafeteriais, visitar algumas livrarias, etc. Mas, São Paulo estressa demais, pela quantidade dominante de gente, a nos atropelar, pisar, empurrar, chutar, ameaçar, etc. Foi desenvolvida para o automóvel. Hoje mesmo, ao atravessar dois cruzamentos, deparei-me com vários carros sob a faixa de segurança. Fica difícil manter o humor assim.

Um Professor Indignado disse...

E não chore pelo seu Internacional. Pelo menos ele foi disputar algum título importante, ao contrário dos sem ter nada e do meu quase extinto Palmeiras. E deixemos o futebol de lado; somente dá camisa aos profissionais.

Anônimo disse...

Quando eu achar que não vale mais a pena escrever - porque ninguém mais está lendo com sutileza as coisas (é o que parece) -, suponho que, para me revigorar, irei reler os curtos textos de Renato Modernell na medida exata escrevendo (para a sombra?) como se tudo fosse claridade...

Fernando Monteiro