terça-feira, 1 de dezembro de 2020

UMA NOVA EXPERIÊNCIA DE LEITURA

                    Uma das boas coisas da quarentena, para mim, foi a iniciação no mundo dos e-books. Se isso não aconteceu antes, não foi por preconceito, mas por preguiça, e quem sabe também por algum receio de pular a cerca em relação aos livros impressos, fiéis companheiros de uma vida inteira. Uma bobagem, claro, mas o tempo nos ensina a respeitar certas bobagens.

Durante o inverno, ainda no primeiro pico da pandemia em São Paulo, sem chance de frequentar livrarias físicas para me inebriar com o perfume das pilhas de livros novos, afinal me dispus a providenciar um dispositivo eletrônico de leitura. Comprei pela internet. Chegou rápido, quase como uma pizza.

Mas demorei um pouco a decidir qual seria meu primeiro e-book. Depois de zapear pelas memórias de Churchill, que a plataforma disponibiliza parcialmente como degustação, sem custo, achei que a ocasião pedia um autor contemporâneo. Um jovem, mesmo sem o pedigree de Churchill, me parecia mais sintonizado com o upgrade tecnológico que estava prestes a ocorrer na quarentena de um aposentado do INSS.

> O que é isso, sr. Modernell? O senhor até que nem está tão velho assim...

Obrigado, mas vamos deixar esse assunto para outra ocasião. Agora estamos tratando da chegada do e-book na vida de um homem bastante rodado, e não do quanto esse homem possa estar mais ou menos próximo da vida eterna. Enquanto estamos por aqui, nunca é tarde para dar uma refrescada em nossos hábitos de leitura. Decidi estrear como leitor digital focando minha atenção em um autor com cuja obra eu nunca tivesse tido contato antes.  

Escolhi A ilha da infância, terceiro livro da série autobiográfica do norueguês Karl Ove Knausgård, um dos expoentes da chamada autoficção, gênero de escrita que tem estado em alta nos últimos tempos. Foi uma escolha acertada. Mais que isso, gratificante. Knausgård é, de fato, um autor que sabe escrever tanto nas linhas quanto nas entrelinhas, assim como se dizia que Tostão sabia jogar com a bola e também sem ela.

Gostei tanto da prosa solta de Knausgård, que na sequência inclui outro livro dele, A descoberta da escrita, o quinto da série, no conjunto de leituras que me apressei em programar para a primavera, quando a curva da pandemia começou a se achatar. Os demais livros da primeira leva foram A jangada de pedra, de José Saramago (já andava com saudades de sua sintaxe lusamente sinuosa); O museu da inocência, do turco Ohran Pamuk (do qual leio tudo o que sai); Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk; e Noturnos – Histórias de música e anoitecer, do japonês Kazuo Ishiguro. Mais tarde me dei conta de que esses quatro últimos autores são, todos eles, vencedores do Nobel de Literatura, mas esse não foi um critério de escolha, apenas uma coincidência.

< Coincidência, sr. Modernell? Ah, não venha com essa!

Juro. Coincidência pura. Mesmo que Knausgård também venha a abiscoitar o seu Nobel daqui a alguns anos, o que considero provável, mesmo assim continuará a ser uma coincidência, repito, o fato de eu ter selecionado esses autores tão estrelados. Não acho que o Prêmio Nobel, ou qualquer outro, seja um selo de qualidade para o autor premiado, e menos ainda, claro, um demérito para os preteridos. Basta lembrar o caso clássico de Borges para colocar em xeque os critérios de concessão dessa honraria que os escandinavos sempre teimaram em lhe negar. Mas não era disso que eu queria falar aqui. O tema destas adjazzcências é o e-book ou, mais precisamente, o impacto que ele provocou em meus hábitos de leitura, tão drástico quanto as mudanças que a própria pandemia veio a causar no dia a dia de todos nós.

A primeira coisa que me seduziu nesse novo suporte de leitura foi a comodidade. Pode-se ler ao ar livre, sob a luz do sol, ou no meio da noite, se for o caso, sem acender a lâmpada de cabeceira, pois a tela se ajusta automaticamente a qualquer situação. É possível também determinar o tamanho da letra e diversos outros parâmetros de design gráfico, além de brilho e contraste, de modo que a leitura se torna muito menos cansativa do que em um livro impresso, ao menos para olhos já meio castigados pelo correr dos anos.

Porém a maior vantagem do dispositivo, a meu ver, está na portabilidade. No café da manhã, no banheiro, no elevador, no ônibus, na fila do supermercado, em qualquer situação fragmentada do cotidiano é possível acrescentar algumas páginas à leitura em andamento. Isso reforça uma sensação de continuidade, como se o texto jamais nos abandonasse, e a vida real, essa sim, se mostrasse entrecortada, às vezes até secundária, o que não é de todo ruim quando se é obrigado a ficar de quarentena.

A tela do aparelhinho indica a mesma página do livro em versão impressa e também a posição do trecho lido em determinado momento. Essas duas grandezas diferem, evidentemente, em um sistema que permite ao leitor alterar a diagramação. Bem, até aí morreu Neves, alguém dirá, prestando singela homenagem à memória de Nélson Rodrigues, que consagrou o dito.  É verdade, reconheço. Todos sabemos que qualquer publicação que se preze, desde a Bíblia até o manual da máquina de lavar, traz as páginas numeradas.  Sim, morreu Neves. Acontece que eu ainda não disse o mais importante: além das páginas e posições, no leitor de e-books é possível ativar o registro do percentual de leitura já realizada até o momento, ou seja, o quanto do livro já ficou para trás.

Esse pequeno recurso tecnológico me motivou a tentar uma nova experiência: ler ao mesmo tempo, e não um depois do outros, os cinco livros selecionados. Estabeleci a cota de 10% (cravados) de cada um deles em cada dia da semana, de segunda a sexta. Desse modo, a leitura avançaria de forma emparelhada, independentemente do tamanho e da divisão interna dos textos. A empreitada deveria estar concluída, portanto, em dez semanas. A programação semanal ficou assim: segunda-feira, 33 páginas de Saramago; terça, 62 de Knausgård; quarta, dia de feijoada, 25 de Tokarczuk; quinta, 56 de Pamuk; e sexta, 21 de Ishiguro. Era quase uma brincadeira. Mas levei a sério. Outra coisa que a gente aprende por aí é que certas brincadeiras, levadas a sério, se tornam mais divertidas.

Ao longo dessas dez semanas de primavera, esse esquema de leitura paralela me propiciou estabelecer conexões entre os cinco livros que, imagino, não teriam ocorrido se eu os tivesse lido, como de hábito, do modo aleatório e ocasional, só quando me dá vontade, e tudo bem. Peguei gosto por uma outra coisa, uma dinâmica de leitura, uma sincronia de atmosferas, algo que está além do enredo e das frases do texto.

Posso me explicar melhor fazendo um paralelo com a música. Se eu houvesse lido esses mesmos livros de forma estanque e sequencial, teria ouvido solos de cinco instrumentos diferentes, um de cada vez. Poderia apreciá-los como se o resto não existisse, já que essa é a prerrogativa natural de uma obra de arte. Lê-los dentro de uma escala “interativa”, digamos assim, foi ouvi-los tocar juntos como em um conjunto de música de câmara.

Recomendo uma experiência assim, ou semelhante, a quem deseja se aprimorar na escrita. A comparação quase imediata entre um punhado de autores evidencia seus truques e estratégias. Sei que nem todo mundo está interessado nisso. No entanto, mesmo a leitura de fruição pode ganhar outra dimensão com essas facilidades propiciadas pelo formato e-book. Pode-se ler, por exemplo, cinco biografias, cinco livros lidos na infância, cinco narrativas de viagem, cinco textos que retratam a vida em épocas de epidemia, e assim por diante. O critério de escolha das obras que entram no pacote deve ficar, é claro, por conta de cada um. Ou então  de quem se disponha a organizar um grupo de leitura compartilhada nas redes sociais.

< Vamos encerrando, sr. Modernell?

Sim, vamos encerrando. Mas antes gostaria de dizer duas coisas mais. A primeira delas é que minha empolgação pelo formato e-book, mesmo que não seja fogo de palha, pode ter sido exacerbada pelo júbilo de, pela primeira vez na vida, poder dedicar meu tempo disponível a leituras que me interessam. Antes, isso só acontecia nas férias ou em períodos de desemprego, minados pela aflição. Na maior parte do ano, primeiro como estudante, depois como jornalista e mais tarde como professor, sempre tive que ler pilhas de textos por dever de ofício. Não me queixo, é assim com todo mundo, mas também não posso deixar de observar que as toneladas de textos que li por obrigação profissional, ao longo dos anos e das décadas, não foram os que eu teria escolhido, se pudesse escolher.

Agora eu posso. Nunca imaginei que fosse tão prazeroso. Sem leituras obrigatórias, vindas de fora, sinto-me como um astronauta que se libertou da força da gravidade. O cara se move no ar como bem entende, para lá e para cá, quase sem peso, livre para decidir por si mesmo o que é o piso, o teto e parede. Sem a gravidade, dá tudo na mesma. Como, no meu caso, essa nova situação de vida coincide com a adoção de um novo dispositivo de leitura, eletrônico, pode ser que as duas novidades se confundam, conferindo a essa experiência uma dimensão que ela haverá de perder com o passar do tempo. Enfim, é o que temos para o momento.

< E a segunda coisa, sr. Modernell? Vamos lá.

A segunda coisa é esta: quero deixar claro que não pretendo abandonar os livros convencionais. Há neles algo de sagrado que a insípida eletrônica jamais conseguirá desbancar. Ainda que os futuros e-books sejam capazes de emitir o aroma do café que o personagem está tomando em determinada página, ainda assim apreciaremos esse gesto convertido em palavras impressas com tinta em um papel que irá amarelando com o passar dos anos, das décadas, até dos séculos, no qual sucessivos leitores atentos mas descuidados quem sabe venham a deixar suas próprias manchas de café.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente, Modernell!