Como vocês, estou com a mão na maçaneta de 2021. Na outra mão, tenho um livro que chegou até mim – não recordo como – lá pelos idos de 1980. Surpreende-me que tenha sobrevivido aos tantos expurgos que fui obrigado a perpetrar em minha biblioteca ao mudar de residência. Seu título é Trans-Pacific Express. Trata-se de uma coletânea de relatos de viagem a diferentes países do Oriente, que algumas vezes citei a meus antigos alunos de jornalismo. Seu autor é Alberto Arbasino, renomado escritor e ensaísta italiano falecido aos 90 anos (mas não da covid) no último no último mês de março, quando a pandemia devastava Milão e descortinava este dantesco 2020.
Como sou um leitor de má memória, é curioso não ter
esquecido, em quase quatro décadas, certa observação pontual de Arbasino sobre
o comportamento dos australianos. Ele diz que as pessoas, na Austrália,
sobretudo em ambientes abertos, costumam conversar mantendo entre si uma
distância muito maior do que os europeus. Até dois metros, avalia Arbasino,
mesmo no caso de conhecidos ou amigos que se encontram na rua.
Nunca fui à Austrália. Portanto, nunca tive chance de checar,
por mim mesmo, se esse detalhe tão bem captado por um jornalista arguto corresponde
mesmo a um hábito generalizado. No entanto, pude confirmá-lo pelo relato de uma
querida amiga australiana que vive em São Paulo há quarenta anos, com visitas
ao país de origem em intervalos de três ou quatro anos. Certa vez, após
retornar da Austrália, contou-me que o pessoal por lá reclamara do fato de que
ela estava “pegajosa” demais. Ao conversar com familiares e amigos, se mantinha
próxima demais deles e os tocava de um jeito incomum, nela, antes de ter vindo
morar no Brasil.
Parece-me plausível. Nós, brasileiros, somos mesmo “pegajosos”.
Nossa tendência natural é conversar na praia, no parque, como se estivéssemos espremidos
no elevador. Entre os povos do mundo, talvez estejamos entre aqueles que
encontram maior dificuldade em respeitar o distanciamento
social, para usar essa expressão da moda, hoje tão necessário que
poderíamos chamá-lo de distanciamento
vital. E isso não se deve apenas à negligência, apesar de essa ser outra
especialidade nossa. Antes, pelo impulso primário em tocar o corpo do interlocutor,
como para autenticar as palavras ditas. Os italianos o fazem com seus gestos operísticos;
os budistas, com seu olhar sereno. Nós, com nosso jeito pegajoso, grudento, que
atinge o ápice no carnaval.
No ócio desta quarentena, tento imaginar a explosão de
protestos que teria estremecido o Brasil se algum dos nossos governantes houvesse
tido a ideia de suspender o carnaval de 2020, como ocorrerá em 2021. Vale
lembrar que no verão passado, com base nas notícias internacionais, já se podia
ter como favas contadas que a covid logo nos atingiria em cheio. Pois bem, um
político que tivesse tido peito de tomar essa atitude extrema, suspender o
carnaval, teria poupado a vida de muita gente. Menos a dele próprio. Caso não
fosse linchado, seria um suicídio político. Não queremos mais saber de tiranos.
A ditadura é a lógica do dragão. A democracia é a lógica da boiada. Nós,
brasileiros, ficamos com a segunda opção. Doa em quem doer.
Está doendo em nós mesmos. Agora, no final de dezembro, com a
mão na maçaneta, sabemos muito bem como foi este impensável ano de 2020. Ele quase
parece ficcional quando acordamos de manhã sem saber se ainda tem leite na
geladeira e, caso negativo, se valeria a pena correr o risco de ir até a
padaria. Sim, a padaria da esquina, local sagrado, democrático, último reduto
do perfume do cotidiano, tão nutritivo quanto o próprio pão. Houve um tempo em
que, ao ir até a padaria, não hesitávamos em tocar no ombro e até beijar a
bochecha de pessoas conhecidas, mesmo que fosse um vizinho sem nome do andar de
cima que algum dia nos emprestou um alicate. Será que tem alguma graça ir até a
padaria usando máscara, em atitude esquiva e temerosa?
Para que falar deste ano, se todos sabemos como ele foi, se o
vivemos de cabo a rabo que nem uma boiada no curral? Ocupo-me em imaginar como será
2020 no futuro, visto pelo espelho retrovisor, quando as novas gerações o
estudarem nos textos de história. Na minha infância, no Sul, os coroas se referiam com reverência a 1912
(a tragédia do Titanic) ou a 1941 (a
grande enchente que transformou nossa cidade numa outra Veneza) como cifras
carregadas de um significado marcante não só no mundo externo, mas na alma de
cada um.
Hoje, quando vejo uma foto antiga em que aparece um carro com
aquele trambolho na traseira, sei que ela foi feita durante a Segunda Guerra. O
gasogênio é a marca de uma época. Talvez também seja assim quando nossos
descendentes virem imagens atuais com pessoas usando máscaras dentro da
padaria, ou melhor, dentro da pandemia. Não sabemos, em suma, se o ano prestes
a terminar representará um ciclo momentâneo ou uma mudança de padrão, o começo
de algo que não sabemos bem o que seja.
O ano de 1972, quando ativistas palestinos massacraram onze
atletas olímpicos israelenses, talvez hoje nos parecesse mais sinistro se persistisse
como isolado, tal como o naufrágio do Titanic.
Não foi bem assim. Desde então, o terrorismo se alastrou como a gripe e entrou
na agenda do mundo. Quem recorda a tragédia de setembro daquele ano na vila
olímpica de Munique? Aquilo não passa uma travessura de moleques se comparada
ao que haveria de ocorrer em 2001, quando outra safra de terroristas, gente que
em 1972 ainda tomava mamadeira, foi capaz de destroçar as torres gêmeas em Nova
York. Nem Hitler teria imaginado algo tão espetacular.
Como será 2020, o ano da pandemia, quando pensarmos nele, no
futuro, ao deparar no fundo da gaveta com uma máscara comida pelas traças? Na nossa memória, um ano só ganha forma
definitiva depois que esfria, como um cuscuz. Enquanto ainda estamos na
contagem regressiva para o ano-novo, nossa vontade é de fazer coro com os
italianos nesse vídeo divertido que navega na nuvem: “Vaffanculo, 2020!”
Se as pandemias tiverem vindo para ficar, como aconteceu com
o terrorismo, meio século atrás, estaremos mais treinados para nos defender.
Aliás, já estamos, suponho. Como resultado paralelo das medidas de proteção que
adotamos contra o coronavírus, é provável que, sem saber, tenhamos nos livrado
de outras moléstias que também poderiam ter nos infernizado a vida. Acho que
pode estar em curso, a duras penas, um avanço na saúde pública. Pequeno
exemplo. Com ou sem a covid, vale a pena incorporar o hábito de não usar,
dentro de casa, a mesma roupa e os mesmos sapatos com que chegamos da rua. A
gente se acostuma. Escovar os dentes deve ter parecido uma extravagância aos
olhos de nossos ancestrais mais remotos. Quase posso ouvi-los dar risadas.
Risadas vazias de gente desdentada.
Também podemos rir
bastante, hoje, se imaginarmos que os foliões brasileiros pós-2020 se disponham
a pular um carnaval sem pegação, que para muitos seria o mesmo que tomar
cerveja quente. Basta que as pessoas mantenham entre si, nos bailes e nos
blocos de rua, a área livre que se observa ao redor de cada integrante das escolas de samba em desfiles oficiais.
Ora, direis, ouvir estrelas! E por que não? A pandemia de
2020 estava escrita nas estrelas enquanto pulávamos o último carnaval, com a nossa
velha convicção de que Deus é brasileiro. Mas e se Deus for australiano? Calma.
Não quero dizer com isso que os foliões brasileiros devam pular como cangurus
nos futuros carnavais. Não ponham em minha boca coisas que eu não disse. O que
quero dizer, isso sim, é que não seria má ideia cultivar o distanciamento
social, na folia ou na padaria, como fazem os australianos ao conversar na rua,
tal como observou Arbasino com seu olho clínico de jornalista.
Se a pandemia arrefecer, toda essa desgraça vai para a conta
do ano de 2020, que se tornará uma cifra funesta. Se bobear, os marqueteiros de
algum grande clube europeu vão inventar de banir número 20 da numeração das
camisas do time, como fizeram os americanos com o andar 13 em alguns prédios. Basta
o Barcelona ou o Liverpool lançarem a moda, e ela no dia seguinte chegará ao
Ferrari e ao Liberal de São José do Norte, e dali para o Cocuruto e Bujuru, já
nos areais do interior do município. A imitação é a única pandemia que jamais
terá fim sobre a face da Terra.
A covid azedou 2020, mas não emplaca 2021. É o meu palpite, apenas isso. Prefiro pensar que aprendemos um monte de coisas sobre nós próprios, sobretudo, ao longo deste ano que chega ao fim. Todo aprendizado importante é duro, ácido, escorregadio, ainda mais quando feito às pressas, diante do perigo. Parece que não funciona, mesmo quando já funciona. O que fizemos durante este ano de 2020 foi aprender a enfrentar um inimigo que não é invencível, apenas invisível. Já sabemos que ele nos espreita no brilho da maçaneta da porta. Que vaffanculo!
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