Nesta ainda pandêmica quase primavera de 2021, lanço a versão digital do romance veneziano Viagem ao pavio da vela – Diálogos com Marco Polo. Faz duas décadas desde seu lançamento em formato impresso, na primavera de 2001, o ano fatídico da derrubada das torres gêmeas em Nova York. Entre todos os meus livros, esse é o que mais me satisfez. Não sei se ficou bom. Ficou como tinha que ficar. Nele, cada palavra, para não dizer cada vírgula, foi colocada com convicção.
Os elementos propulsores do projeto de Viagem ao pavio da vela foram dois: um desejo antigo e uma descoberta instigante. O desejo era o de escrever sobre Veneza, cidade por si quase ficcional, que dá a impressão de flutuar entre o estado sólido e o estado líquido. Ela me enfeitiçou desde a primeira vez em que lá cheguei, em 1976, sozinho, mochila nas costas, câmara a tiracolo, coturnos de paraquedista. Em minha obstinada juventude de viajante solitário, lamentei não ter com quem compartilhar tanta beleza. Senti a solidão como um desperdício. Isso só me aconteceu em Veneza.
O segundo gatilho do livro, mais concreto, foi a surpresa de constatar que o nome do viajante veneziano Marco Polo não é sequer citado por Dante Alighieri na Divina Comédia. Em sua obra máxima, vale lembrar, o poeta toscano arrola um sem-número de personalidades de diferentes épocas e as distribui, segundo seus méritos, nas três instâncias da vida eterna previstas na doutrina cristã – Inferno, Purgatório e Paraíso. Marco Polo, o célebre Marco Polo, não aparecia em nenhuma delas.
Ah, essa não! Onde Dante andaria com a cabeça, ao compor sua obra-prima, para deixar de fora dela o homem que empreendera uma peregrinação tão ousada e monumental, no mundo dos vivos, como aquela que ele próprio, como poeta, havia se aventurado a fazer no mundo dos mortos? Fiquei cismado com essa omissão. Data venia, eu não ia deixar barato. Decidi que me cabia a missão de introduzir Marco Polo na Divina Comédia, mesmo com um pequeno atraso de setecentos anos.
A partir dessa ideia, o projeto começou a se delinear. Eu já podia sentir seu campo gravitacional. Minhas ideias convergiam em impulso rápido, como fazem os peixes quando a gente joga um biscoito no lago. A partir daí, a julgar por minhas experiências anteriores, o enredo da história haveria de surgir naturalmente. Não deu outra. Porém, eu ainda não tinha o mais importante: o foco narrativo. Em um romance, esse é o calcanhar de aquiles.
A linguagem a ser utilizada no livro, pensei, deveria me deixar confortável para transitar entre a fábula e o ensaio filosófico. Só que eu não tinha ideia do que isso pudesse ser, na prática. Além disso, sentia que uma cidade tão especial, como Veneza, merecia palavras especiais. Nem mesmo o vocabulário que eu tinha parecia suficiente para dar conta do recado.
Um fato trivial me ajudou a encontrar o caminho. Na época, final da década de 1990, minha filha frequentava uma pré-escola próxima ao apartamento onde morávamos, no bairro de Pinheiros. Uma tarde, Laura voltou amuada para casa. Perguntei a ela: > Tudo bem na escolinha? < Mais ou menos... > Mais ou menos por quê? < Ando meio desengostada.
Fiquei curioso. Sondei-a para saber se desengostada era um desconforto dela própria em relação aos colegas da pré-escola ou vice-versa, se estaria levando um gelo dos demais. Descobri que se tratava das duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, um melindre de mão dupla. Perguntei-me se haveria no dicionário alguma palavra que expressasse exatamente a mesma coisa. Não me ocorreu nenhuma, naquele momento. Portanto, se desengostada não existia, poderia passar a existir para preencher uma lacuna. Com a vantagem de ter um som compatível com a língua que falamos no Brasil.
Resolvi fazer um teste. Eu era repórter especial da então recém-lançada revista Época. Naquele momento, outubro de 1998, dedicava-me a uma matéria sobre o trabalho nos canaviais do interior paulista. Dei um jeito de inserir no texto a palavra desengostada, não sem antes preparar o contexto, para que ela se apresentasse ao leitor de forma natural e autoexplicativa. Achei que não ia dar certo, mas tive uma surpresa. A palavra espúria passou pelo crivo de uma meia dúzia de profissionais da redação, entre revisores, preparadores de texto e o próprio editor. Escapou até do olhar clínico e minucioso do nosso diretor, José Roberto Nassar, e foi publicada na revista.
Entre triunfante e envergonhado, amoitei-me. O sucesso dessa molecagem, embora eu fosse um quarentão, nada ficou devendo ao prazer que sentíamos na infância ao disparar pela calçada após apertar a campainha das casas. Mas a experiência foi além de um simples divertimento. Ela confirmava aquilo que me interessava confirmar: para uma palavra funcionar bem, não precisa estar no dicionário, mas sim em sintonia com o espírito da língua.
Em Viagem ao pavio da vela, senti-me tentado a empregar uma série de palavras inventadas que me ocorriam de repente, sem compromisso com nada, como ocorrem as coisas na cabeça das crianças. E também outros termos de antanho que passaram a saltar fora do baú da memória, como o jargão da época em que jogávamos bolinhas de gude no chão de terra da Praça Tamandaré. Também garimpei no português lusitano alguns termos sugestivos, engraçados, muitas vezes arcaicos, sem me preocupar se estivessem em desuso até mesmo em Portugal.
Eu queria produzir um livro que tivesse timbres internos específicos, a começar pela estranheza de algumas palavras, mas uma estranheza sugestiva, muito bem calculada, que no ato da leitura pudesse ser associada a certa situação. Meu desejo era propiciar ao leitor algo semelhante à sensação de osmose que tive ao ouvir de minha filha a palavra desengostada, depois usada na revista, onde a osmose prosseguiu, suponho.
No livro que eu tinha em mente escrever, o leitor não deveria estar, o tempo todo, na dependência do exato significado de cada uma das palavras escritas. A melodia também tem a sua graça. Na adolescência, às voltas com as primeiras canções dos Beatles, eu me comprazia em ouvi-las sem entender bulhufas. Assimilava os versos não como palavras, mas como extensões da música. Em Viagem ao pavio da vela, escrevi muitas frases como se fossem sequências de acordes. Um jeito de bancar o músico que nunca fui, mas para o bem da música, sem dúvida alguma.
Além desse jogo de sonoridades, outros fatores colaboraram para tornar esse projeto uma empreitada envolvente e, por vezes, divertida. Tive que ler e pesquisar muito sobre Veneza, seus caminhos, seus atalhos, seus recantos escondidos, seus grandes e pequenos lábios. Com a meticulosidade de um ginecologista, concentrei minha atenção sobre essa cidade lúbrica e lasciva. “Úmida vulva da Europa”, disse dela o renomado poeta. E se aqui tomo a liberdade de evocar Apollinaire, não posso esquecer o nosso insigne Carlos Zéfiro, autor dos breves e abrasadores “catecismos” eróticos que nos eram discretamente franqueados nas barbearias. Se ele houvesse vivido em Veneza, imagino, teria criado a Divina Comédia da pornografia universal.
Pesquisei sobre Veneza de modo obsessivo. A certa altura, ao andar pelas ruas de São Paulo, passei a deparar, aqui e acolá, com os principais elementos evocativos da cidade. O leão alado, as gôndolas, a ponte do Rialto, vistas da Piazza San Marco, do Grande Canal, cristais de Murano, nomes como Ca'd'Oro e outros desse tipo. Isso acontecia de maneira repetida e repentina. Nas situações mais improváveis, pronto, lá estava Veneza, de novo, a me chamar de volta para ela.
Era como a sensação do déjà-vu. Com uma vantagem: mesmo sendo imprevista, era também permanente. Tinha, por assim dizer, uma base real. Veneza surgia a todo momento, incrustada em São Paulo, em uma fachada comercial, um anúncio, um logotipo, uma embalagem, uma etiqueta, enfim, em algo concreto que estava diante de mim e continuaria na lembrança como uma nostalgia, sem a fugacidade do déjà-vu.
O fenômeno devia ter algum nome na psicologia, mas esse lado da coisa não me importava muito. O máximo que eu conseguia imaginar, por beber muito em Jung, naquela época, era algum mecanismo de sincronicidade. Mas isso também era secundário. A verdade é que aqueles pequenos sustos me divertiam, me estimulavam, como se indicassem um caminho. E esse caminho apontava para Veneza.
Planejei com bastante antecedência uma viagem familiar à Itália. Consegui negociar por fax, sim, o neolítico fax, preços aceitáveis com o dono da minha já conhecida Locanda Remedio, em Veneza, para lá passarmos o então chamado “réveillon do milênio”. Empenhei nisso, para o meu bolso, uma grana preta. Se tivesse juízo, deveria ter destinado esse dinheiro à aquisição do imóvel residencial que eu ainda não tinha, ao contrário dos meus amigos, e já estava mais do que na hora de cuidar disso. Mas o chamado de Veneza soou mais alto que o bom senso. Na outra virada de milênio, seria tarde demais.
Olhando em retrospecto, nem acho que fiz besteira. Foi grande minha satisfação pessoal em poder levar minha filha, aos seis anos de idade, a uma cidade que é como uma versão real da fantasia humana. Levando-a a Veneza, quem sabe, me penitenciei pelo crime hediondo de jamais me dispor a tirar do bolso nem um mísero dólar furado para enviá-la à Disneylândia, tal como costuma fazer a classe média à qual pertenço, sem emoção.
Eu sabia muito bem que Laura, com aquela pouca idade, não poderia compreender o que significava estar em Veneza, e não em outro lugar, em plena virada do milênio, para celebrar a passagem do tempo em uma cidade que está acima do tempo. Acreditava, porém, que a simples visão das cascatas luminosas sobre as águas do Canal Grande haveria de render um desses flashes que permanecem na memória para toda a vida.
As crianças de 1910 viram no céu o cometa Halley. Em Itabira, um menino que por acaso se chamava Carlos Drummond de Andrade mais tarde recordaria aquilo como sendo “uma escultura de luz, esguia e estelar, que fosforeja sobre a infância inteira”. Talvez algo desse tipo seja mais relevante, a longo prazo, do que a lembrança das orelhas do Mickey. Com todo o respeito.
Mas minto, minto em prosa e verso, e sem a maestria de Drummond, se eu disser que fui a Veneza por causa de minha filha. Fui então por minha causa? Bem, também isso não seria exato. Fui a Veneza por causa de Veneza. E posso dizer isso melhor ainda: fui pela causa de Veneza. Sim, uma causa, um empreendimento devocional, o ato voluntário de alguém que dedica seus esforços a algo acima de si próprio, que não tem nome, nem deve tê-lo.
Traduzir Veneza em palavras, inventando palavras intraduzíveis, já que não sou capaz de compor uma sinfonia, tornou-se para mim uma espécie de missão. Eu me sentiria em falta com o próprio ofício da escrita se passasse a vida a escrever sobre cidades (e foi o que fiz, no fim das contas) sem dedicar um livro à mais fantástica de todas elas.
No entanto, como pesquisa de campo, Veneza foi um furo n’água. Encontrei muito pouco sobre Marco Polo no acervo da biblioteca local. Obviedades. O material que eu já havia captado antes, em São Paulo, dava de dez no que consegui por lá. Os funcionários nem sabiam me dizer ao certo onde ficava a casa de Marco Polo.
O pessoal do serviço de turismo tampouco parecia muito sintonizado com o tema: < Ah, sim, Marco Polo... > Ele mesmo. < Vejamos... Marco Polo... Marco Polo... > Algum problema com ele? < Não, absolutamente. > Ótimo. < Preste atenção, o senhor vai por aqui, dobra ali, atravessa a ponte, dobra à esquerda, aí tem outra ponte... > Calma, essa outra ponte... < Essa, o senhor não atravessa. > Ok, não atravesso. < Vira à esquerda e segue em frente. > Sigo em frente. < Aí vai ver uma tabacaria. > Uma tabacaria. < Sim, uma tabacaria bem em frente à ponte. Outra ponte. > Entendi. < Ali o senhor pergunta. > Na ponte ou na tabacaria? < Na tabacaria. > Mas pergunto o que nessa tabacaria? < Ora, o senhor pergunta onde fica a casa de Marco Polo. Não é isso o que o senhor quer saber?
Enveredei por uma sequência de pontes, pórticos e canais, tentando achar o caminho certo entre as complicadas reentrâncias de Veneza. A “vulva úmida da Europa” agora me dava uma canseira. Acabei por chegar aonde queria. Porém ali, onde esperava encontrar um museu, um memorial, coisa que o valha, deparei com um prédio de fachada em estado lastimável, com sacos de lixo empilhados à frente. Com a breca! Então aquela era a casa que teria sido de Marco Polo.
Minha decepção haveria de ser compensada, mais tarde, com uma bela surpresa. Ela ocorreu justamente no interior do estabelecimento em que estávamos instalados. A Locanda Remedio era um hotel três estrelas bastante charmoso, mas não sofisticado, nas imediações do palácio ducal. Ocupava um prédio histórico recheado de tapetes e móveis de época que despertavam interesse, mesmo estando um pouco desgastados pelo tempo. Além da ótima localização, poucos minutos a pé da Piazza San Marco, tinha preços mais ou menos acessíveis, talvez por conta de sua decadência, mesmo com classe, como é comum na Itália.
Eu curtia isso. Já havia me hospedado ali antes. Dessa vez, porém, o que me chamou a atenção foi a figura compenetrada do porteiro noturno. Nas horas tranquilas, depois da meia-noite, o rapaz não tirava os olhos de uma brochura com texto corrido que nada tinha a ver, aparentemente, com o serviço na portaria do hotel.
Puxei assunto com ele, meio como quem não quer nada, tal como aprendi em tantos anos de trabalho no jornalismo. Fiquei sabendo que o rapaz era ator. Trabalhava à noite, no hotel, porque naquele período tinha sossego para estudar os textos de seus trabalhos no palco. Conversa vai, conversa vem, descobri que, anos antes, em uma série televisiva, ele já havia interpretado... quem mesmo? Marco Polo!
Bah! Aquilo me caía do céu, de graça! Sim, o porteiro noturno da Locanda Remedio tinha muito a me dizer sobre seu personagem, que seria também o protagonista de meu livro. E mais que isso: esse ator era um especialista em Veneza. Era capaz de comentar qualquer um dos muitos filmes rodados na cidade. Conhecia o toque dos sinos de cada uma das igrejas. Em suma, sem precisar nem sair do hotel, eu havia encontrado o meu Marco Polo. Em carne e osso.
Entre nós logo se estabeleceu uma camaradagem. Ele queria saber do Brasil. E eu, claro, de Veneza. Conversamos bastante, em diversas noites, sempre ali, na portaria do hotel, durante as primeiras horas da madrugada. Essa circunstância inesperada forneceu-me a base narrativa para o romance que eu pretendia escrever.
Não por acaso, o título
provisório do livro chegou a ser Diálogos
com Marco Polo, que virou
subtítulo, após eu consultar a opinião de amigos. O título
definitivo, Viagem ao pavio da
vela, pareceu-me mais instigante e, sobretudo, mais adequado. Contém uma
alusão direta ao fato de que as noites, sejam elas mil e uma ou meia dúzia, são
sempre propícias à conversação.
E tem outra. Uma vela é algo que me encanta. Conquanto seja hoje um objeto banal, barato, relegado às prateleiras inferiores nos supermercados, vejo-o como um símbolo da inteligência humana. Pergunto-me quem teria tido esse lampejo, na mais profunda escuridão dos tempos, que resultou num artefato para manter a chama em suspensão, com segurança e portabilidade, por um período de tempo muito maior que o fogo levaria para queimar um barbante, se não fosse contido pelo próprio suporte: apenas um cilindro de cera.
A cera é o material perfeito, nesse caso. Firme como o mármore, sem ser duro, mas não tão mole quanto a manteiga, que amolece ao sol. A cera deixa-se consumir pelo fogo, como convém, mas lhe impõe seu ritmo. Em geral, ocorre o contrário. O fogo devora. A cera consegue refreá-lo, derretendo de uma maneira calma, progressiva, a ponto de nos permitir marcar o tempo, como a areia da ampulheta. A vela é tão genial que nos parece óbvia.
Em meados do século passado, em minha cidade, no Sul, frequentes e prolongados cortes de energia impunham às famílias de todas as classes sociais uma intensa convivência com velas acesas. De súbito, todos nós, papa-areias, nos transformávamos em habitantes das cavernas. À nossa volta, apenas trevas, monstros, vampiros. Até que alguém riscava um fósforo.
À luz da vela, eu podia perceber muito bem, como criança, que os adultos falavam e agiam de outro modo, um modo mais macio e reflexivo. Diziam coisas que talvez não se permitissem dizer, caso as lâmpadas estivessem acesas. Eu ouvia essas coisas até certo ponto. Depois me deixava hipnotizar pela chama da vela, sua base azul, o tênue e instável halo marrom, a ponta amarela e imóvel que de repente tremia, como o cão se coça. Aquilo, para mim, era um enigma.
Ainda hoje acendo velas. É mais emocionante, convenhamos, riscar um fósforo do que digitar uma senha, por exemplo. Mas não é por isso que acendo velas, e ainda bem, devo dizer, até porque em nenhum hospício me permitiriam continuar a fazê-lo. Também não é por uma razão mística. Sou agnóstico, um sujeito que aprecia a incerteza como fonte de inspiração. Não aposto nem descarto que possa haver uma forma de consciência muito superior à nossa, sem neurônios, mas apta a estabelecer sinapses, e capaz de se manifestar em objetos que para nós têm grande carga simbólica, como é o caso de uma vela acesa. Ela resume o segredo da obra-prima: um pensamento complexo expresso de maneira simples. Vinte anos atrás, achei (ainda acho) que Viagem ao pavio da vela era um bom título para um livro ambientado em Veneza.
O romance foi publicado no começo de dezembro de 2001. Um conhecido meu, psiquiatra argentino radicado no Rio de Janeiro, me disse que a parte introdutória de Viagem ao pavio da vela, no entender dele, descrevia uma autêntica viagem com LSD. O comentário me causou grande satisfação. Era esse, de fato, o efeito literário que eu havia pretendido obter como ponto de partida da narrativa.
Para escrever o prelúdio, embaralhei um conjunto de sensações e imagens subjetivas para depois, com paciência de ourives, reorganizá-lo de outra forma. O aparente delírio da prosa deveria sugerir um excesso de lucidez. Precisei trabalhar duro para conseguir isso. Eu não tinha na época, como não tenho até hoje (por precaução, não por falta de interesse), uma experiência real com o LSD. Apenas suspeito, às vezes, que minha práxis literária possa ter certo viés lisérgico. De onde saiu isso, fico devendo.
No ano seguinte, 2002, tive a satisfação de assistir a um ator interpretar esse pequeno texto de abertura em um programa televisivo, ao qual me convidaram para falar sobre o livro. Ele o fez de forma magistral. Obteve ali tal intensidade que, ao vê-lo recitar o trabalhoso prelúdio, achei pueril pensar em mim mesmo como sendo o autor daquilo. Senti apenas que nós dois, o ator e eu, em nossos tão diferentes ofícios, éramos os porta-vozes de uma mesma coisa que precisava ser dita.
O livro foi um fracasso comercial. Mas algumas resenhas esparsas exaltaram suas qualidades. Um crítico chegou a qualificar Viagem ao pavio da vela como uma “pequena obra-prima”. Bem, devagar com o andor. Obra-prima é Guerra e paz – y algunas cositas más. Eu não ousaria supor que escrevo nesse nível nem mesmo se estivesse embriagado com o melhor vinho do mundo, ou chapado, vá lá, com o ácido mais esfuziante que inventarem por aí. Disso, tenho certeza. O elogio não me convenceu, mas me consolou. Confete é serotonina. Se não serve à verdade, há de servir à vaidade.
Se nunca escrevi uma obra-prima, algumas vezes tive a sensação de tê-lo feito. Refiro-me ao processo, não ao produto. Em qualquer atividade, talvez se possa experimentar algo parecido a colocar o ponto final em Guerra e Paz ou dar a última pincelada na Mona Lisa. A sensação da obra-prima se oferece a nós quando sentimos ter chegado ao limite da nossa capacidade, sem recuar um milímetro, correndo os riscos necessários, e a solidão sempre à nossa espreita. Não é fácil renunciar ao caminho mais fácil.
Levar adiante esse projeto foi uma experiência ímpar. O livro, em si, não é uma obra-prima. Mas resultou de uma obra-prima, ou seja, seu próprio processo de criação, durante o qual um escritor sem fins lucrativos logrou atingir o seu limite. Entre os livros que me atrevi a publicar, descontando os que lamento ter publicado, Viagem ao pavio da vela é aquele que eu desejaria que fosse apreciado por futuros leitores, mesmo a conta-gotas, como sempre tem sido.
Essa de “futuros leitores”, claro, pode ser uma furada. Ninguém sabe se ainda haverá leitores de livros daqui a três ou quatro décadas. Em 2061, digamos, quando o cometa Halley voltar a se tornar visível para os habitantes da Terra, a literatura já poderá ter se tornado invisível, como a filatelia. E Veneza, uma cidade submersa.
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