É comum termos fotos de grupo em que
aparecemos entre pessoas conhecidas ou associáveis a uma circunstância, mesmo
que não lembremos seus nomes. Menos comum, creio, são imagens em que nos
surpreendemos no meio de gente anônima, reunida em local público, sem que
ninguém soubesse que estava sendo fotografado a distância.
Vale lembrar aos jovens que, antes de
existirem telefones celulares, não se fotografava a torto e a direito por aí, que
nem hoje. Mesmo quem tivesse uma câmara só saía com ela em situações
específicas, como se faz com o guarda-chuva. A menos, claro, a fotografia fosse
um hobby ou um ofício.
Este último caso se aplica ao autor
da foto interna do elepê Geraes.
Trata-se do fotógrafo e artista plástico Carlos da Silva Assunção Filho
(1950-2019), conhecido como Cafi. Pernambucano radicado no Rio, ele assinou o
projeto gráfico de mais de três centenas de discos da MPB. Foi um dos grandes,
em sua especialidade. Em certos casos, as embalagens cartonadas que protegiam
os vinis chegavam a ser sofisticadas a ponto de funcionar como complemento do
conceito musical utilizado pelo compositor. Degustar os sons e as imagens de um
novo disco, sem desgrudar os olhos da capa, fazia parte do ritual de ouvir música.
Geraes foi um
caso exemplar. Curiosamente, porém, Cafi optou por usar na parte interna desse
álbum uma foto feita por ele mesmo dois anos antes, em 1974, durante o concerto
em que Milton interpretava as músicas contidas no disco anterior, o magistral Milagre dos peixes. Pouca gente,
suponho, deve ter percebido esse descompasso temporal entre a imagem e o
conteúdo do disco. Descobri isso porque a situação retratada, até certo ponto,
me dizia respeito. Não recordo como nem quando me reconheci (ou alguém me
reconheceu) nessa foto.
Vejo agora aquele cara de camiseta
preta, em pose resoluta, para não dizer arrogante, e até preferia que não fosse
eu mesmo. Tenho as palmas das mãos parcialmente enfiadas na cintura da calça,
como um caubói pronto para um duelo. Posso recordar que essa foi uma das minhas
manias passageiras da juventude, como a de não usar cinto, que então me parecia
um hábito de homens já aprisionados no mercado de trabalho, que andavam com
crachás pendurados no pescoço e carregavam suas coisas em uma pasta
profissional.
Nós, os jovens, preferíamos usar
bolsas penduradas no ombro. Era uma novidade atrevida, tida por alguns como
afeminada, assim como acontecera na década anterior como as cabeleiras
masculinas. A foto interna de Geraes,
aliás, é uma avalanche de cabelos ao sol. Fomos fotografados por Cafi durante a
tarde radiante e ventosa de um domingo de maio.
O show
de Milton, acompanhado pelo grupo Som Imaginário, de Wagner Tiso, provavelmente
ainda não havia começado. Deduzo-o isso pelos gestos e fisionomias das pessoas.
Nossos olhares não se concentram sobre um único ponto à frente, que seria o
palco, naturalmente, se os músicos já estivessem tocando.
Uma moça tosse, um rapaz acende o
cigarro, muitos ajeitam os cabelos, remexem a barba, bocejam, sustentam o
queixo à espera de algo, alguém suspende um bebê no ar, namorados se
entrelaçam, aquele lá coça dentro da orelha com o dedo indicador, não poucos de
nós têm os braços cruzados ou se protegem do sol com a palma da mão ou um
jornal dobrado. Esperamos por Milton.
Mas esperamos também – percebo agora
– para saber qual haverá de ser o nosso lugar no mundo. Ali está, em ponto de
bala, a geração nascida na década de 1950. Na Europa, seríamos considerados baby boomers, em referência à explosão
de natalidade ocorrida após a Segunda Guerra Mundial. Mas isso não se aplica ao
Brasil, pois nossos pais a vivenciaram apenas de modo indireto. Ninguém deixou
de procriar por ter a casa bombardeada.
Se os nossos anos 1950 foram “dourados”,
como se costuma dizer, já oxidaram na década seguinte por conta do golpe
militar. Enquanto o Hemisfério Norte entrava em um ciclo virtuoso, por aqui
mergulhávamos no obscurantismo. Minha geração fez faculdade na pior fase da
ditadura. Olho para essa foto e recordo muito bem como era aquilo. O cara ao
lado sempre podia ser um policial – um policial de cabelo comprido e bolsa a
tiracolo, como qualquer um de nós.
No álbum de Milton que tenho agora
aberto sobre a mesa, vejo os rostos mais ou menos quinhentos jovens de idade
semelhante à minha, na época, em uma área impressa equivalente à de um monitor
de 27 polegadas. Estamos agrupados no barranco de um bosque de eucaliptos da Cidade
Universitária. Dá para ver alguns troncos e ramagens.
Na foto do disco, o Brasil é branco. Incrível:
não vejo um único negro na plateia de um show
gratuito, a céu aberto, o que invalidaria qualquer explicação baseada na
condição social. Segregação “ao natural”, portanto. E mais incrível ainda: o show era de um artista negro. Se Milton guardasse
alguma mágoa racial, bem que poderia, como Miles Davis, se apresentar de costas
para o público. Não fez isso. De frente para nós, cantou o que queríamos e
precisávamos ouvir: “Eu apenas sou um a mais / a falar dessa dor / A nossa dor”.
A nossa dor era viver os anos preciosos
da juventude em um país governado a toques de corneta, na contramão do mundo
civilizado. A redemocratização foi uma vitória concreta, do ponto de vista
político, porém vazia, do ponto de vista civilizatório. Passadas mais de três
décadas, após termos tido governos civis e democráticos de diversos tipos, continuamos
a viver em um país onde os abismos sociais nos condenam à insanidade. < E
essa, agora?; perguntamos a nós mesmos, pasmos, ao ver emergir o monstro no
Lago Paranoá.
Nossa geração ficou devendo, como as
anteriores. Tocamos nosso barco, vendemos nosso peixe, entramos e saímos do
mundo do trabalho, mas durante todo o tempo em que estivemos em ação não fomos
capazes de transformar o Brasil no que ele poderia ser. Vai continuar a poder
ser. Parece que nos habituamos a ser uma hipótese.
Digo isso para tentar esboçar o possível
estado de espírito dos sobreviventes desses quinhentos sonhadores que aparecem
na foto do disco, entre os quais me incluo. Não seria justo, apenas com base em
nossas dores geraes, agora ampliadas
pela artrite, dizer que fracassamos. Se o Brasil não ficou nem um pouco parecido
com o país que desejávamos ter, após nossos tantos anos de labuta, ainda assim
formos uma geração privilegiada, em
sentido mais amplo. Em nossos anos de formação e atuação, fomos generosamente
contemplados pelos ventos que sopraram pelo mundo.
Saímos da casca a tempo de usufruir
os últimos lampejos da contracultura, crescemos decifrando os Beatles e captamos
a mensagem essencial de Woodstock. Absorver esses valores iconoclastas, porém
pacifistas, fosse para adotá-los ou confrontá-los, ampliou nosso repertório de
ideias. Largamos a mamadeira para mamar no rock,
que foi, sob o aspecto
comportamental, ou mesmo existencial,
uma nova versão do iluminismo.
Na geração anterior à nossa, mais
militante, mais programática, mais disposta a acreditar que questões sociais e
questões humanas são farinha do mesmo saco, poucos se mostraram dispostos a
admitir esse equívoco. No entanto, a contracultura não disse nada tão novo.
Apenas atualizou e difundiu – espalhafatosamente – o que os sábios de diversas
épocas já haviam dito antes: para superar um problema criado por nós (o Brasil,
por exemplo) é preciso mudar o jeito de pensar que tínhamos na época em que o
criamos.
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