quinta-feira, 30 de maio de 2024

TEOREMA TROPICAL

 


As traiçoeiras calçadas em estampa pedrês de minha cidade natal me levam para onde elas bem entendem. Outro dia, dei por mim diante do prédio austero, porém saudoso, do Colégio São Francisco. Ao contemplar aquela fachada cinzenta e retilínea de cimento escovado, recordei como se fosse um mantra: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.

Essa foi uma das muitas coisas que aprendi lá dentro do colégio, onde estudei de 1965 a 1968. É bem verdade que, ao longo da vida, nunca tive chance de aplicar na prática o célebre Teorema de Pitágoras. Invejo os amigos que projetaram suas casas. Alguns até chegaram a botar a mão na massa. Bela experiência, creio. A esses afortunados foi dado depois usufruir do aconchego de seus próprios catetos, tapetes e hipotenusas.

À tribo dos contemplativos, à qual pertenço, resta o consolo de saber que o valor de um ensinamento, mesmo em geometria, pode transcender sua aplicação prática. Eu não estaria escrevendo este texto agora, não fosse o teorema de Pitágoras, que um irmão marista demonstrou no quadro-negro do São Francisco. 

Quando me encontrava na calçada do colégio, reparei que a porta principal estava semiaberta. Resolvi entrar. A atendente da portaria, ao me ver, abriu um sorriso. Minhas rugas faciais, ao transbordarem do cachecol, logo deixaram claro para ela que não estava diante de um espectro, e sim de um provável ex-aluno.

Pedi para olhar o pátio. Ela consentiu, desde que fosse rápido, pois era horário de aula. Por uma fresta da porta, durante menos de um minuto, pude contemplar o descampado interno que deve ter uma área bem maior que a de um campo de futebol.

Meus olhos se detiveram no centro do pátio. Ali, certa vez, entrei de gaiato em um episódio que me custou caro. Era a época das festas juninas. Durante o horário do recreio, em que centenas de adolescentes do sexo masculino gastavam testosterona em brincadeiras imbecis, surgiram no pátrio três gurias com o uniforme da escola das freiras, situado lá do outro lado da Praça Tamandaré. Traziam bandejas repletas das chamadas “maçãs do amor”, vermelhas e suculentas como aquilo que um marmanjo pode sonhar de mais pecaminoso.

Aconteceu o previsível: um tumulto. As gurias se apavoraram, indefesas em meio a uma manada de lorpas que se compraziam em intimidá-las com macaquices e provocações. Não creio que algum de nós fosse se atrever a encostar o dedo numa delas, mas a grosseria correu solta. Mesmo achando que aquilo passava das medidas, fiquei por ali, na linha de frente, como testemunha de um fato inédito. Naquela época, não se viam mulheres no interior do colégio marista, que funcionava como uma caserna.

De repente, duas figuras ágeis, vestidas de negro, irromperam no meio da turba. Os maristas se apressavam em proteger as gurias das maçãs carameladas. Pegaram logo pelos braços – mas sem critério algum, só na gataria – os que estavam mais próximos delas. Fui um dos contemplados. Eles nos arrastaram pelo pátio, ao longo de uma linha imaginária que seria a hipotenusa de dois triângulos justapostos, em direção à secretaria do colégio. Pronto. Lá estava eu, junto com outros quatro ou cinco condenados.

O pior delito é estar na hora errada, no lugar errado. Não adiantou eu argumentar que apenas assistia à cena. Como os demais alunos, fui mandado para casa com a seguinte observação na caderneta escolar: Suspenso por três dias para aprender a conviver com o elemento feminino. Que tal, essa? Elemento feminino. Aludir à mulher eludindo a palavra. Nunca mais vi uma vigarice verbal tão canhestra, embora vivendo num país onde o eufemismo é uma crendice nacional. Mesmo então, sendo eu um pivete machista, achei a expressão ridícula. Uma feminista hoje a refutaria não com a maçã do amor, mas com botinadas na porta do colégio.

Não sei se a suspensão foi benéfica para os demais sentenciados. Para mim, foi um furo n’água. Minha família, de forte predominância masculina, era o lugar menos indicado para se aprender a lidar com o dito elemento feminino. E se isso fosse mesmo importante, caberia aos maristas propiciar tal ensinamento aos seus alunos. O colégio devia ter sido misto desde sempre, como hoje é.

Muita coisa começou a mudar dentro do São Francisco na segunda metade da década de 1960, como resultado da modernização do catolicismo proposta no Concílio Vaticano II. Os padres abandonaram o latim, a batina e, sobretudo, a postura altaneira dos clérigos. Quanto aos irmãos maristas que eram nossos professores, de repente surgiram para dar aulas com calças e camisas coloridas. Estávamos habituados a vê-los de preto, crucifixo sobre o peito. Nem eles pareciam muito à vontade em roupas que não mais representavam uma imposição externa, e sim um gosto pessoal, isso era meio que nem ficar nu. 

Nosso jovem diretor, um homem bem-conceituado e também boa-pinta, deixou imprevistamente a congregação para se casar com uma professora, segundo as vozes correntes. Seguiu-se uma debandada de irmãos maristas que também caíram nos braços do elemento feminino. Portanto, os mestres também gostavam do balacobaco,  e não apenas os pupilos, que éramos nós, punheteiros reticentes e atormentados.

A verdadeira insanidade estava no celibato. Sabia-se que um dos irmãos maristas assediava alunos. Um colega nosso teve de espantá-lo com a ponta do guarda-chuva. E depois nós é que precisávamos desfiar nossos pecadilhos de neófitos a padres que comodamente se ocultavam atrás das treliças dos confessionários.

Para mim, esse jogo de luz e sombra que grassa na face da Terra começou a ser demonstrado por a + b, como um teorema, a partir dessas coisas graúdas e miúdas que aconteciam nos bastidores do colégio marista e repercutiam à boca pequena nos lares da paróquia de Nossa Senhora de Fátima, a sudoeste da Praça Tamandaré. As pessoas sabiam, mas ninguém falava delas abertamente na feira da Paranaguá, só com o rosto oculto sob a espuma branca do Salão Itamarati.

Aos poucos, fui me dando conta de que as coisas sobre as quais não se falava eram as mais importantes. Em uma manhã daquela época, estive metido em uma lenta fila no interior do prédio esbelto do nosso correio central, defronte ao canto nordeste da Praça Tamandaré. Enquanto esperava a vez para selar minha carta no guichê, pus os olhos sobre um cartaz de propaganda do regime militar. Havia nele duas fotos em contraponto. A primeira, suposto retrato do Brasil anterior ao golpe militar, era uma cena lúgubre em preto e branco. A outra, que buscava enaltecer os benefícios da chamada “revolução”, era colorida, arejada, alegre, com gente sorridente que nem nos anúncios de refrigerantes.

Naquela época eu era incauto para fugir de casa, com hepatite, para ir jogar futebol, mas não debiloide a ponto de engolir a iniquidade presente naquele cartaz. Se o regime militar era assim tão bom, por que precisava lançar mão de um recurso tão primário, dois pesos e duas medidas, para simular que o que havia antes dele era um cenário imerso em trevas?

Aí tem coisa, pensei. Essa suspeita foi o gatilho para a aquisição de uma consciência política que só iria se moldar anos mais tarde, em São Paulo, onde cultivei relações entre opositores da ditadura. Tornei-me um deles. Era impossível não odiar um regime que censurava, reprimia, torturava e matava, e ainda por cima difundia a ideia de que atrocidades desse tipo eram típicas dos países comunistas. Era uma verdade pela metade, mais hipócrita que a mentira completa.

Interessei-me pelos catecismos da esquerda, sem ter ainda a condição de filtrar um tró-ló-ló articulado como se fosse um teorema. Conheci militantes tão convictos e austeros quanto os irmãos maristas, só faltava a batina. Para eles, o capitalismo era coisa do capeta. E o socialismo, a maçã do amor. De novo, a mesma jogada de denegrir o inimigo o quanto possível.

Talvez eu deva agradecer ao regime militar por aquele cartaz que mostrava de forma tão didática o que é a hipocrisia. Porém hipócrita seria eu próprio, agora, se afirmasse que ela predomina apenas nos regimes conservadores. Eis aí um dos poucos atributos humanos que se distribuem de forma homogênea, digamos democrática, entre todas as tendências ideológicas.

Aceita-se a hipocrisia como inerente à política. Bem, não contem comigo. Mesmo quando fugi de casa com hepatite, ou quando cheirei um litro de éter com mais dois amigos, mesmo aquela mentalidade quase suicida não me impediu de simpatizar com os jovens americanos que se recusavam a atravessar o planeta para matar vietnamitas. São atitudes compatíveis, adolescentes, alguém diria. Que sejam. Talvez seja até saudável trazer um pouco da adolescência para vitalizar a velhice.

Hoje, espanta-me que pessoas esclarecidas sejam capazes de se indignar com a postura de Israel em relação aos palestinos, mas não com a da Rússia em relação aos ucranianos. Dentro do Brasil, a coisa se repete. A hipocrisia alimenta o confronto de extremos que se instalou entre nós e até se acirra em meio a pestes e catástrofes. É um círculo vicioso. A própria polarização política estimula os contendores a lançar mão das mesmas armas do adversário, porém de forma dissimulada, de modo a promover um contraste de aparências. Como no cartaz do correio.

Com quase 40 anos de democracia, temos hoje no Brasil uma situação mais infernal do que a cegueira coletiva imaginada por Saramago, que ao menos seria um denominador comum. Trata-se, isto sim, de um daltonismo seletivo que nos faz enxergar, como no cartaz do correio, apenas as cores da nossa tribo. Somos os donos da maçã do amor. A tribo inimiga não passa de um borrão em preto e branco. Versão tropical do Teorema de Pitágoras: o quadrado da hipocrisia é igual à soma dos quadrados dos capetas. 


quinta-feira, 28 de abril de 2022

MEIO SÉCULO EM SÃO PAULO

                      

No fim do último verão, completei cinquenta anos em São Paulo. Meio século. Quando me dei conta disso, caíram-me os butiás do bolso.

Mudei-me para cá no começo de março de 1972. Antes já tinha vindo a passeio, talvez meia dúzia de vezes, em visita a um irmão mais velho. Entre a infância e a adolescência, desenvolvi um fascínio pelas luzes e pelo alvoroço das cidades grandes. Cheguei a lamentar não ter nascido numa delas. 

Hoje, claro, isso me parece uma tolice. Até porque, se houvesse nascido em São Paulo, não teria tido a chance, aos dezoito anos, de desbravá-la da maneira como desbravei. Trocar a província pela metrópole é um rito de passagem tão importante quanto procriar ou entrar no mundo do trabalho.

Na juventude, meu sonho era escrever e viajar. São Paulo me propiciou isso. Sou muito grato a esta cidade. A este horror de cidade. A este maravilhoso horror de cidade. Tentarei me explicar, para não parecer que acabo de cuspir no prato em que comi meu primeiro filé à parmigiana.

Proponho ao meu paciente leitor, como ponto de partida, a seguinte pergunta: o que faz uma cidade grande ser uma grande cidade? Em suma, uma metrópole. Certamente não será apenas sua extensão geográfica, pois, se assim fosse, viver em qualquer um dos 2.500 bairros de São Paulo, sem sair dali, seria o mesmo que viver numa cidade do interior, o que não é verdade. A pulsação é outra. Isso dá para sentir, de cara, no mais modesto bar da periferia paulistana. A vida diminuta que transcorre ali faz parte de uma teia, de um sistema muito maior. Então eu diria o seguinte: uma metrópole não se define pelo tamanho, mas pela multiplicidade de conexões que propicia às pessoas.

E pelos contrastes. Uma das coisas que mais me impactaram em São Paulo foi a drástica discrepância entre a tensão dos dias úteis e o marasmo dos domingos. Claro que isso existia também em Rio Grande, minha cidade no extremo sul, porém em grau bem menor. A caminho do cinema, sentíamos a ausência do Homem da Cobra, o ambulante que fazia ponto ao lado do coreto da Praça Tamandaré. Não muito mais que isso.

Na metrópole, quando a vida para de repente, num domingo chuvoso, o recém-chegado pode ser pego de surpresa por uma melancolia proporcional ao tamanho da cidade. Um vazio, um negócio que é tipo uma inhaca existencial. A língua inglesa expressa isso, com elegância, numa única palavra: nothingness.

Quando ouço a voz plangente de Ray Charles em Georgia on my mind, recordo meus primeiros domingos em São Paulo, cinzentos e solitários. E se Tito Madi vier na sequência com o samba-canção Gauchinha bem querer, bah, aí dá perda total. Pronto, caio em prantos.

São Paulo me ensinou – na marra – a lidar com forças opostas. Uma delas, centrípeta, me puxa para dentro dela de forma irrevogável, como se só aqui fosse possível contar com os interlocutores e estímulos dos quais necessito. Ao mesmo tempo, outra força violenta, porém centrífuga, me empurra para o mais longe possível deste inferno urbano em que todo mundo disputa espaço o tempo inteiro, sem trégua.

Fugi de São Paulo várias vezes. Fugi e voltei. Cada vez que voltei, encontrei coisas novas, ideias novas, pessoas novas. Foi sempre um recomeço, uma oitava acima, não uma simples continuação. Um novo trabalho, um novo bairro para morar.  Meu atual endereço é o décimo, em meio século, sem contar outros tantos em que fui acolhido por amigos generosos durante semanas ou meses, em fases de transição ou de apertos financeiros.

Esses altos e baixos, hoje não os lamento de forma alguma. Ao fazer de mim um peregrino dentro dela própria, esta cidade me treinou para viver em diversas outras, dentro e fora do país, onde me estabeleci durante temporadas mais curtas ou mais longas. Mesmo estando distante de São Paulo, ela sempre permaneceu no meu horizonte, como uma estrela-guia. Acho que esse sinal me foi lançado na primeira vez que estive aqui, aos sete anos de idade, em julho de 1961, meses depois da inauguração do antigo e já desativado terminal rodoviário da Luz.

Em março de 1972, quando vim para morar, encontrei a cidade ainda sob impacto do incêndio do Edifício Andraus. No Sul, dias antes, havíamos acompanhado pela televisão a tragédia ocorrida na Avenida São João. No entanto, visto de longe, a mais de mil quilômetros de distância, aquilo não era tão diferente das cenas mais impactantes das novelas. Na província, os fatos da metrópole, fossem ou não ficcionais, eram coisas que ocorriam em um mundo que não era o nosso.

Nessa mesma época, São Paulo celebrava o cinquentenário da Semana de Arte Moderna. Mas que catso vinha a ser aquilo? Eu não fazia ideia. Era apenas um ex-estudante de eletrotécnica, sem grande verniz cultural, que de repente decidiu trocar a régua de cálculo pela máquina de escrever. A celebração do modernismo foi um ótimo momento para desembarcar aqui. O vento soprou a meu favor. Tive chance de assistir, em cópias novas, aos grandes filmes do Cinema Novo. Por uns trocados, vi subir ao palco músicos do calibre de Egberto Gismonti e Wagner Tiso.

No curso de comunicações sociais, encontrei um ambiente receptivo e estimulante. Os veteranos programaram um churrasco em um sítio para receber os calouros. Achei ótima ideia. Eu ainda, naquela época, era um carnívoro voraz. Imaginei suculentos espetos de costela a perder de vista. Enfim, carne para salgar com avião agrícola, como se dizia no Sul. E uma cordilheira de cerveja gelada. Serramalte, claro, ainda um emblema da cultura gaúcha, para aplacar não apenas a sede, mas também a saudade. 

Ao chegar no sítio, foi um choque cultural. O que chamavam de churrasco não passava de modestos bifes, talvez de acém, sei lá, que fritavam na chapa, enfiavam no pão francês e comiam em pé, na forma de sanduíche, com molho vinagrete. * La puta que los parió!; precisei dizer apenas para os meus botões, evitando assim ser descortês com meus novos colegas. Além disso, acho que nenhum deles tinha ouvido falar da nossa Serramalte, que no Sul considerávamos a melhor cerveja do mundo, ainda que para isso fosse necessário reduzir o mundo às dimensões da província.

Isso, no fim das contas, foi até bom para mim. Na falta da Serramalte, pela primeira vez, tive a oportunidade de provar uma cerveja que não vinha em garrafa de vidro, e sim em uma latinha amarela de folha de flandres. Essa era uma grande novidade do início da década de 1970, no Brasil. E se o Brasil excluía o Sul, azar do Brasil.

Ou melhor, azar meu. Já estava mais do que na hora de eu aprender a me portar como um brasileiro. Ah, se meus antigos colegas do curso de eletrotécnica pudessem me ver ali, com aquela panca de futuro jornalista, emborcando uma Skol! Eu teria até feito uma selfie, se isso existisse. Uma selfie que seria uma farsa, como são as selfies. Pois, no fundo da alma, eu continuava a aportar que em nenhum recanto do sistema solar, ou fora dele, poderia haver uma cerveja capaz de superar a Serramalte. Só ela, em garrafa de vidro, guardava o sabor da minha terra distante.

Apesar desse primeiro churrasco que não foi churrasco, São Paulo logo iria começar a ampliar o meu paladar provinciano, abrindo-o como se fosse uma sanfona. Comida chinesa, filé à cubana, molho tártaro, hambúrguer em todas as suas variações, sanduíche americano, cortado com a espátula ainda sobre a chapa, frutas tropicais de todas as cores e formatos, jaca, maracujá, jabuticaba... Nada disso se conhecia em Rio Grande. E nem mesmo em Pelotas se poderia imaginar um sorvete de pétalas de rosa. Também valeria um selfie, creio. Esse, no balcão da lanchonete Jotas da Vila Buarque.

Em Pinheiros, fui presa fácil dos quilométricos filés à parmigiana do Degas. Os garçons experientes os cortavam com a ponta da colher, que a seguir usavam para enrolar no ar os fiapos de queijo, como se fossem fios de ovos, ao longo do curto trajeto da travessa até os pratos. Aqueles senhores de gravata-borboleta gostavam de exibir suas habilidades de ofício diante do olhar respeitoso de um grupo de universitários famintos. Afinal de contas, a revolução só podia ser feita de barriga cheia.

Precisei de força de vontade para vencer minha repulsa inicial à garapa. Tinha aspecto de urina, com o perdão da palavra. Tampouco me encantei muito com o feijão carioca, usado em São Paulo no dia a dia, cujo marrom me parecia similar a algo que, desta vez, prefiro omitir. Depois, superei essa fase. Contudo, sempre me faltou coragem para comer rãs. E até sou grato por não tê-la em relação à dobradinha, que no Sul conhecemos por mondongo. Já na mais longínqua infância, quando botavam aquele troço para cozinhar na panela, eu sumia de casa.

Em São Paulo, nos primeiros tempos, tive a sorte de ser muito bem acolhido nas casas de Francisco Moura, Alceu Nader e Pedro Monteiro, que depois se tornariam amigos para a vida toda. A convivência com essas famílias me ensinou a apreciar o café fresco, coado na hora. No Sul, o costume era bem diferente. Fazia-se grandes quantidades de um café ralo, aguado, que permanecia no bule durante alguns dias, para ser requentado diversas vezes. Uma porcaria, enfim, como se pode imaginar.

Aprendi com os paulistas que o café, para ser bom, tem que ser feito no mesmo instante em que o espírito, não apenas o paladar, o solicita. Com a metáfora, ocorre algo semelhante, descobri depois, quando escrever se tornou o meu ofício. Se eu usar em um texto, por exemplo, São Paulo, a locomotiva do Brasil, estarei apenas me apropriando de uma metáfora formidável, perfeita para a época áurea das ferrovias, mas que o tempo degradou, como o café no bule. Tornou-se, portanto, um clichê. Este, reconheço, também não é um termo que as novas gerações entendem tão bem quanto a nossa. Quando algum aluno às vezes me pergunta o que é um clichê, e por que não se deve usá-lo no texto, costumo responder: > Vá até o Rio Grande do Sul e prove um café caseiro.

Já quanto ao chimarrão, os gaúchos são tão zelosos e exigentes quanto os paulistas em relação ao café. O mate precisa ser feito na hora, de determinado jeito, e depois tomado em ritmo de ritual. Aprende-se isso na infância. É tarefa ingrata ensinar um paulista a tomar mate. Apressado, ele tenderá a revirar a bomba na cuia como se fosse um canudo no milk-shake. Ou a alavanca de câmbio do automóvel. O paulista é um cosmopolita. Resolve as coisas do jeito dele. Só me senti de fato um morador de São Paulo quando peguei a mania de exigir café fresco, feito na hora, várias vezes por dia, como fazia o Alceu, quando ouvíamos os primeiros discos de Gismonti.

Assimilei também muitas palavras novas em São Paulo: lousa, carteira, farol, breque, vitrola, treme-treme, quitinete, criado-mudo, mexerica, marmita, mistura. Tudo isso, ouvi aqui pela primeira vez. Expressões como “pra viagem” ou “de domingo” me soavam estranhas nos primeiros tempos. Mas nenhuma tão engraçada quanto “puxar o tapete” de alguém, algo comum no mundo corporativo. Ao ouvi-la, eu imaginava uma cena de desenho animado. No Sul, diríamos “pisar no poncho” ou “dar uma rasteira”. Mas “puxar o tapete”, convenhamos, é muito mais coreográfico.

 Também me chamou a atenção, vivendo em São Paulo, ouvir dizer que duas pessoas estavam casadas, quando no Sul se usava a expressão eram casadas, dando a ideia de algo irreversível, definitivo, como quando se escolhe um time para torcer. Era um detalhe significativo. Logo pude perceber que, na metrópole, todos os aspectos da vida, incluindo as relações humanas, tinham um caráter mais flexível e transitório do que na província. Isso valia até para as regras de snooker, que no Sul eram mais severas e punitivas.

A flexibilidade do Sudeste, conforme percebi, poderia representar uma oportunidade para rever valores e ampliar horizontes. No Sul, as coisas tendem a ser mais nítidas, o que é bom, mas também mais rígidas, o que é ruim. Dançar conforme a música nem sempre significa uma corrupção do caráter, como nós, sulistas, estamos sempre dispostos a considerar. Eu vinha de uma cidade austera, espartana, surgida de uma guarnição militar cravada numa península arenosa com formato de um punho fechado. Como me dispunha a viver no centro do país, ambiente multifacetado, cosmopolita, a primeira coisa a fazer era afrouxar os dedos da mão, um a um, e aprender a tocar todas as cordas da harpa tropical que – basta olhar o mapa – traça o feitio do Brasil.

Fui criado em uma cidade costeira, plana como uma mesa de snooker, quando lá ainda predominavam as casas baixas e os espaços abertos. Por conta disso, tanto a aurora quanto o crepúsculo eram um processo lento, que inspirava contenção no temperamento de seus habitantes. Em São Paulo, encontrei o oposto disso. Cidade de planalto, apinhada de prédios encravados entre vales e colinas, ela só se revela a quem consegue entender sua topografia. Mesmo sendo ávido caminhante, sempre detestei ladeiras, calçadas com degraus, desníveis no terreno, como se tais coisas fossem uma espécie de celulite do chão, defeitos das cidades.

Demorei a me acostumar com as colinas de São Paulo, as repentinas enxurradas de verão, que em minutos podem tornar o ambiente urbano hostil e ameaçador. Criado em uma cidade pacata e lisa, de repente me vi caminhando em ruas inclinadas e tumultuosas, calçadas com cheiro de gás, sob o barulho de metralhadora dos helicópteros e o estrondo dos aviões a jato, coisas que eu só conhecia dos filmes de guerra. Tudo isso me deixava aturdido. O crepúsculo rápido, em São Paulo, não me dava tempo de pensar.

Mas cheguei a pensar em voltar para o Sul, ao menos por instantes, cada vez que me via diante da enorme ladeira da Rua Alagoas, no último quarteirão do meu trajeto para a faculdade. Vencida essa etapa penosa, voltava a me convencer de que meu lugar era mesmo em São Paulo. Lá dentro da faculdade, eu podia contar com professores excelentes (um deles, genial) que me davam justamente aquilo que eu tinha vindo buscar na metrópole: uma nova maneira de olhar o mundo. Não se volta para a província após ser aluno de Isaac Epstein.

Meu primeiro endereço em São Paulo foi em um prédio situado numa alça da Nove de Julho, a mais tradicional das grandes avenidas de fundo de vale que são a marca registrada da cidade. Naquele trecho, cerca de duzentos metros antes da boca do túnel de acesso aos Jardins, os edifícios foram construídos em áreas escavadas nos taludes das colinas, formando paredões maciços, sem intervalos.

Em centenas de janelas, as luzes permanecem acesas a maior parte do dia. Os vidros sempre fechados, não tem outro jeito, para atenuar o barulho e a fuligem do trânsito. Lugar sombrio, astral pesado. Amanhece tarde, anoitece cedo. Eu sentia saudade da amplidão do Sul, os “abismos horizontais”, como se costuma dizer de nossos vastos descampados costeiros. É que nem estar no meio do mar, embora estando em terra firme. Uma outra forma de nothingness, mais serena e luminosa, enriquecida pela sensação de liberdade.

Nas trevas enfumaçadas da Nove de Julho, eu morava inicialmente com mais dois sujeitos bem mais velhos que eu, num apartamento térreo, mais escuro ainda, e a janela do nosso único quarto dava para a lateral do prédio. Embora o nome do edifício fosse cintilante, Astro Sul, para nós lá dentro era sempre noite, como numa mina de carvão da Inglaterra. Precisávamos manter a luz acesa e a cortina fechada, o tempo inteiro, para os transeuntes não nos verem em cuecas, nem virem nos encher o saco, pedindo informações. Em geral, queriam saber o valor do condomínio.

Aliás, era um valor bastante acessível. O Astro Sul, com sua fachada em pastilhas rosadas e azuis, era já então um imóvel de reputação declinante, onde as pessoas moravam só até conseguir coisa melhor. Vivia ali uma fauna urbana das mais heterogêneas. Costureiras e aposentados eram obrigados a compartilhar os elevadores com seres da noite, entre garotas de programa, atores dos teatros do Bexiga e bagaceiros de diversos tipos. Tratava-se, em suma, de um treme-treme, outra expressão paulistana que me agradava tanto quanto aquela já mencionada, puxar o tapete, pois ambas reproduzem com maestria a instabilidade da existência humana neste vale de lágrimas.

Mesmo vivendo na sombra do Astro Sul, meu lugar ao sol não demorou a surgir. Uns dois ou três meses depois de chegar em São Paulo, por meio de um anúncio de jornal, consegui emprego como revisor de textos na mais importante editora de revistas do país, a Abril, para ganhar um salário bem acima das minhas pretensões. Era para dar um salto e um soco no ar, como Pelé. Esse emprego me permitiu dispensar o apoio financeiro da família, o que foi ótimo, mas teve também um efeito colateral negativo: deu-me uma visão ilusória do que seria a vida profissional em uma grande cidade.

Na província, eu jamais teria sonhado em conseguir um emprego desse nível, recém-entrado na faculdade, a menos que fosse apadrinhado por uma figura influente, e olhe lá. Na metrópole, como os caciques estão longe do olhar dos índios, tive a impressão de que poderia, para todo o sempre, chegar aonde quisesse sem precisar da indicação de ninguém, só por minhas próprias forças, apenas fuçando anúncios nos jornais. Nada como a inocência dos dezoito anos. Nada como uma Serramalte.

Deixei o Sul, entre outras coisas, por perceber que o espaço profissional era dominado por panelinhas. O espírito de patota conta a favor dos medíocres. Isso, eu sempre soube. O que eu não sabia é que se trata de um fenômeno universal. Sem indicação, não se chega a lugar algum. Não devo ter lido Os três mosqueteiros, na infância, com a devida atenção aos detalhes. D’Artagnan não teria se tornado mosqueteiro, em Paris, se não houvesse partido da Gasconha levando no bolso uma carta de recomendação. O jogo é esse. Entra quem quiser.

Houve momentos em que me senti sozinho, desamparado, logo que cheguei em São Paulo. Naquela época, era difícil até encontrar erva-mate. Para tomar chimarrão, só mesmo nas arquibancadas dos estádios, em meio à torcida colorada, quando o Internacional vinha jogar aqui. Nunca deixei de comparecer, mesmo debaixo de chuva, sentindo febre e calafrios.

Em meio à torcida colorada, pequena porém aguerrida, sempre me deixei comover no breve convívio com aqueles sujeitos que vinham do Sul em ônibus fretados, cinquenta horas de estrada, entre ida e volta, apenas para assistir a um jogo que durava uma hora e meia. Mas o que são cinquenta horas, ou mesmo cinquenta anos, quando se trata das coisas do coração? Era o que eu me perguntava, na arquibancada, enquanto compartilhava o chimarrão com desconhecidos que nunca mais iria rever. Acima de tudo, o Inter. Isso não precisava ser dito. Todos sabíamos. E sabíamos também que o melhor remédio para a solidão, senão para a gripe, era ver surgirem na boca do túnel as camisetas vermelhas.

Por décadas, o Internacional amargou um complexo de inferioridade em relação aos paulistas. Mesmo quando jogava bem, saía na frente, depois se mostrava incapaz de suportar a pressão, cedia terreno, levava a virada. Isso me doía. Não só como torcedor, mas também como um terneiro disposto a virar um touro, em meio às provações da metrópole.

Não é proibido querer viver uma vida parecida, nem que seja um pouquinho, como a de D’Artagnan. Vim para a cidade grande porque queria estar entre os grandes. Se meu destino fosse ser um pequeno entre os grandes, paciência, nem sempre se ganha o jogo. Mesmo assim, eu preferia isso, mil vezes, do que ser um grande entre os pequenos. Neste último caso, não se é testado de verdade.

No meu primeiro ano em São Paulo, o jogo mais eletrizante não foi aqui, mas lá no Beira-Rio, entre as seleções do Brasil e do Rio Grande do Sul. Na tarde do sábado 17 de junho de 1972, o estádio do Internacional recebeu o maior público da sua história, estimado em torno de 115 mil espectadores. Deve haver certo exagero nessa cifra, mas não importa.

Era para ser uma simples partida amistosa, mas acabou por ganhar quase uma atmosfera de guerra civil de caráter separatista. Como se sabe, às vezes um melindre qualquer, irrelevante e circunstancial, como foi o caso, tem o poder de reativar uma mágoa antiga e profunda. Isso vale tanto para um indivíduo quanto para um povo inteiro.

Ao longo da história, o Rio Grande do Sul sempre foi um recanto esquecido e não muito valorizado pelo resto do país. Só se lembravam de nós como fornecedores de gado e, claro, como bucha de canhão nas peleias contra os castelhanos. Nunca tivemos uma relação justa e paritária com o governo central, pelo menos não nos moldes dos estados situados mais perto dele, em termos geográficos e políticos. O gaúcho é alguém que, pelo menos uma vez na vida, mesmo secretamente, já se perguntou se é bom negócio fazer parte do Brasil.

Não tenho essa resposta. Mas estive bem perto dela, confesso, durante os noventa minutos daquele sábado de junho em que as seleções brasileira e gaúcha se defrontaram. Na opinião de pessoas sensatas, um jogo desse tipo, que instigava paixões regionalistas, jamais deveria ter sido realizado. Talvez estivessem certos, penso agora. Mas na época, meio século atrás, em meus frágeis e ardentes dezoito anos, deixei-me embriagar pelo ardor farroupilha. Enfurnado no sombrio apartamento térreo do Astro Sul, radinho colado ao ouvido, torci como um doido pela seleção gaúcha.

Sim, como um doido. Só um doido seria capaz de esquecer, durante noventa minutos, que do outro lado estavam as mesmas camisetas amarelas que nos haviam feito chorar de felicidade apenas dois anos antes, na conquista do tricampeonato mundial. Aquele foi o time dos nossos sonhos. O maior de todos. No entanto, agora era preciso destroçá-lo, amassá-lo sob nossas chuteiras, nossas botinas, assim como se amassa a latinha amarela da cerveja Skol antes de jogá-la no lixo. O Brasil, inimigo mortal, ia ter que provar o gosto da Serramalte.

Nosso time era mais do que uma seleção gaúcha. Tinha no centro da área, lado a lado, o chileno Figueroa e o uruguaio Ancheta, dois zagueiros muito superiores aos da seleção brasileira, além do atacante argentino Obberti. Não seria um despropósito considerá-lo uma seleção do Cone Sul. É assim mesmo, como um reino meridional mais amplo, autônomo, passando por cima das fronteiras secas, que o Rio Grande do Sul pensa em si próprio, de vez em quando. Sobretudo no inverno.

No sudeste do Brasil, tem-se a noção de que os gaúchos, assim como os gascões no sudoeste da França, são tipos meio rudes e topetudos. Não sei se essas seriam as palavras exatas. Mais rígidos, sem dúvida, como já frisei, e também mais diretos. No Sul, em caso de dúvida, optamos por dizer abertamente, na bucha, aquilo que as pessoas no centro do país preferem dar a entender por um eufemismo ou uma atitude esquiva.

A gramática da metrópole é outra. Talvez por causa do ritmo da vida. Em São Paulo, principalmente nas relações profissionais, a omissão da resposta é postura aceitável, não deveria ser considerada uma descortesia. Não se dá retorno algum, em vez de uma resposta negativa. No Sul, ao contrário, a franqueza é (ou era) de praxe. Trata-se de uma maneira de honrar o interlocutor. Talvez uma forma sulista de afeto. Senti falta disso, quando recém-chegado em São Paulo.

Cheguei também um pouco ressabiado em relação às mulheres. Entre meus amigos de adolescência em Rio Grande, que também moravam nas proximidades do canto sudoeste da Praça Tamandaré, eu havia sido o primeiro a me iniciar na vida sexual, tirando o lacre aos quatorze anos, se não me falha a memória. Na vida afetiva, em contrapartida, eu era o lanterninha da turma. Aos dezoito anos, era o único entre eles que jamais havia tido uma namorada. Nem mesmo uma namoradinha “de portão”, se me permite usar essa expressão arcaica, porém simpática.

Não creio que eu estivesse entre os sujeitos mais feios da cidade, mas talvez entre os mais tímidos. Sentia-me no mato sem cachorro, isto é, sem namorada, porque não gostava de dançar. Aliás, não sabia. Às vezes, me arriscava a entrar nos salões de dança apenas por obrigação, e ali me sentia tão pouco à vontade quanto um crocodilo numa loja de cristais. Em geral, a guria me dispensava logo após a primeira música, fato que eu encarava nem tanto como um demérito, mas antes como um alívio, enquanto via a parceira pisoteada se afastar de mim lacrimejando ou até manquitolando.

 Tornei-me especialista em lamber minhas próprias feridas por meio de um falso desdém. Cada vez que levava uma invertida dessas, dizia para mim mesmo que aquelas gurias provincianas nem eram lá grande coisa, só se interessavam por assuntos locais e canções românticas. Talvez fosse verdade, mas não uma verdade absoluta. Havia aquelas que fugiam à regra, mas não eram muitas, e pareciam fora do alcance de um sujeito que não soubesse dançar. Na província, bem mais do que na metrópole, muros invisíveis separam as pessoas que frequentam os mesmos locais. Qualquer um os enxerga. Um tímido é capaz de enxergá-los até quando não existem.

Vi tudo isso desaparecer como num passe de mágica, quando vim para São Paulo. Estando no ambiente arejado de uma faculdade de comunicações sociais, em que se discutiam ideias, logo me dei conta de que ali não tinha a menor importância saber dançar ou cumprir protocolos burgueses. Mesmo um trapalhão podia sonhar em ter certo sucesso, ao ciscar junto às moças, se fosse capaz de se mover entre copos de cerveja e sustentar conversas intelectualizadas. Era tudo o que eu queria. Junto a uma mulher bonita, independente, cheia de ideias, já dava para encarar até mesmo uma Skol.

Encantei-me com as feministas. Tão resolutas, tão opinativas, tão informadas. Sabiam tudo sobre orgasmo. Sabiam como e quando a ditadura dos milicos iria por fim desmoronar. Sabiam quais filmes estavam por entrar em cartaz no Bijou e no Belas Artes. Nomeavam diretores de cinema que um gascão gaúcho como eu, matraqueado em eletrotécnica, tinha de anotar em guardanapos para não esquecer.

Mulheres do balacobaco. Falavam de livros e escritores importantes, tudo assim ao natural, quase em tom de intimidade. Eram capazes de citar os nomes de todos os modernistas, de Guilherme de Almeida a Mário de Andrade, mais rápido até do que eu, se fosse o caso, estaria disposto a recitar a escalação do Internacional, de Schneider a Escurinho.

Era por essas mulheres que eu, ao chegar do Sul, tendo cometido por lá tantas atrocidades nos salões de baile, trazendo comigo a solidão como resultado da incompetência, estava agora disposto a me apaixonar. Foi por essas mulheres que me apaixonei. Com o tempo, porém, também em relação ao sexo oposto, me dei conta de que as coisas na metrópole nem sempre eram o que pareciam ser. Quando menos se espera, mesmo em meio ao balacobaco, entre olhares que se devoram na mesa mais efervescente do Riviera, pode emergir uma debutante do fundo da alma de uma feminista. Todo cuidado é pouco. Nada de baixar a guarda. Diante de um discurso inflamado, as primeiras vítimas são sempre os trouxas. Eu era um deles.

Quando se chega a uma grande cidade, vindo de uma cidade pequena, é como se recebêssemos um binóculo de presente. Aprendemos a usá-lo de dois modos. Ao olhar pela extremidade menor do instrumento, vemos aumentadas algumas coisas do nosso torrão natal que não éramos capazes de enxergar antes, quando estávamos lá. No momento seguinte, viramos ao contrário os tubos do binóculo, olhando então pelos bocais mais largos. Vemos então o nosso mundo anterior distante no espaço e no tempo, como se não nos dissesse respeito. Em ambos os casos, tudo ganha nitidez.  As coisas e as pessoas revelam primeiro sua alma, para depois revelar sua forma.

A política é apenas forma, mas uma forma capaz de embriagar a alma. Em meus primeiros tempos em São Paulo, tive a oportunidade de me mover em três diferentes grupos de pessoas. O primeiro formado pelos colegas da faculdade, bezerros da ditadura como eu próprio. O segundo, por colegas de trabalho com alguns anos a mais, que tinham vivido a época das passeatas contra o regime e depois ingressaram em organizações clandestinas. O terceiro, por boêmios entre trinta de quarenta anos, cujos anos de formação haviam transcorrido antes do golpe de 1964. Foi altamente proveitoso, para mim, apreciar os fatos nacionais e a vida na metrópole a partir de pontos de vista diferentes, conforme o grau de maturidade dessas pessoas.

Esses três grupos, contudo, tinham um traço comum. Eram formados por gente que se considerava de esquerda, em suas diversas vertentes. Embora muitas dessas pessoas fossem por demais sectárias, opiniáticas, e após algumas cervejas falassem mais que o Homem da Cobra, eram certamente cultas, inteligentes, sintonizadas nos temas importantes daquele momento. Por essa razão, identifiquei-me naturalmente com suas ideias políticas, porém naquele processo, vejo agora, havia de minha parte mais fascínio que reflexão. Atribuí uma superioridade moral e intelectual da esquerda sobre a direita, o que é um equívoco. E outro equívoco, talvez, foi deixar o primeiro se transformar em desilusão.

Sempre me coloquei na posição de um livre-pensador, flertando às vezes com o niilismo, moléstia autoimune que consegui manter sob controle. Jamais me convidaram para fazer parte de qualquer organização política. Fizeram bem. Talvez me vissem, com olhar indulgente, como um patriota equivocado. Em linhas gerais, eu me considerava um sujeito de esquerda, por afinidade intelectual e pelo meu modo de vida, mas tinha também posições que podiam ir desde um anarquismo difuso até o campo conservador, sem chegar a ser um reacionário. Talvez eu fosse algo do tipo de um socialista lisérgico. Mas não me peçam para explicar o que seja isso.

Outra coisa que não consigo explicar direito é a alquimia que ocorreu em mim, durante o primeiro ano em São Paulo, quando assisti ao filme Roma, de Fellini. Saí atônito do Belas Artes, como se houvesse acabado de ter uma revelação divina. Mal consegui cruzar a Consolação para ir tomar uns tragos no Riviera.

A partir daquele dia, entre todos os grandes cineastas que passei a curtir e acompanhar, Fellini tornou-se aquele que me fisgou mais fundo. Ele transformara em imagens a trajetória de um rapaz vindo do interior que tenta a vida na cidade grande. O tema não é novo, ao contrário. Mas a meu ver só Fellini conseguiu, ao tratar dele, um perfeito balanço entre a sátira e o lirismo. Aquele era também o meu modo de observar a vida. Eu sempre havia sido um felliniano, só que não sabia disso.

Roma não deixa de ser também uma grande reportagem. Mostra a cidade, como ela funciona, como ela se expressa no cotidiano, tendo como fio condutor o olhar do protagonista. Eu nunca havia visto antes um filme assim. O próprio Fellini, mediante um artifício recursivo, entrava em cena na real condição de cineasta, durante a filmagem de Roma. Era o mesmo efeito do tipo mise en abîme que me instigava na infância, quando eu me detinha a observar a imagem na lata do azeite Carbonell, que se multiplicava em si mesma até o infinito. Aquilo me dava medo. Mas não era só medo. Era um sabor excitante que vinha depois do medo.

No primeiro ano da faculdade, fiz parte de um grupo independente de cinema. Como a estrutura do nosso curso de comunicação social permitia várias opções, a partir do terceiro ano, fiquei tentado a me tornar cineasta, em vez de jornalista. Meu primeiro projeto, pensei, seria o de fazer um filme sobre São Paulo que fosse, ao mesmo tempo, uma reportagem urbana e uma crônica autobiográfica, mais ou menos nos moldes de Roma, de Fellini.

Esse filme que jamais filmei haveria de ter cenas pitorescas rodadas no centro de São Paulo. Por exemplo, a aglomeração de transeuntes diante das vitrines das lojas de eletrodomésticos que, no começo de 1972, exibiam os primeiros televisores em cores. Depois vários aparelhos assim foram instalados na rodoviária da Luz. Foi algo espetacular. Atraía até uma curiosa cepa de personagens flutuantes, que não iam viajar para lugar algum, apenas passar a tarde de braços cruzados diante das imagens coloridas.

Desde que eu perambulava pelas ruas de Rio Grande, na ociosidade da adolescência, uma das minhas ocupações era observar os desocupados. Esses tipos anônimos que, no jargão jornalístico, são referidos como populares ou curiosos. Neles pode restar algo que já perdemos. Sei que isso é besteira. Mas é uma besteira que, creio eu, compartilhei com Fellini.

Os desocupados da metrópole se pareciam muito com aqueles que, em Rio Grande, se detinham ao lado do coreto da Praça Tamandaré em torno de um camelô pernambucano. O Homem da Cobra, como era conhecido, falava sem parar, que nem um locutor de futebol, porém apregoando beberagens feitas com plantas amazônicas para eliminar as lombrigas. Gostávamos de suas modulações de voz, de seu cativante sotaque nordestino.

Em formação circular, ouvíamos aquela ladainha mil vezes, hipnotizados pelo olhar de uma enorme e sonolenta jiboia. De tanto em tanto, o camelô pendurava o animal ao pescoço de alguém da plateia. As gurias tímidas se escondiam atrás das amigas, com medo de que o Homem da Cobra de repente viesse na direção delas.

De repente, todo o meu passado rio-grandino se tornou felliniano. Se não virei cineasta, foi em parte por achar que, sendo jornalista, poderia contribuir para o fim da ditadura. Ingenuidade pura. O regime militar em breve começaria a desinflar naturalmente, sem precisar ser espetado pelo meu modesto alfinete. Além disso, o jornalismo combativo, de denúncia, jamais me atraiu muito. Preferia retratar tipos pitorescos e atemporais, como o Homem da Cobra, do que figuras da cena nacional, entrincheiradas em sua hipocrisia.

Meu filme sobre São Paulo, aquele mesmo que jamais filmei, resultou quinze anos mais tarde no romance Sonata da última cidade. Ali está, ao menos em intenção, o que Fellini fez em Roma: uma reportagem romanceada, quase circense, conduzida pelo olhar de alguém que vem de longe.

Se penso hoje nos cinquenta anos decorridos desde que vim morar em São Paulo, deparo com duas noções de tempo que parecem contraditórias. Primeira: como tudo isso passou tão rápido! Segunda: quanta coisa se encaixou aí dentro! Pessoas, lugares, maneiras de pensar. Parece que vivi cinco séculos, e não meio, desde que vim para cá.

O tempo registrado e o tempo vivido – cronos e kairós, respectivamente, para os antigos gregos – são coisas de naturezas distintas. Noventa minutos foi o quanto durou a partida disputada em junho de 1972, no Beira-Rio, entre a seleção gaúcha e a seleção brasileira. Placar final, três a três. Dentro de mim, no entanto, aquele jogo continua em andamento até hoje. E ainda empatado, meio século depois.


sábado, 11 de dezembro de 2021

AS DORES GERAES

                  

                      Ao vasculhar a prateleira dos discos, dela retiro ao acaso o elepê Geraes, de Milton Nascimento, que me foi presenteado por uma colega de trabalho em dezembro de 1990. O nome dela sobressai na capa, impresso em alto relevo com rotulador manual em fita vinílica preta, uma dessas coisas que sobrevivem porque ninguém se lembra que ainda existem. O detalhe demonstra que o disco foi tirado de uma discoteca pessoal, o que lhe confere um valor extra, além da dedicatória em primorosa caligrafia.

Geraes saiu em dezembro de 1976. Foi um lançamento importante no âmbito da MPB. Na época, eu morava fora do país, e só por isso não havia adquirido o disco. Uma lacuna em minha discoteca. O inventivo Milton, como Egberto Gismonti, era um dos meus artistas prediletos durante a fase em que fui um devoto da MPB. A ditadura parecia virar mingau, lá fora, quando se podia chegar em casa, tirar os sapatos e colocar para girar na vitrola um disco novo de Milton.

Um fator pessoal foi a razão de minha colega ter me presenteado, já fora de época, o elepê Geraes. Na foto interna do álbum, entre uma multidão de jovens, aparece a figura ensimesmada de um indivíduo de 20 anos com uma camiseta preta e a alça da bolsa de couro cruzada sabre o peito, o qual, acreditem, é este mesmo que hoje, beirando os 70, persiste no vício de escrever e, mais grave, não poupa os leitores de suas nostalgias.

É comum termos fotos de grupo em que aparecemos entre pessoas conhecidas ou associáveis a uma circunstância, mesmo que não lembremos seus nomes. Menos comum, creio, são imagens em que nos surpreendemos no meio de gente anônima, reunida em local público, sem que ninguém soubesse que estava sendo fotografado a distância.

Vale lembrar aos jovens que, antes de existirem telefones celulares, não se fotografava a torto e a direito por aí, que nem hoje. Mesmo quem tivesse uma câmara só saía com ela em situações específicas, como se faz com o guarda-chuva. A menos, claro, a fotografia fosse um hobby ou um ofício.

Este último caso se aplica ao autor da foto interna do elepê Geraes. Trata-se do fotógrafo e artista plástico Carlos da Silva Assunção Filho (1950-2019), conhecido como Cafi. Pernambucano radicado no Rio, ele assinou o projeto gráfico de mais de três centenas de discos da MPB. Foi um dos grandes, em sua especialidade. Em certos casos, as embalagens cartonadas que protegiam os vinis chegavam a ser sofisticadas a ponto de funcionar como complemento do conceito musical utilizado pelo compositor. Degustar os sons e as imagens de um novo disco, sem desgrudar os olhos da capa, fazia parte do ritual de ouvir música.

Geraes foi um caso exemplar. Curiosamente, porém, Cafi optou por usar na parte interna desse álbum uma foto feita por ele mesmo dois anos antes, em 1974, durante o concerto em que Milton interpretava as músicas contidas no disco anterior, o magistral Milagre dos peixes. Pouca gente, suponho, deve ter percebido esse descompasso temporal entre a imagem e o conteúdo do disco. Descobri isso porque a situação retratada, até certo ponto, me dizia respeito. Não recordo como nem quando me reconheci (ou alguém me reconheceu) nessa foto.

Vejo agora aquele cara de camiseta preta, em pose resoluta, para não dizer arrogante, e até preferia que não fosse eu mesmo. Tenho as palmas das mãos parcialmente enfiadas na cintura da calça, como um caubói pronto para um duelo. Posso recordar que essa foi uma das minhas manias passageiras da juventude, como a de não usar cinto, que então me parecia um hábito de homens já aprisionados no mercado de trabalho, que andavam com crachás pendurados no pescoço e carregavam suas coisas em uma pasta profissional.

Nós, os jovens, preferíamos usar bolsas penduradas no ombro. Era uma novidade atrevida, tida por alguns como afeminada, assim como acontecera na década anterior como as cabeleiras masculinas. A foto interna de Geraes, aliás, é uma avalanche de cabelos ao sol. Fomos fotografados por Cafi durante a tarde radiante e ventosa de um domingo de maio.

O show de Milton, acompanhado pelo grupo Som Imaginário, de Wagner Tiso, provavelmente ainda não havia começado. Deduzo-o isso pelos gestos e fisionomias das pessoas. Nossos olhares não se concentram sobre um único ponto à frente, que seria o palco, naturalmente, se os músicos já estivessem tocando.

Uma moça tosse, um rapaz acende o cigarro, muitos ajeitam os cabelos, remexem a barba, bocejam, sustentam o queixo à espera de algo, alguém suspende um bebê no ar, namorados se entrelaçam, aquele lá coça dentro da orelha com o dedo indicador, não poucos de nós têm os braços cruzados ou se protegem do sol com a palma da mão ou um jornal dobrado. Esperamos por Milton.

Mas esperamos também – percebo agora – para saber qual haverá de ser o nosso lugar no mundo. Ali está, em ponto de bala, a geração nascida na década de 1950. Na Europa, seríamos considerados baby boomers, em referência à explosão de natalidade ocorrida após a Segunda Guerra Mundial. Mas isso não se aplica ao Brasil, pois nossos pais a vivenciaram apenas de modo indireto. Ninguém deixou de procriar por ter a casa bombardeada.

Se os nossos anos 1950 foram “dourados”, como se costuma dizer, já oxidaram na década seguinte por conta do golpe militar. Enquanto o Hemisfério Norte entrava em um ciclo virtuoso, por aqui mergulhávamos no obscurantismo. Minha geração fez faculdade na pior fase da ditadura. Olho para essa foto e recordo muito bem como era aquilo. O cara ao lado sempre podia ser um policial – um policial de cabelo comprido e bolsa a tiracolo, como qualquer um de nós.

No álbum de Milton que tenho agora aberto sobre a mesa, vejo os rostos mais ou menos quinhentos jovens de idade semelhante à minha, na época, em uma área impressa equivalente à de um monitor de 27 polegadas. Estamos agrupados no barranco de um bosque de eucaliptos da Cidade Universitária. Dá para ver alguns troncos e ramagens.

Na foto do disco, o Brasil é branco. Incrível: não vejo um único negro na plateia de um show gratuito, a céu aberto, o que invalidaria qualquer explicação baseada na condição social. Segregação “ao natural”, portanto. E mais incrível ainda: o show era de um artista negro. Se Milton guardasse alguma mágoa racial, bem que poderia, como Miles Davis, se apresentar de costas para o público. Não fez isso. De frente para nós, cantou o que queríamos e precisávamos ouvir: “Eu apenas sou um a mais / a falar dessa dor / A nossa dor”.

A nossa dor era viver os anos preciosos da juventude em um país governado a toques de corneta, na contramão do mundo civilizado. A redemocratização foi uma vitória concreta, do ponto de vista político, porém vazia, do ponto de vista civilizatório. Passadas mais de três décadas, após termos tido governos civis e democráticos de diversos tipos, continuamos a viver em um país onde os abismos sociais nos condenam à insanidade. < E essa, agora?; perguntamos a nós mesmos, pasmos, ao ver emergir o monstro no Lago Paranoá.

Nossa geração ficou devendo, como as anteriores. Tocamos nosso barco, vendemos nosso peixe, entramos e saímos do mundo do trabalho, mas durante todo o tempo em que estivemos em ação não fomos capazes de transformar o Brasil no que ele poderia ser. Vai continuar a poder ser. Parece que nos habituamos a ser uma hipótese.

Digo isso para tentar esboçar o possível estado de espírito dos sobreviventes desses quinhentos sonhadores que aparecem na foto do disco, entre os quais me incluo. Não seria justo, apenas com base em nossas dores geraes, agora ampliadas pela artrite, dizer que fracassamos. Se o Brasil não ficou nem um pouco parecido com o país que desejávamos ter, após nossos tantos anos de labuta, ainda assim formos uma geração privilegiada, em sentido mais amplo. Em nossos anos de formação e atuação, fomos generosamente contemplados pelos ventos que sopraram pelo mundo.

Saímos da casca a tempo de usufruir os últimos lampejos da contracultura, crescemos decifrando os Beatles e captamos a mensagem essencial de Woodstock. Absorver esses valores iconoclastas, porém pacifistas, fosse para adotá-los ou confrontá-los, ampliou nosso repertório de ideias. Largamos a mamadeira para mamar no rock, que foi, sob o aspecto comportamental, ou mesmo existencial, uma nova versão do iluminismo.

Nos versos de Revolution, John Lennon diz que é pura perda de tempo um indivíduo sair à rua exibindo cartazes com a cara de Mao Tsé-Tung (ou de quem quer que seja, acrescento) se não for capaz de transformar, antes de mais nada, a si próprio. Não dá para mudar o sistema na marra. Pete Townshend, guitarrista e compositor do grupo inglês The Who, explica a coisa assim: “Se grita pedindo verdade em vez de socorro / Se compromete-se com uma coragem que não está seguro de possuir / Se levanta-se para apontar uma injustiça / mas não pede sangue para redimi-la / Então é rock-and-roll.

Na geração anterior à nossa, mais militante, mais programática, mais disposta a acreditar que questões sociais e questões humanas são farinha do mesmo saco, poucos se mostraram dispostos a admitir esse equívoco. No entanto, a contracultura não disse nada tão novo. Apenas atualizou e difundiu – espalhafatosamente – o que os sábios de diversas épocas já haviam dito antes: para superar um problema criado por nós (o Brasil, por exemplo) é preciso mudar o jeito de pensar que tínhamos na época em que o criamos.

Acho que isso já estava presente, de forma embrionária, na cabeça desses quinhentos jovens nascidos nos anos 1950 e captados pela lente de Cafi nessa tarde de maio de 1974, durante o show Milagre dos peixes. Gostaria de saber onde anda esse pessoal todo – e o que pensa de tudo o que nos aconteceu desde então. Mas não saberei. Fecho a capa do elepê Geraes e o enfio de volta entre os outros vinis. Foi um belo presente da minha antiga colega de trabalho, que também perdi de vista.

sábado, 4 de setembro de 2021

VENEZA SUBMERSA


                 Nesta ainda pandêmica quase primavera de 2021, lanço a versão digital do romance veneziano Viagem ao pavio da vela – Diálogos com Marco Polo. Faz duas décadas desde seu lançamento em formato impresso, na primavera de 2001, o ano fatídico da derrubada das torres gêmeas em Nova York. Entre todos os meus livros, esse é o que mais me satisfez. Não sei se ficou bom. Ficou como tinha que ficar. Nele, cada palavra, para não dizer cada vírgula, foi colocada com convicção.

Os elementos propulsores do projeto de Viagem ao pavio da vela foram dois: um desejo antigo e uma descoberta instigante. O desejo era o de escrever sobre Veneza, cidade por si quase ficcional, que dá a impressão de flutuar entre o estado sólido e o estado líquido. Ela me enfeitiçou desde a primeira vez em que lá cheguei, em 1976, sozinho, mochila nas costas, câmara a tiracolo, coturnos de paraquedista. Em minha obstinada juventude de viajante solitário, lamentei não ter com quem compartilhar tanta beleza. Senti a solidão como um desperdício. Isso só me aconteceu em Veneza.

O segundo gatilho do livro, mais concreto, foi a surpresa de constatar que o nome do viajante veneziano Marco Polo não é sequer citado por Dante Alighieri na Divina Comédia. Em sua obra máxima, vale lembrar, o poeta toscano arrola um sem-número de personalidades de diferentes épocas e as distribui, segundo seus méritos, nas três instâncias da vida eterna previstas na doutrina cristã – Inferno, Purgatório e Paraíso. Marco Polo, o célebre Marco Polo, não aparecia em nenhuma delas.

Ah, essa não! Onde Dante andaria com a cabeça, ao compor sua obra-prima, para deixar de fora dela o homem que empreendera uma peregrinação tão ousada e monumental, no mundo dos vivos, como aquela que ele próprio, como poeta, havia se aventurado a fazer no mundo dos mortos? Fiquei cismado com essa omissão. Data venia, eu não ia deixar barato. Decidi que me cabia a missão de introduzir Marco Polo na Divina Comédia, mesmo com um pequeno atraso de setecentos anos.

A partir dessa ideia, o projeto começou a se delinear. Eu já podia sentir seu campo gravitacional. Minhas ideias convergiam em impulso rápido, como fazem os peixes quando a gente joga um biscoito no lago. A partir daí, a julgar por minhas experiências anteriores, o enredo da história haveria de surgir naturalmente. Não deu outra. Porém, eu ainda não tinha o mais importante: o foco narrativo. Em um romance, esse é o calcanhar de aquiles.

A linguagem a ser utilizada no livro, pensei, deveria me deixar confortável para transitar entre a fábula e o ensaio filosófico. Só que eu não tinha ideia do que isso pudesse ser, na prática. Além disso, sentia que uma cidade tão especial, como Veneza, merecia palavras especiais. Nem mesmo o vocabulário que eu tinha parecia suficiente para dar conta do recado.

Um fato trivial me ajudou a encontrar o caminho. Na época, final da década de 1990, minha filha frequentava uma pré-escola próxima ao apartamento onde morávamos, no bairro de Pinheiros. Uma tarde, Laura voltou amuada para casa. Perguntei a ela: > Tudo bem na escolinha? < Mais ou menos... > Mais ou menos por quê? < Ando meio desengostada.

Fiquei curioso. Sondei-a para saber se desengostada era um desconforto dela própria em relação aos colegas da pré-escola ou vice-versa, se estaria levando um gelo dos demais. Descobri que se tratava das duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, um melindre de mão dupla. Perguntei-me se haveria no dicionário alguma palavra que expressasse exatamente a mesma coisa. Não me ocorreu nenhuma, naquele momento. Portanto, se desengostada não existia, poderia passar a existir para preencher uma lacuna. Com a vantagem de ter um som compatível com a língua que falamos no Brasil.

Resolvi fazer um teste. Eu era repórter especial da então recém-lançada revista Época. Naquele momento, outubro de 1998, dedicava-me a uma matéria sobre o trabalho nos canaviais do interior paulista. Dei um jeito de inserir no texto a palavra desengostada, não sem antes preparar o contexto, para que ela se apresentasse ao leitor de forma natural e autoexplicativa. Achei que não ia dar certo, mas tive uma surpresa. A palavra espúria passou pelo crivo de uma meia dúzia de profissionais da redação, entre revisores, preparadores de texto e o próprio editor. Escapou até do olhar clínico e minucioso do nosso diretor, José Roberto Nassar, e foi publicada na revista.

Entre triunfante e envergonhado, amoitei-me. O sucesso dessa molecagem, embora eu fosse um quarentão, nada ficou devendo ao prazer que sentíamos na infância ao disparar pela calçada após apertar a campainha das casas. Mas a experiência foi além de um simples divertimento. Ela confirmava aquilo que me interessava confirmar: para uma palavra funcionar bem, não precisa estar no dicionário, mas sim em sintonia com o espírito da língua.

Em Viagem ao pavio da vela, senti-me tentado a empregar uma série de palavras inventadas que me ocorriam de repente, sem compromisso com nada, como ocorrem as coisas na cabeça das crianças. E também outros termos de antanho que passaram a saltar fora do baú da memória, como o jargão da época em que jogávamos bolinhas de gude no chão de terra da Praça Tamandaré. Também garimpei no português lusitano alguns termos sugestivos, engraçados, muitas vezes arcaicos, sem me preocupar se estivessem em desuso até mesmo em Portugal.

Eu queria produzir um livro que tivesse timbres internos específicos, a começar pela estranheza de algumas palavras, mas uma estranheza sugestiva, muito bem calculada, que no ato da leitura pudesse ser associada a certa situação. Meu desejo era propiciar ao leitor algo semelhante à sensação de osmose que tive ao ouvir de minha filha a palavra desengostada, depois usada na revista, onde a osmose prosseguiu, suponho.

No livro que eu tinha em mente escrever, o leitor não deveria estar, o tempo todo, na dependência do exato significado de cada uma das palavras escritas. A melodia também tem a sua graça. Na adolescência, às voltas com as primeiras canções dos Beatles, eu me comprazia em ouvi-las sem entender bulhufas. Assimilava os versos não como palavras, mas como extensões da música. Em Viagem ao pavio da vela, escrevi muitas frases como se fossem sequências de acordes. Um jeito de bancar o músico que nunca fui, mas para o bem da música, sem dúvida alguma.

 Além desse jogo de sonoridades, outros fatores colaboraram para tornar esse projeto uma empreitada envolvente e, por vezes, divertida. Tive que ler e pesquisar muito sobre Veneza, seus caminhos, seus atalhos, seus recantos escondidos, seus grandes e pequenos lábios. Com a meticulosidade de um ginecologista, concentrei minha atenção sobre essa cidade lúbrica e lasciva. “Úmida vulva da Europa”, disse dela o renomado poeta. E se aqui tomo a liberdade de evocar Apollinaire, não posso esquecer o nosso insigne Carlos Zéfiro, autor dos breves e abrasadores “catecismos” eróticos que nos eram discretamente franqueados nas barbearias. Se ele houvesse vivido em Veneza, imagino, teria criado a Divina Comédia da pornografia universal.

Pesquisei sobre Veneza de modo obsessivo. A certa altura, ao andar pelas ruas de São Paulo, passei a deparar, aqui e acolá, com os principais elementos evocativos da cidade. O leão alado, as gôndolas, a ponte do Rialto, vistas da Piazza San Marco, do Grande Canal, cristais de Murano, nomes como Ca'd'Oro e outros desse tipo. Isso acontecia de maneira repetida e repentina. Nas situações mais improváveis, pronto, lá estava Veneza, de novo, a me chamar de volta para ela.

Era como a sensação do déjà-vu. Com uma vantagem: mesmo sendo imprevista, era também permanente. Tinha, por assim dizer, uma base real. Veneza surgia a todo momento, incrustada em São Paulo, em uma fachada comercial, um anúncio, um logotipo, uma embalagem, uma etiqueta, enfim, em algo concreto que estava diante de mim e continuaria na lembrança como uma nostalgia, sem a fugacidade do déjà-vu.

O fenômeno devia ter algum nome na psicologia, mas esse lado da coisa não me importava muito. O máximo que eu conseguia imaginar, por beber muito em Jung, naquela época, era algum mecanismo de sincronicidade. Mas isso também era secundário. A verdade é que aqueles pequenos sustos me divertiam, me estimulavam, como se indicassem um caminho. E esse caminho apontava para Veneza.

Planejei com bastante antecedência uma viagem familiar à Itália. Consegui negociar por fax, sim, o neolítico fax, preços aceitáveis com o dono da minha já conhecida Locanda Remedio, em Veneza, para lá passarmos o então chamado “réveillon do milênio”. Empenhei nisso, para o meu bolso, uma grana preta. Se tivesse juízo, deveria ter destinado esse dinheiro à aquisição do imóvel residencial que eu ainda não tinha, ao contrário dos meus amigos, e já estava mais do que na hora de cuidar disso. Mas o chamado de Veneza soou mais alto que o bom senso. Na outra virada de milênio, seria tarde demais.

Olhando em retrospecto, nem acho que fiz besteira. Foi grande minha satisfação pessoal em poder levar minha filha, aos seis anos de idade, a uma cidade que é como uma versão real da fantasia humana. Levando-a a Veneza, quem sabe, me penitenciei pelo crime hediondo de jamais me dispor a tirar do bolso nem um mísero dólar furado para enviá-la à Disneylândia, tal como costuma fazer a classe média à qual pertenço, sem emoção. 

Eu sabia muito bem que Laura, com aquela pouca idade, não poderia compreender o que significava estar em Veneza, e não em outro lugar, em plena virada do milênio, para celebrar a passagem do tempo em uma cidade que está acima do tempo. Acreditava, porém, que a simples visão das cascatas luminosas sobre as águas do Canal Grande haveria de render um desses flashes que permanecem na memória para toda a vida.  

As crianças de 1910 viram no céu o cometa Halley. Em Itabira, um menino que por acaso se chamava Carlos Drummond de Andrade mais tarde recordaria aquilo como sendo “uma escultura de luz, esguia e estelar, que fosforeja sobre a infância inteira”. Talvez algo desse tipo seja mais relevante, a longo prazo, do que a lembrança das orelhas do Mickey. Com todo o respeito.

Mas minto, minto em prosa e verso, e sem a maestria de Drummond, se eu disser que fui a Veneza por causa de minha filha. Fui então por minha causa? Bem, também isso não seria exato. Fui a Veneza por causa de Veneza. E posso dizer isso melhor ainda: fui pela causa de Veneza.  Sim, uma causa, um empreendimento devocional, o ato voluntário de alguém que dedica seus esforços a algo acima de si próprio, que não tem nome, nem deve tê-lo.

Traduzir Veneza em palavras, inventando palavras intraduzíveis, já que não sou capaz de compor uma sinfonia, tornou-se para mim uma espécie de missão. Eu me sentiria em falta com o próprio ofício da escrita se passasse a vida a escrever sobre cidades (e foi o que fiz, no fim das contas) sem dedicar um livro à mais fantástica de todas elas.

 No entanto, como pesquisa de campo, Veneza foi um furo n’água. Encontrei muito pouco sobre Marco Polo no acervo da biblioteca local. Obviedades. O material que eu já havia captado antes, em São Paulo, dava de dez no que consegui por lá. Os funcionários nem sabiam me dizer ao certo onde ficava a casa de Marco Polo.

O pessoal do serviço de turismo tampouco parecia muito sintonizado com o tema:  < Ah, sim, Marco Polo... > Ele mesmo. < Vejamos... Marco Polo... Marco Polo... > Algum problema com ele? < Não, absolutamente. > Ótimo. < Preste atenção, o senhor vai por aqui, dobra ali, atravessa a ponte, dobra à esquerda, aí tem outra ponte... > Calma, essa outra ponte... < Essa, o senhor não atravessa. > Ok, não atravesso. < Vira à esquerda e segue em frente. > Sigo em frente. < Aí vai ver uma tabacaria. > Uma tabacaria. < Sim, uma tabacaria bem em frente à ponte. Outra ponte. > Entendi. < Ali o senhor pergunta. > Na ponte ou na tabacaria? < Na tabacaria. > Mas pergunto o que nessa tabacaria? < Ora, o senhor pergunta onde fica a casa de Marco Polo. Não é isso o que o senhor quer saber?

Enveredei por uma sequência de pontes, pórticos e canais, tentando achar o caminho certo entre as complicadas reentrâncias de Veneza. A “vulva úmida da Europa” agora me dava uma canseira. Acabei por chegar aonde queria. Porém ali, onde esperava encontrar um museu, um memorial, coisa que o valha, deparei com um prédio de fachada em estado lastimável, com sacos de lixo empilhados à frente. Com a breca! Então aquela era a casa que teria sido de Marco Polo.

Minha decepção haveria de ser compensada, mais tarde, com uma bela surpresa. Ela ocorreu justamente no interior do estabelecimento em que estávamos instalados. A Locanda Remedio era um hotel três estrelas bastante charmoso, mas não sofisticado, nas imediações do palácio ducal. Ocupava um prédio histórico recheado de tapetes e móveis de época que despertavam interesse, mesmo estando um pouco desgastados pelo tempo. Além da ótima localização, poucos minutos a pé da Piazza San Marco, tinha preços mais ou menos acessíveis, talvez por conta de sua decadência, mesmo com classe, como é comum na Itália.

Eu curtia isso. Já havia me hospedado ali antes. Dessa vez, porém, o que me chamou a atenção foi a figura compenetrada do porteiro noturno. Nas horas tranquilas, depois da meia-noite, o rapaz não tirava os olhos de uma brochura com texto corrido que nada tinha a ver, aparentemente, com o serviço na portaria do hotel.

Puxei assunto com ele, meio como quem não quer nada, tal como aprendi em tantos anos de trabalho no jornalismo. Fiquei sabendo que o rapaz era ator. Trabalhava à noite, no hotel, porque naquele período tinha sossego para estudar os textos de seus trabalhos no palco. Conversa vai, conversa vem, descobri que, anos antes, em uma série televisiva, ele já havia interpretado... quem mesmo? Marco Polo!

Bah! Aquilo me caía do céu, de graça! Sim, o porteiro noturno da Locanda Remedio tinha muito a me dizer sobre seu personagem, que seria também o protagonista de meu livro. E mais que isso: esse ator era um especialista em Veneza. Era capaz de comentar qualquer um dos muitos filmes rodados na cidade. Conhecia o toque dos sinos de cada uma das igrejas. Em suma, sem precisar nem sair do hotel, eu havia encontrado o meu Marco Polo. Em carne e osso.

Entre nós logo se estabeleceu uma camaradagem. Ele queria saber do Brasil. E eu, claro, de Veneza. Conversamos bastante, em diversas noites, sempre ali, na portaria do hotel, durante as primeiras horas da madrugada. Essa circunstância inesperada forneceu-me a base narrativa para o romance que eu pretendia escrever.

Não por acaso, o título provisório do livro chegou a ser Diálogos com Marco Polo, que virou subtítulo, após eu consultar a opinião de amigos. O título definitivo, Viagem ao pavio da vela, pareceu-me mais instigante e, sobretudo, mais adequado. Contém uma alusão direta ao fato de que as noites, sejam elas mil e uma ou meia dúzia, são sempre propícias à conversação.

E tem outra. Uma vela é algo que me encanta. Conquanto seja hoje um objeto banal, barato, relegado às prateleiras inferiores nos supermercados, vejo-o como um símbolo da inteligência humana. Pergunto-me quem teria tido esse lampejo, na mais profunda escuridão dos tempos, que resultou num artefato para manter a chama em suspensão, com segurança e portabilidade, por um período de tempo muito maior que o fogo levaria para queimar um barbante, se não fosse contido pelo próprio suporte: apenas um cilindro de cera.

A cera é o material perfeito, nesse caso. Firme como o mármore, sem ser duro, mas não tão mole quanto a manteiga, que amolece ao sol. A cera deixa-se consumir pelo fogo, como convém, mas lhe impõe seu ritmo. Em geral, ocorre o contrário. O fogo devora. A cera consegue refreá-lo, derretendo de uma maneira calma, progressiva, a ponto de nos permitir marcar o tempo, como a areia da ampulheta. A vela é tão genial que nos parece óbvia.

Em meados do século passado, em minha cidade, no Sul, frequentes e prolongados cortes de energia impunham às famílias de todas as classes sociais uma intensa convivência com velas acesas. De súbito, todos nós, papa-areias, nos transformávamos em habitantes das cavernas. À nossa volta, apenas trevas, monstros, vampiros. Até que alguém riscava um fósforo.

À luz da vela, eu podia perceber muito bem, como criança, que os adultos falavam e agiam de outro modo, um modo mais macio e reflexivo. Diziam coisas que talvez não se permitissem dizer, caso as lâmpadas estivessem acesas. Eu ouvia essas coisas até certo ponto. Depois me deixava hipnotizar pela chama da vela, sua base azul, o tênue e instável halo marrom, a ponta amarela e imóvel que de repente tremia, como o cão se coça. Aquilo, para mim, era um enigma.

Ainda hoje acendo velas. É mais emocionante, convenhamos, riscar um fósforo do que digitar uma senha, por exemplo. Mas não é por isso que acendo velas, e ainda bem, devo dizer, até porque em nenhum hospício me permitiriam continuar a fazê-lo. Também não é por uma razão mística. Sou agnóstico, um sujeito que aprecia a incerteza como fonte de inspiração. Não aposto nem descarto que possa haver uma forma de consciência muito superior à nossa, sem neurônios, mas apta a estabelecer sinapses, e capaz de se manifestar em objetos que para nós têm grande carga simbólica, como é o caso de uma vela acesa. Ela resume o segredo da obra-prima: um pensamento complexo expresso de maneira simples. Vinte anos atrás, achei (ainda acho) que Viagem ao pavio da vela era um bom título para um livro ambientado em Veneza.

O romance foi publicado no começo de dezembro de 2001. Um conhecido meu, psiquiatra argentino radicado no Rio de Janeiro, me disse que a parte introdutória de Viagem ao pavio da vela, no entender dele, descrevia uma autêntica viagem com LSD. O comentário me causou grande satisfação. Era esse, de fato, o efeito literário que eu havia pretendido obter como ponto de partida da narrativa.

Para escrever o prelúdio, embaralhei um conjunto de sensações e imagens subjetivas para depois, com paciência de ourives, reorganizá-lo de outra forma. O aparente delírio da prosa deveria sugerir um excesso de lucidez. Precisei trabalhar duro para conseguir isso. Eu não tinha na época, como não tenho até hoje (por precaução, não por falta de interesse), uma experiência real com o LSD. Apenas suspeito, às vezes, que minha práxis literária possa ter certo viés lisérgico. De onde saiu isso, fico devendo.

No ano seguinte, 2002, tive a satisfação de assistir a um ator interpretar esse pequeno texto de abertura em um programa televisivo, ao qual me convidaram para falar sobre o livro. Ele o fez de forma magistral. Obteve ali tal intensidade que, ao vê-lo recitar o trabalhoso prelúdio, achei pueril pensar em mim mesmo como sendo o autor daquilo. Senti apenas que nós dois, o ator e eu, em nossos tão diferentes ofícios, éramos os porta-vozes de uma mesma coisa que precisava ser dita.

O livro foi um fracasso comercial. Mas algumas resenhas esparsas exaltaram suas qualidades. Um crítico chegou a qualificar Viagem ao pavio da vela como uma “pequena obra-prima”. Bem, devagar com o andor. Obra-prima é Guerra e paz – y algunas cositas más. Eu não ousaria supor que escrevo nesse nível nem mesmo se estivesse embriagado com o melhor vinho do mundo, ou chapado, vá lá, com o ácido mais esfuziante que inventarem por aí. Disso, tenho certeza. O elogio não me convenceu, mas me consolou. Confete é serotonina. Se não serve à verdade, há de servir à vaidade.

Se nunca escrevi uma obra-prima, algumas vezes tive a sensação de tê-lo feito. Refiro-me ao processo, não ao produto. Em qualquer atividade, talvez se possa experimentar algo parecido a colocar o ponto final em Guerra e Paz ou dar a última pincelada na Mona Lisa. A sensação da obra-prima se oferece a nós quando sentimos ter chegado ao limite da nossa capacidade, sem recuar um milímetro, correndo os riscos necessários, e a solidão sempre à nossa espreita. Não é fácil renunciar ao caminho mais fácil.

Levar adiante esse projeto foi uma experiência ímpar. O livro, em si, não é uma obra-prima. Mas resultou de uma obra-prima, ou seja, seu próprio processo de criação, durante o qual um escritor sem fins lucrativos logrou atingir o seu limite. Entre os livros que me atrevi a publicar, descontando os que lamento ter publicado, Viagem ao pavio da vela é aquele que eu desejaria que fosse apreciado por futuros leitores, mesmo a conta-gotas, como sempre tem sido.

Essa de “futuros leitores”, claro, pode ser uma furada. Ninguém sabe se ainda haverá leitores de livros daqui a três ou quatro décadas. Em 2061, digamos, quando o cometa Halley voltar a se tornar visível para os habitantes da Terra, a literatura já poderá ter se tornado invisível, como a filatelia. E Veneza, uma cidade submersa.