sábado, 23 de fevereiro de 2008

A VIDA COMO ELA NÃO É

Duas moças conversam:
> ‘Tou com um poblema.
< ‘Peraí, um poblema ou um pobrema?
> Não é a mesma coisa?
< Não. Poblema é de matemática, ensinam na escola. Pobrema é em casa. O marido bebe, bate na gente...

Contaram-me isso como fato verídico, mas tem jeito de piada. Pouco importa. Nesse diálogo, nada inverossímil, alguém verá o retrato tragicômico de uma população iletrada. Pode ser. Mas não é tudo. Há também algo de genial nessa cena. Perspicácia e sutileza se juntam, na contramão da gramática, para expressar um fino discernimento.

A segunda moça a falar nos diz, a seu modo, que as questões abstratas tratadas no mundo culto (poblemas) nada têm a ver com nossos dramas cotidianos (pobremas). Exigem, portanto, palavras diferentes. Seria uma generalização grosseira colocar esses dois conceitos sob o mesmo guarda-chuva, a palavra oficial, problema.

A intimidade com a vida real revela nuances e, claro, estimula a diversidade semântica. Povos berberes, por conta de sua imemorial convivência com o camelo, dão nomes distintos a cada pata do animal. É assim que funciona. Pouco importa se essa diversidade semântica, de início, se expresse por infrações à gramática. Deturpações e corruptelas com o tempo são assimiladas, se fizerem sentido.

< ‘Peraí, poblema ou pobrema?
Eis a questão. Se aprendêssemos a perceber essa diferença, talvez fôssemos mais felizes. Muitas das coisas que nos atormentam existem apenas no plano imaginário, como era, para os homens da Idade Média, a iminência do fim do mundo. Um mero poblema. Sem lastro no cotidiano.

A crucial diferença entre poblema e pobrema talvez venha a ser definida de maneira clara nas páginas do Houaiss ou do Aurélio. Isso num dia distante do futuro, quando o vocábulo-raiz, problema, cair em desuso. Só será lembrado em afetados textos jurídicos e, outrossim, na bula da pomada Minâncora.

Pode acontecer, por que não? Menos provável, no entanto, será que os burocratas da língua desistam dessa idéia de uniformizar o português falado por gente de diferentes climas e fusos horários. Não seremos nós, tropicais açodados, a convencer os lusos a abrir mão do agá na palavra húmido. Reforma ortográfica boa, mesmo, é quando começa no bairro. Pena que os burocratas não prestem atenção no que as moças dizem. Esse é o pobrema.

8 comentários:

Maria da Graça disse...

Carissimo Renato,
Agradeço por fazer-nos sentir que as palavras passam muito mais pelos afetos que poderíamos suspeitar!!Passam certamente pelo coração e pela possibilidade de vive-las no mais real,as vezes sórdido outras delicadamente e doces.

Anônimo disse...

Muito bom, parabéns, precisamos mesmo ter na língua portuguesa mais opções para "problema". Duas já estão aí, poblema e pobrema. a voz do povo é a voz de Deus.
Carlos Carrion

Unknown disse...

Ri muito com a tua frase final. E eu diria que esse é mesmo um grande "pobrema"!!!!!
Lica

Unknown disse...

Renato,
No momento o "pobrema" maior é não conseguir discordar de teus argumentos.A sutileza vocabular usada na periferia é insuperável.
Será que nos submeteremos às imposições dos burocratas? Não creio.
Até hoje não consigo o termo "estória",é um pobrema.

Anônimo disse...

Olá Renato!
Voltamos a contar uma velha estória que relata uma história e o probrema, que virou pobrema e era um problema agora tem três significados (fazem uns 20 anos, pelo menos).
Entre a matemática, o português e o literalmente problema em si, acho que todos estão certos.
Maior problema é definirmos o qual deles nos preocupa de fato.
Muito boa lembrança e obrigada por não me esquecer.
Beijos,
Miriam

Antonio Dalmi disse...

Me perdoem os doutos da gramática, mas eu sonho com a escrita fonética, onde o som “ésse" só se escreva “s” sem opções “ç”, “x” ou “ss”, onde o “zê” seja só “z” e por aí vai. Inspirado no espanhol? E daí? Bem vindas todas as boas idéias. O que interessa é universalizar a escrita correta, para além da esfera dos iniciados. O ensino poderá então ser mais focado em se falar corretamente, pois a escrita seria muito mais fácil. Aí, poderíamos chegar a falar apenas “problema” em todos os locais do Brasil, sem exigir do Houaiss o registro de todas as criações regionais que ocorrem por falta de correta referência. Aliás, ajudaria muito se pudéssemos contar com as novelas da TV.

Rene Santana disse...

Renato
Acho que não concordo com você. Há que se ter um cuidado em manter a língua coesa, caso contrário, cada tribo acabará tendo uma língua própria. É a síndrome da Torre de Babel. Considero o trabalho do marquês de Pombal importante para manter a unicidade do idioma no Brasil. Não vejo em que a criação dinâmica de novas líguas ajudaria no entendimento entre os homens. Esse assunto dfá uma boa discussão.
Abs
René Santana

Anônimo disse...

Caro amigo Renato: comparando suas duas últimas crônicas encontro uma incongruência.Na atual vc fala que a reforma ortográfica deve começar pelo bairro, ou seja, poblema, pobrema, nós vai, e assim por diante, deveriam ser acolhidos pelos dicionaristas. Na anterior vc se lamenta da falta de cultura e do baixo nível dos estudantes atuais. Afinal, amigo, o que vc propõe : o nivelamento por baixo? Varrer o lixo para baixo do tapete? Quem ,por Deus, defenderá a "última flor do Latio"
Beijos
Adélia
PS - a frase que vc atribui a Rui Barbosa é de Aristóteles.