terça-feira, 29 de dezembro de 2020

VAFFANCULO, 2020!

 


Como vocês, estou com a mão na maçaneta de 2021. Na outra mão, tenho um livro que chegou até mim – não recordo como – lá pelos idos de 1980. Surpreende-me que tenha sobrevivido aos tantos expurgos que fui obrigado a perpetrar em minha biblioteca ao mudar de residência. Seu título é Trans-Pacific Express. Trata-se de uma coletânea de relatos de viagem a diferentes países do Oriente, que algumas vezes citei a meus antigos alunos de jornalismo. Seu autor é Alberto Arbasino, renomado escritor e ensaísta italiano falecido aos 90 anos (mas não da covid) no último no último mês de março, quando a pandemia devastava Milão e descortinava este dantesco 2020.

Como sou um leitor de má memória, é curioso não ter esquecido, em quase quatro décadas, certa observação pontual de Arbasino sobre o comportamento dos australianos. Ele diz que as pessoas, na Austrália, sobretudo em ambientes abertos, costumam conversar mantendo entre si uma distância muito maior do que os europeus. Até dois metros, avalia Arbasino, mesmo no caso de conhecidos ou amigos que se encontram na rua.

Nunca fui à Austrália. Portanto, nunca tive chance de checar, por mim mesmo, se esse detalhe tão bem captado por um jornalista arguto corresponde mesmo a um hábito generalizado. No entanto, pude confirmá-lo pelo relato de uma querida amiga australiana que vive em São Paulo há quarenta anos, com visitas ao país de origem em intervalos de três ou quatro anos. Certa vez, após retornar da Austrália, contou-me que o pessoal por lá reclamara do fato de que ela estava “pegajosa” demais. Ao conversar com familiares e amigos, se mantinha próxima demais deles e os tocava de um jeito incomum, nela, antes de ter vindo morar no Brasil.

Parece-me plausível. Nós, brasileiros, somos mesmo “pegajosos”. Nossa tendência natural é conversar na praia, no parque, como se estivéssemos espremidos no elevador. Entre os povos do mundo, talvez estejamos entre aqueles que encontram maior dificuldade em respeitar o distanciamento social, para usar essa expressão da moda, hoje tão necessário que poderíamos chamá-lo de distanciamento vital. E isso não se deve apenas à negligência, apesar de essa ser outra especialidade nossa. Antes, pelo impulso primário em tocar o corpo do interlocutor, como para autenticar as palavras ditas. Os italianos o fazem com seus gestos operísticos; os budistas, com seu olhar sereno. Nós, com nosso jeito pegajoso, grudento, que atinge o ápice no carnaval.

No ócio desta quarentena, tento imaginar a explosão de protestos que teria estremecido o Brasil se algum dos nossos governantes houvesse tido a ideia de suspender o carnaval de 2020, como ocorrerá em 2021. Vale lembrar que no verão passado, com base nas notícias internacionais, já se podia ter como favas contadas que a covid logo nos atingiria em cheio. Pois bem, um político que tivesse tido peito de tomar essa atitude extrema, suspender o carnaval, teria poupado a vida de muita gente. Menos a dele próprio. Caso não fosse linchado, seria um suicídio político. Não queremos mais saber de tiranos. A ditadura é a lógica do dragão. A democracia é a lógica da boiada. Nós, brasileiros, ficamos com a segunda opção. Doa em quem doer.

Está doendo em nós mesmos. Agora, no final de dezembro, com a mão na maçaneta, sabemos muito bem como foi este impensável ano de 2020. Ele quase parece ficcional quando acordamos de manhã sem saber se ainda tem leite na geladeira e, caso negativo, se valeria a pena correr o risco de ir até a padaria. Sim, a padaria da esquina, local sagrado, democrático, último reduto do perfume do cotidiano, tão nutritivo quanto o próprio pão. Houve um tempo em que, ao ir até a padaria, não hesitávamos em tocar no ombro e até beijar a bochecha de pessoas conhecidas, mesmo que fosse um vizinho sem nome do andar de cima que algum dia nos emprestou um alicate. Será que tem alguma graça ir até a padaria usando máscara, em atitude esquiva e temerosa? 

Para que falar deste ano, se todos sabemos como ele foi, se o vivemos de cabo a rabo que nem uma boiada no curral? Ocupo-me em imaginar como será 2020 no futuro, visto pelo espelho retrovisor, quando as novas gerações o estudarem nos textos de história. Na minha infância, no Sul, os coroas se referiam com reverência a 1912 (a tragédia do Titanic) ou a 1941 (a grande enchente que transformou nossa cidade numa outra Veneza) como cifras carregadas de um significado marcante não só no mundo externo, mas na alma de cada um.

Hoje, quando vejo uma foto antiga em que aparece um carro com aquele trambolho na traseira, sei que ela foi feita durante a Segunda Guerra. O gasogênio é a marca de uma época. Talvez também seja assim quando nossos descendentes virem imagens atuais com pessoas usando máscaras dentro da padaria, ou melhor, dentro da pandemia. Não sabemos, em suma, se o ano prestes a terminar representará um ciclo momentâneo ou uma mudança de padrão, o começo de algo que não sabemos bem o que seja.

O ano de 1972, quando ativistas palestinos massacraram onze atletas olímpicos israelenses, talvez hoje nos parecesse mais sinistro se persistisse como isolado, tal como o naufrágio do Titanic. Não foi bem assim. Desde então, o terrorismo se alastrou como a gripe e entrou na agenda do mundo. Quem recorda a tragédia de setembro daquele ano na vila olímpica de Munique? Aquilo não passa uma travessura de moleques se comparada ao que haveria de ocorrer em 2001, quando outra safra de terroristas, gente que em 1972 ainda tomava mamadeira, foi capaz de destroçar as torres gêmeas em Nova York. Nem Hitler teria imaginado algo tão espetacular.

Como será 2020, o ano da pandemia, quando pensarmos nele, no futuro, ao deparar no fundo da gaveta com uma máscara comida pelas traças?  Na nossa memória, um ano só ganha forma definitiva depois que esfria, como um cuscuz. Enquanto ainda estamos na contagem regressiva para o ano-novo, nossa vontade é de fazer coro com os italianos nesse vídeo divertido que navega na nuvem: “Vaffanculo, 2020!”

Se as pandemias tiverem vindo para ficar, como aconteceu com o terrorismo, meio século atrás, estaremos mais treinados para nos defender. Aliás, já estamos, suponho. Como resultado paralelo das medidas de proteção que adotamos contra o coronavírus, é provável que, sem saber, tenhamos nos livrado de outras moléstias que também poderiam ter nos infernizado a vida. Acho que pode estar em curso, a duras penas, um avanço na saúde pública. Pequeno exemplo. Com ou sem a covid, vale a pena incorporar o hábito de não usar, dentro de casa, a mesma roupa e os mesmos sapatos com que chegamos da rua. A gente se acostuma. Escovar os dentes deve ter parecido uma extravagância aos olhos de nossos ancestrais mais remotos. Quase posso ouvi-los dar risadas. Risadas vazias de gente desdentada.

 Também podemos rir bastante, hoje, se imaginarmos que os foliões brasileiros pós-2020 se disponham a pular um carnaval sem pegação, que para muitos seria o mesmo que tomar cerveja quente. Basta que as pessoas mantenham entre si, nos bailes e nos blocos de rua, a área livre que se observa ao redor de cada integrante  das escolas de samba em desfiles oficiais.

Ora, direis, ouvir estrelas! E por que não? A pandemia de 2020 estava escrita nas estrelas enquanto pulávamos o último carnaval, com a nossa velha convicção de que Deus é brasileiro. Mas e se Deus for australiano? Calma. Não quero dizer com isso que os foliões brasileiros devam pular como cangurus nos futuros carnavais. Não ponham em minha boca coisas que eu não disse. O que quero dizer, isso sim, é que não seria má ideia cultivar o distanciamento social, na folia ou na padaria, como fazem os australianos ao conversar na rua, tal como observou Arbasino com seu olho clínico de jornalista.

Se a pandemia arrefecer, toda essa desgraça vai para a conta do ano de 2020, que se tornará uma cifra funesta. Se bobear, os marqueteiros de algum grande clube europeu vão inventar de banir número 20 da numeração das camisas do time, como fizeram os americanos com o andar 13 em alguns prédios. Basta o Barcelona ou o Liverpool lançarem a moda, e ela no dia seguinte chegará ao Ferrari e ao Liberal de São José do Norte, e dali para o Cocuruto e Bujuru, já nos areais do interior do município. A imitação é a única pandemia que jamais terá fim sobre a face da Terra.

A covid azedou 2020, mas não emplaca 2021. É o meu palpite, apenas isso. Prefiro pensar que aprendemos um monte de coisas sobre nós próprios, sobretudo, ao longo deste ano que chega ao fim. Todo aprendizado importante é duro, ácido, escorregadio, ainda mais quando feito às pressas, diante do perigo. Parece que não funciona, mesmo quando já funciona. O que fizemos durante este ano de 2020 foi aprender a enfrentar um inimigo que não é invencível, apenas invisível. Já sabemos que ele nos espreita no brilho da maçaneta da porta. Que vaffanculo!

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

UMA NOVA EXPERIÊNCIA DE LEITURA

                    Uma das boas coisas da quarentena, para mim, foi a iniciação no mundo dos e-books. Se isso não aconteceu antes, não foi por preconceito, mas por preguiça, e quem sabe também por algum receio de pular a cerca em relação aos livros impressos, fiéis companheiros de uma vida inteira. Uma bobagem, claro, mas o tempo nos ensina a respeitar certas bobagens.

Durante o inverno, ainda no primeiro pico da pandemia em São Paulo, sem chance de frequentar livrarias físicas para me inebriar com o perfume das pilhas de livros novos, afinal me dispus a providenciar um dispositivo eletrônico de leitura. Comprei pela internet. Chegou rápido, quase como uma pizza.

Mas demorei um pouco a decidir qual seria meu primeiro e-book. Depois de zapear pelas memórias de Churchill, que a plataforma disponibiliza parcialmente como degustação, sem custo, achei que a ocasião pedia um autor contemporâneo. Um jovem, mesmo sem o pedigree de Churchill, me parecia mais sintonizado com o upgrade tecnológico que estava prestes a ocorrer na quarentena de um aposentado do INSS.

> O que é isso, sr. Modernell? O senhor até que nem está tão velho assim...

Obrigado, mas vamos deixar esse assunto para outra ocasião. Agora estamos tratando da chegada do e-book na vida de um homem bastante rodado, e não do quanto esse homem possa estar mais ou menos próximo da vida eterna. Enquanto estamos por aqui, nunca é tarde para dar uma refrescada em nossos hábitos de leitura. Decidi estrear como leitor digital focando minha atenção em um autor com cuja obra eu nunca tivesse tido contato antes.  

Escolhi A ilha da infância, terceiro livro da série autobiográfica do norueguês Karl Ove Knausgård, um dos expoentes da chamada autoficção, gênero de escrita que tem estado em alta nos últimos tempos. Foi uma escolha acertada. Mais que isso, gratificante. Knausgård é, de fato, um autor que sabe escrever tanto nas linhas quanto nas entrelinhas, assim como se dizia que Tostão sabia jogar com a bola e também sem ela.

Gostei tanto da prosa solta de Knausgård, que na sequência inclui outro livro dele, A descoberta da escrita, o quinto da série, no conjunto de leituras que me apressei em programar para a primavera, quando a curva da pandemia começou a se achatar. Os demais livros da primeira leva foram A jangada de pedra, de José Saramago (já andava com saudades de sua sintaxe lusamente sinuosa); O museu da inocência, do turco Ohran Pamuk (do qual leio tudo o que sai); Sobre os ossos dos mortos, da polonesa Olga Tokarczuk; e Noturnos – Histórias de música e anoitecer, do japonês Kazuo Ishiguro. Mais tarde me dei conta de que esses quatro últimos autores são, todos eles, vencedores do Nobel de Literatura, mas esse não foi um critério de escolha, apenas uma coincidência.

< Coincidência, sr. Modernell? Ah, não venha com essa!

Juro. Coincidência pura. Mesmo que Knausgård também venha a abiscoitar o seu Nobel daqui a alguns anos, o que considero provável, mesmo assim continuará a ser uma coincidência, repito, o fato de eu ter selecionado esses autores tão estrelados. Não acho que o Prêmio Nobel, ou qualquer outro, seja um selo de qualidade para o autor premiado, e menos ainda, claro, um demérito para os preteridos. Basta lembrar o caso clássico de Borges para colocar em xeque os critérios de concessão dessa honraria que os escandinavos sempre teimaram em lhe negar. Mas não era disso que eu queria falar aqui. O tema destas adjazzcências é o e-book ou, mais precisamente, o impacto que ele provocou em meus hábitos de leitura, tão drástico quanto as mudanças que a própria pandemia veio a causar no dia a dia de todos nós.

A primeira coisa que me seduziu nesse novo suporte de leitura foi a comodidade. Pode-se ler ao ar livre, sob a luz do sol, ou no meio da noite, se for o caso, sem acender a lâmpada de cabeceira, pois a tela se ajusta automaticamente a qualquer situação. É possível também determinar o tamanho da letra e diversos outros parâmetros de design gráfico, além de brilho e contraste, de modo que a leitura se torna muito menos cansativa do que em um livro impresso, ao menos para olhos já meio castigados pelo correr dos anos.

Porém a maior vantagem do dispositivo, a meu ver, está na portabilidade. No café da manhã, no banheiro, no elevador, no ônibus, na fila do supermercado, em qualquer situação fragmentada do cotidiano é possível acrescentar algumas páginas à leitura em andamento. Isso reforça uma sensação de continuidade, como se o texto jamais nos abandonasse, e a vida real, essa sim, se mostrasse entrecortada, às vezes até secundária, o que não é de todo ruim quando se é obrigado a ficar de quarentena.

A tela do aparelhinho indica a mesma página do livro em versão impressa e também a posição do trecho lido em determinado momento. Essas duas grandezas diferem, evidentemente, em um sistema que permite ao leitor alterar a diagramação. Bem, até aí morreu Neves, alguém dirá, prestando singela homenagem à memória de Nélson Rodrigues, que consagrou o dito.  É verdade, reconheço. Todos sabemos que qualquer publicação que se preze, desde a Bíblia até o manual da máquina de lavar, traz as páginas numeradas.  Sim, morreu Neves. Acontece que eu ainda não disse o mais importante: além das páginas e posições, no leitor de e-books é possível ativar o registro do percentual de leitura já realizada até o momento, ou seja, o quanto do livro já ficou para trás.

Esse pequeno recurso tecnológico me motivou a tentar uma nova experiência: ler ao mesmo tempo, e não um depois do outros, os cinco livros selecionados. Estabeleci a cota de 10% (cravados) de cada um deles em cada dia da semana, de segunda a sexta. Desse modo, a leitura avançaria de forma emparelhada, independentemente do tamanho e da divisão interna dos textos. A empreitada deveria estar concluída, portanto, em dez semanas. A programação semanal ficou assim: segunda-feira, 33 páginas de Saramago; terça, 62 de Knausgård; quarta, dia de feijoada, 25 de Tokarczuk; quinta, 56 de Pamuk; e sexta, 21 de Ishiguro. Era quase uma brincadeira. Mas levei a sério. Outra coisa que a gente aprende por aí é que certas brincadeiras, levadas a sério, se tornam mais divertidas.

Ao longo dessas dez semanas de primavera, esse esquema de leitura paralela me propiciou estabelecer conexões entre os cinco livros que, imagino, não teriam ocorrido se eu os tivesse lido, como de hábito, do modo aleatório e ocasional, só quando me dá vontade, e tudo bem. Peguei gosto por uma outra coisa, uma dinâmica de leitura, uma sincronia de atmosferas, algo que está além do enredo e das frases do texto.

Posso me explicar melhor fazendo um paralelo com a música. Se eu houvesse lido esses mesmos livros de forma estanque e sequencial, teria ouvido solos de cinco instrumentos diferentes, um de cada vez. Poderia apreciá-los como se o resto não existisse, já que essa é a prerrogativa natural de uma obra de arte. Lê-los dentro de uma escala “interativa”, digamos assim, foi ouvi-los tocar juntos como em um conjunto de música de câmara.

Recomendo uma experiência assim, ou semelhante, a quem deseja se aprimorar na escrita. A comparação quase imediata entre um punhado de autores evidencia seus truques e estratégias. Sei que nem todo mundo está interessado nisso. No entanto, mesmo a leitura de fruição pode ganhar outra dimensão com essas facilidades propiciadas pelo formato e-book. Pode-se ler, por exemplo, cinco biografias, cinco livros lidos na infância, cinco narrativas de viagem, cinco textos que retratam a vida em épocas de epidemia, e assim por diante. O critério de escolha das obras que entram no pacote deve ficar, é claro, por conta de cada um. Ou então  de quem se disponha a organizar um grupo de leitura compartilhada nas redes sociais.

< Vamos encerrando, sr. Modernell?

Sim, vamos encerrando. Mas antes gostaria de dizer duas coisas mais. A primeira delas é que minha empolgação pelo formato e-book, mesmo que não seja fogo de palha, pode ter sido exacerbada pelo júbilo de, pela primeira vez na vida, poder dedicar meu tempo disponível a leituras que me interessam. Antes, isso só acontecia nas férias ou em períodos de desemprego, minados pela aflição. Na maior parte do ano, primeiro como estudante, depois como jornalista e mais tarde como professor, sempre tive que ler pilhas de textos por dever de ofício. Não me queixo, é assim com todo mundo, mas também não posso deixar de observar que as toneladas de textos que li por obrigação profissional, ao longo dos anos e das décadas, não foram os que eu teria escolhido, se pudesse escolher.

Agora eu posso. Nunca imaginei que fosse tão prazeroso. Sem leituras obrigatórias, vindas de fora, sinto-me como um astronauta que se libertou da força da gravidade. O cara se move no ar como bem entende, para lá e para cá, quase sem peso, livre para decidir por si mesmo o que é o piso, o teto e parede. Sem a gravidade, dá tudo na mesma. Como, no meu caso, essa nova situação de vida coincide com a adoção de um novo dispositivo de leitura, eletrônico, pode ser que as duas novidades se confundam, conferindo a essa experiência uma dimensão que ela haverá de perder com o passar do tempo. Enfim, é o que temos para o momento.

< E a segunda coisa, sr. Modernell? Vamos lá.

A segunda coisa é esta: quero deixar claro que não pretendo abandonar os livros convencionais. Há neles algo de sagrado que a insípida eletrônica jamais conseguirá desbancar. Ainda que os futuros e-books sejam capazes de emitir o aroma do café que o personagem está tomando em determinada página, ainda assim apreciaremos esse gesto convertido em palavras impressas com tinta em um papel que irá amarelando com o passar dos anos, das décadas, até dos séculos, no qual sucessivos leitores atentos mas descuidados quem sabe venham a deixar suas próprias manchas de café.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

MORANGOS DE AMOSTRA

                      


                    “É preciso que tudo mude para que tudo continue como está.” Essa frase é a mais citada do romance
O leopardo, obra-prima da literatura italiana. O autor, Giuseppe Tomasi di Lam­pedusa, coloca-a na boca do príncipe siciliano Tancredi Falconeri. Ela expressa a preocupação da nobreza no século XIX em achar um novo jeito, menos ostensivo, de manter os privilégios que sempre teve e quer continuar a ter, pois pressente que uma página importante da história está para ser virada em breve, sob inspiração iluminista.

A frase de Lampedusa, tão irônica quanto lúcida, é um retrato da Sicília, esse apêndice da Itália tão difícil de entender para quem o observa de fora. Uma bela terra, ensolarada, poética, mas também arcaica, mafiosa, patriarcal, onde as relações sociais parecem imutáveis como as pedras. A frase se aplicaria muito bem ao Brasil. Sempre penso nisso em épocas de campanha eleitoral, quando os candidatos apregoam a todo instante no rádio e na TV que temos que mudar isso, temos que mudar aquilo, e blá-blá-blá.

Discurso eleitoral é mais do mesmo. Eu sei, tu sabes, ele sabe, nós sabemos, vós sabeis, eles sabem muito bem que é assim. Uma eleição no Brasil, que custa uma fortuna aos cofres públicos, no fim das contas resulta em mera dança de cadeiras. Trata-se de um ritual republicano apenas na forma, na mecânica. Na essência, é aristocrática. O acúmulo de vantagens e privilégios reservados às altas castas alojadas nos três poderes, num país com multidões de miseráveis, equivale ao modelo siciliano do príncipe Falconeri de conceber o que seja uma sociedade livre e igualitária.

Seria tolice, obviamente, imaginar que os políticos (ou, por extensão, todos aqueles que gravitam em torno de palácios e repartições) um dia possam se empenhar em reduzir os próprios privilégios. Apostar nisso seria o mesmo que esperar dos fabricantes de tabaco que invistam em pesquisas sobre câncer do pulmão. No entanto, os políticos precisam fazer um jogo de cena. O príncipe Falconeri chega ao ponto de se engajar nas tropas republicanas de Giuseppe Garibaldi, se não me engano. Para ter certeza, teria que tirar o pó do livro de Lampedusa e checar esse detalhe. Ou então garimpar nas plataformas de streaming a clássica versão cinematográfica filmada em 1963 por Luchino Visconti, com Alain Delon (Falconeri) a contracenar com uma estonteante Claudia Cardinale aos 25 anos de idade.

Farei isso um dia desses, não agora. Para escrever estas adjazzcências, basta-me a lembrança daquela frase: é preciso mudar para que tudo continue como está.  É esse o ponto. Tomando-a como uma premissa verdadeira, tenho dúvidas de que a realização periódica de eleições, por si só, consolide um regime democrático e, muito menos, venha a aperfeiçoá-lo ao longo do tempo. Já acreditei nisso, quando me permitia tapar o sol com a peneira.

Estamos em 2020. Não é nada, não é nada, já se vai um quinto deste século que ainda ontem nos parecia novinho em folha. Nessas duas décadas, fomos às urnas diversas vezes, conforme sonhávamos quando jovens, no tempo da ditadura. Mesmo assim, não conseguimos emplacar no Brasil um único presidente que se assemelhe à figura de um estadista. Ou seja, alguém que subisse a rampa do palácio com um projeto no bolso do colete, um brilho nos olhos e um horizonte mais amplo do que o exercício da política em sua forma miúda e mafiosa.

Ora, sr. Modernell, francamente... Muito nos admira ver alguém da sua idade, tão entrado em anos, se sair com esse argumento de chofer de caminhão de que é tudo a mesma coisa, os políticos são todos ladrões etc.

Alto lá! Eu não disse, em momento algum, que só existem políticos desonestos. Não disse nem nunca vou dizê-lo. O que eu digo, isto sim, e com convicção, é que os políticos honestos e competentes são e sempre serão uma minoria, talvez vistosa, mas nunca predominante. E isso não só porque exercem seu ofício num ambiente que é uma espécie de carne esponjosa exposta a todos as covids possíveis e imagináveis, mas também porque contam com a complacência de uma sociedade que opera mais ou menos nos mesmos moldes.

O exemplo que me ocorre, nesta época eleitoral, são as caixinhas de morangos envoltas em celofane que aquele sujeito simpático vende na calçada esburacada ali no meio do quarteirão. Os morangos graúdos, viçosos e suculentos são aqueles que ficam por cima, como para dar a entender que as camadas inferiores também são assim. Nada disso. Quando chegamos em casa, tiramos o celofane e deparamos com um monte de frutinhas pequenas, amassadas e até mofadas. O que parecia barato ficou caro.

O vendedor ambulante sabe que precisa de alguns morangos suculentos para poder vender o restolho. Basta-lhe arranjar a embalagem de um modo que lhe seja favorável. Do mesmo modo, o sistema político sempre precisará de algumas pessoas direitas para botar na vitrine, porém em quantidade limitada, sem atrapalhar os interesses dos espertalhões que operam nas camadas inferiores. Ou seja, para que tudo continue como antes, tal como desejava o príncipe Falconeri.

< Bem, sr. Modernell, vamos admitir que a sua singela (para não dizer ingênua) teoria tenha lá certa validade. No entanto, se não contarmos com esses políticos, por piores que sejam eles, o que teremos é uma ditadura, e aí mesmo é que vão nos enfiar os morangos podres pela goela abaixo.

Alto lá! Claro que um novo regime ditatorial, como clamam os desvairados, seria um desastre. Mas essa não é a única alternativa para uma democracia como a nossa, que apenas dissimula uma máquina de construir privilégios para quem se aloja no interior dos castelos, mesmo que seja pelo voto popular. 

O Brasil é uma sociedade insana que não pode ser redimida pela política, mas sim pela ética. A nossa chance é essa.  Se a ética predominar, no futuro, aquele sujeito não estará mais lá na esquina vendendo enganosas caixinhas de morangos envoltos em papel celofane. Ou então não poderá reclamar do prefeito que só arruma as calçadas em ano eleitoral.

Penso em como gostaria que viesse a ser o país em que nossos descendentes vão viver, ou seja, os quatro quintos restantes do século XXI. Acho que o parlamentarismo, em tese, é melhor que o presidencialismo. Um governo deve governar só enquanto funciona (como hoje pensamos em relação ao casamento, por exemplo) e não por um prazo estipulado previamente, em um momento em que não podemos saber se vai funcionar.

Voto facultativo. O eleitor é quem deve decidir se vai ou não votar, por sua conta e risco, como prerrogativa primordial da liberdade. Se tal decisão for tomada em seu foro íntimo, será mais educativa, a longo prazo, do que a coerção externa de uma obrigação, que não o educa, apenas o condena a sentir sobre si o bafo do Estado.

Voto remoto. Tenho a esperança de que nas próximas décadas o eleitor possa votar onde estiver, com segurança, por meio de um dispositivo móvel. Não faz sentido se deslocar a um local público para ali entrar numa cabine e executar um procedimento mais simples do que escovar os dentes. Não vejo por que um sistema de voto a distância não possa ser implantado nas eleições, se já é assim em tantos setores cruciais, desde operações bancárias até consultas médicas.

< E as fraudes, sr. Modernell? Hackers e invasores se multiplicam como ratos no esgoto. Por acaso não pensou nisso?

Ora, fraude por fraude, o risco existirá sempre, seja na nuvem ou na calçada da rua. Isso já ficou bem claro, creio, no nosso exemplo da caixinha de morangos.

Poucos partidos. Meia dúzia deles me parece suficiente para canalizar as linhas de pensamento predominantes na sociedade, com ganho de clareza no mapa geral, sobretudo para as pessoas mais simples. Vinte ou trinta opções, como a profusão dos tipos de pizzas tão parecidas nos cardápios dos serviços de delivery, só servem para confundir as pessoas, sangrar as finanças públicas e estimular uma cultura de alianças espúrias.

Parlamento mínimo. Não sei se precisamos mesmo de um senado e também de uma câmara de deputados, a custo astronômico, onde as coisas se arrastam pelos corredores ao longo de meses, anos, décadas. Talvez fôssemos mais bem atendidos, como cidadãos, por uma única congregação enxuta e ágil, para que uma lei de contenção à ganância dos planos de saúde, por exemplo, não precise demorar tanto quanto demorou a abolição da escravatura. Mas para isso, é claro, será necessário que nossos parlamentares abram mão do privilégio de passar festas juninas em suas cidades longínquas. Ou seja, em vez de tirar folgas a três por quatro, devem trabalhar como trabalham os professores, os bancários, os enfermeiros.

Parlamentares avulsos. Tenho dúvidas sobre se os hoje exacerbados sistemas de cotas, de um modo geral, de fato servem para equalizar as oportunidades entre os indivíduos, o que certamente constitui um objetivo justo e desejável. Porém, admitindo que sim, as cotas funcionam, são um mecanismo eficaz e legítimo, então deveriam vigorar também em âmbito parlamentar. Um quinto das cadeiras será reservado a cidadãos sem vínculos partidários que, eleitos, podem dar sua contribuição à sociedade sem estarem subordinados a siglas e caciques. Isso ajudaria a oxigenar o parlamento, hoje controlado pelos políticos profissionais.

Multipolaridade. Gostaria que daqui a algumas décadas se deixasse de pensar a política em termos de direita e esquerda. Essa polaridade de régua, simplista e rasa, já não dá conta da velocidade das ideias nem das forças em jogo no mundo de hoje. Pode muito bem ser substituída por uma concepção dinâmica e tridimensional semelhante a um móbile pendurado no teto, cujas peças, por sua leveza, mudam de posição o tempo todo, de forma quase independente, porém sempre em função da estabilidade do conjunto. Espero que nossos netos e bisnetos, ainda no século em curso, venham a encarar o que hoje qualificamos como “esquerda” e “direita” como referências arbitrárias, supersticiosas, como eram o Céu e o Inferno na visão dos povos medievais.

Plebiscitos semestrais. Com dois deles por ano, digamos, seria possível tomar decisões sobre temas polêmicos e cruciais que os parlamentares evitam ou empurram com a barriga, enquanto descobrem a melhor maneira de atender sua clientela, isto é, suas bases de apoio e os interesses dos lobbies. Consultas populares periódicas, sem a mediação de políticos profissionais, podem ajudar a criar uma cultura de democracia direta muito mais educativa do que as eleições, além de estar em sintonia com uma sociedade informatizada.

< Muito bem, sr. Modernell. Um ficcionista agora se dá ares de cientista político. Era só o que faltava no Brasil. Quem sabe se já não seria hora de encerrar estas já tão longas adjazzcências...

                  Boa ideia. Mas neste último parágrafo me permito acrescentar o seguinte: para a ética florescer, é preciso dissolver a política. Se não formos capazes de dar essa virada, vamos continuar a eleger os sujeitos de sempre, com seus morangos vistosos. No Brasil, jamais faltarão discípulos do príncipe Falconeri: “É preciso que tudo mude para que tudo continue como está”. Eles parecem ter um projeto no bolso do colete, mas já entram no palácio com a coceira no bolso da cueca.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A QUEDA DA CASA DE JASPERS



No começo do confinamento, há seis meses, o silêncio das ruas me permitiu ouvir não só o gotejamento da água dentro do filtro de barro, como também a voz de um sábio. Salvo engano, terá sido mesmo Karl Jaspers (1883-1969), o filósofo existencialista alemão que aparece na foto acima, quem afirmou mais ou menos o seguinte: tudo aquilo que existe no mundo, podemos encontrar dentro de nossa própria casa. 

Concordo, porém acrescento que a casa de qualquer um de nós, hoje, deve ser algo bem diferente da época em que Jaspers formulou esse pensamento. Nosso ambiente doméstico está saturado de sons e imagens que brotam dos mais diferentes dispositivos eletrônicos, com telas enormes ou diminutas, que alguns carregam consigo até quando comparecem ao vaso sanitário. 

Mesmo trancados em casa, chafurdando em álcool gel, a pandemia nos atinge com estatísticas dramáticas e um emaranhado de análises cuja consistência não temos condições de aferir. Nos primeiros meses, permaneci atento ao que diziam médicos, infectologistas, epidemiologistas, gestores da saúde pública etc. Depois notei que cada vez tinham menos a dizer, substancialmente. Limitavam-se a chover no molhado sobre as medidas básicas de prevenção e a chutar opiniões sobre a curva de propagação da doença. 

Desse momento em diante, me desinteressei do teor do que os midiáticos dizem, para concentrar minha atenção em seu modo de falar e nos elementos que utilizam ao aparecer nas telas. No âmbito da comunicação, vivemos uma pandemia de artificialismo que vai além do assunto do momento, as fake news. A expressão, em si, já é meio fake. Foi importada do hemisfério norte para designar boato, mentira, maledicência, algo que provavelmente já existia entre nós desde o tempo em que vivíamos em cavernas ou, quiçá, pendurados nos galhos das árvores. 

Hoje, nossas casas confortáveis, às vezes acarpetadas, estão impregnadas não só de ácaros, mas também palavras e imagens que não são o que parecem ser. Entre o emaranhado de vozes que se elevaram durante a pandemia, pude notar que se disseminou o uso do você em situações que não dizem respeito ao interlocutor, apenas para (supostamente) reforçar o efeito de uma observação geral. < Você precisa coibir o uso da cloroquina; diz o médico ao repórter, como se a este último, e não às autoridades, coubesse tomar tal providência. 

Desconfio que esse modismo, uma vez mais, deriva do inglês. Décadas atrás, tivemos um surto de “futuro do gerúndio”: < Vamos estar proibindo o uso da cloroquina; alguém diria na época. Esse modo de falar foi chique, no início, restrito aos ilustrados, que depois o esnobaram quando foi quando assimilado pela plebe. Ao migrar dos bairros abastados para a periferia das cidades, os modismos cumprem a mesma trajetória centrífuga desse novo vírus, que agora castiga os que não viajam. 

Além desse espúrio você, usado em sentido amplo, verifica-se também um surto da expressão com certeza, já em vias de desbancar o clássico se Deus quiser. Nada grave, porém significativo. Por que será que justamente numa época como esta, de tanta incerteza, fomos adquirir o hábito de invocar o seu oposto, a torto e a direito, e tanto mais em situações imprevisíveis? 

Quem vai à mídia falar da covid faz o possível para esconder sua incerteza, por mais que a tenha. Admiti-la seria frustrar o homem do povo, que se nutre de esperança, mesmo que seja falsa. Por muito tempo imaginei que nossa tradicional canja de galinha, para combater a gripe, fosse tradição interiorana, caseira, um elemento folclórico e talvez honorífico, por ter o imperador Pedro II como notório aficionado. Mas parece que não. Li em algum lugar, certa vez, que isso começou na gripe espanhola. O quinino não fazia efeito. Nada fazia efeito. Então, para não ficarem calados diante do paciente, os médicos da época se saíram com essa: < Vá para casa e tome uma boa canja de galinha. 

Ora, um placebo, ou melhor, um consolo, não deixa de ser algo semelhante a uma fake news. Isso me ocorreu na época em que todo mundo, na mídia, tinha algo a dizer sobre a cloroquina. Para mim, esse assunto continua tão envolto em brumas quanto a própria vacina. 

Na Idade Média, tiveram a brilhante ideia de sair matando gatos, na suposição de que esse animal sorrateiro disseminava a peste entre os povos da Europa. Com isso, dizimaram o predador do rato, verdadeiro transmissor da doença. A coisa, é claro, ficou pior. Naquela época, crendices tinham status de conhecimento. Não sei se é tão diferente hoje em dia, caso contrário a internet seria menos propícia do que as tavernas medievais para a propagação das fake news. Isso me ocorreu meses atrás, ao acompanhar as inflamadas controvérsias sobre como fazer face à pandemia do coronavírus. 

Não duvido que mesmo os cientistas de hoje, como os sábios de outrora, possam tomar um rumo totalmente canhestro (como matar os gatos) ao tentar resolver um problema que, no fim das contas, não é para ser resolvido, mas dissolvido. Tenho para mim que vamos superar esta pandemia de modo gradual, talvez secreto, como a água que pinga dentro do filtro de barro. Se alguém anunciar a chegada da vacina como o dia da vitória, em que enfim poderemos sair às ruas para queimar as máscaras, como as mulheres fizeram com os sutiãs na década de 1960, acho que será apenas mais uma fake news a rolar por aí. 

Nas telas de nossos aparelhos, a todo momento ouvimos pessoas a usar termos como narrativa e protocolo, que viralizaram durante a pandemia. Todo mundo tem algo a dizer no jargão do momento, todo mundo tem uma carta na manga. Mas acho que não se deve esperar tanto de soluções que vêm de cima, ou vêm de longe, como é o caso da vacina. A pandemia será superada como resultado do nosso minucioso aprendizado de medidas de assepsia e do treinamento diário dos médicos. Dizem que o velho filtro de barro tem o melhor de todos os processos de filtragem. O mais lento, mas também o mais seguro. 

A certa altura, durante o inverno, tive a impressão de que no Brasil, em vez da propalada imunidade de rebanho, estávamos mais perto de uma impunidade de rebanho. Corrupção e pandemia eram os assuntos que dominavam os noticiários do início ao fim. Não saía disso. Apliquei minha velha tática: TV sem som, só imagem. Além de me aprimorar em leitura labial, pude observar melhor o que as pessoas, diante da câmara, desejam comunicar com os artifícios que estão além da linguagem verbal.

Espantei-me com a quantidade de gente, entre jornalistas e entrevistados, que aparecem na tela tendo atrás de si uma estante de livros. Recordei que, na década de 1990, quando os computadores eram novidade, todo mundo fazia pose debruçado naqueles enormes monitores de vídeo como demonstração de modernidade. Naquela época, ninguém dava a mínima para os livros, a não ser o presidente da república, em seus pronunciamentos em rede nacional. 

Para minha surpresa, eles ressurgem agora, sempre recheados de tinta e celulose, com suas lombadas coloridas, como para respaldar a credibilidade do infectologista que dá o seu pitaco na TV sobre os possíveis rumos da pandemia. Quem chegasse de outro planeta teria a impressão de que no Brasil se lê mais do que na Noruega, ao ver tanto livro como cenário de fundo. 

A conexão é imediata, por meio da imagem. Acho que uma grande massa de brasileiros deve achar que um sujeito instruído que fala na TV leu ou pretende ler todo o material que aparece atrás dele. Um século atrás, muitos achavam que o ilustre Ruy Barbosa, nosso grande polímata, tinha lido todos os livros existentes no mundo. 

O fake não se limita às news, mas se faz presente também nas expressões da moda e nos elementos visuais. Seria o caso de falar coisas como fake saying, fake scenery, já que apreciamos tanto a língua inglesa, não só em fake news. Um grande jogo de cena ocupa cada milímetro da telinha ou da telona de onde não desgrudamos os olhos nesta já tediosa (mas reveladora) quarentena. Bem, se aguentamos até aqui, agora vamos até o fim.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

DESPEDIDA DE MINHA FILHA




Outra despedida. Laura vai morar na Suíça. Enquanto minha filha fecha a mala, eu abro o baú. Dentro dele, vislumbro uma cena ocorrida 26 anos atrás. Saímos da maternidade com um bebê novinho em folha, frágil como casca de ovo, que traz pendurado na barriga um canudo escuro e resistente – um pedaço do cordão umbilical.

Naquela manhã de dezembro, para mim, tudo era novidade. De tão atrapalhado, nem me ocorreu perguntar à enfermeira para que raios haveria de servir um coto de cordão umbilical depois de terminado o parto. Na maternidade, fui refém do mesmo embaraço de quem sai da loja levando um aspirador de pó com acessórios esquisitos que jamais serão usados.
A analogia é rude, mas cabível. Não vou deletá-la só por conta dos bons modos. E digo mais. Com o passar dos dias, o cordão umbilical foi ganhando um aspecto cada vez menos agradável, seco e encarquilhado, como se fosse o pênis de uma múmia. Só não foi para o lixo, junto com as tiras de esparadrapo, porque descobrimos algo interessante.
No nosso país existem, pelo menos, duas simpatias relativas ao cordão umbilical dos recém-nascidos. Se o jogarmos ao telhado, o filho permanecerá grudado à família. Se o lançarmos ao mar, o filho sairá pelo mundo em busca de seus próprios caminhos, embora preservando os laços afetivos com suas raízes.
O cordão umbilical de Laura foi servido aos peixes do Oceano Atlântico. Esse mesmo oceano que meus ancestrais atravessaram ao vir para o Brasil, de navio, Laura agora vai cruzar de avião, em sentido inverso, para encarar um mestrado em neurociências na Universidade de Genebra.
Noto um rebuliço dentro do baú. Meus antepassados vibram ao saber que uma descendente deles tem chance de dar o pulo do gato. Eles mal tiveram instrução básica. Meus avós eram gente simples do sul da Itália e da zona rural do Uruguai. Nem fariam ideia do que são as tais neurociências, ainda que já existissem na época deles. Eu mesmo, hoje, não posso garantir que sei. Talvez tenha uma ideia, por alto, do que são neurociências. Mas não me peçam para explicar.
Mas uma coisa eu sei, talvez melhor que meus ancestrais: não fazemos filhos para nós, e sim para o mundo. Um dia, cedo ou tarde, chega a nossa vez de vê-los partir. É hora de permanecermos imóveis, lúcidos, se possível felizes, enquanto algo se desprende de nós e se espalha no espaço, como um perfume. É assim que funciona.
Continuo a ver coisas antigas dentro do baú. Vejo que também eu, 48 anos atrás, fui embora da minha terra. Como era muito jovem, não soube aquilatar o quanto aquela despedida pode ter pesado para quem me viu partir. Estava focado em mim mesmo. Parti de minha cidade, por assim dizer, a bordo de um submarino amarelo, inebriado com meus sonhos e projetos.
Hoje, de barba branca, me vejo no papel de quem fica. Sinto-me inquieto, mas também gratificado. A vida ganha em plenitude quando temos a chance de viver de novo, em posição oposta, uma situação já vivida em outra época. Minha filha levará mundo afora algumas partículas do que sou. Ou do que tentei ser, como pai, enquanto estive por perto.
Fico aqui, entre outras coisas, para tomar conta do baú. Tiro de dentro dele, uma a uma, as fotos para compor esta retrospectiva. A menininha cresceu. Isso me espanta. Mais de um quarto de século se passou em um piscar de olhos. E foi boa ideia jogar no mar aquele cordão umbilical. Parece que funcionou.

💧 Texto publicado no Facebook em 15-8-2020

EVOCAÇÃO DE MEU PAI



Aí está ele, em três momentos. Paulino Modernell (1900-1972) era uruguaio, naturalizado brasileiro e radicado em Rio Grande (RS), onde fez a vida à frente do Hotel Familiar, junto com minha mãe, Angelina.

Paulino não tinha muita instrução, mas revelou um bom tino comercial como hoteleiro. A certa altura, contratou Ângelo Trindade, o Messi dos cozinheiros rio-grandinos, naquela época, para pilotar a cozinha do Hotel Familiar durante a temporada de verão. Sucesso absoluto. O modesto Hotel Familiar captou até clientes grã-finos, de óculos Ray-Ban, por causa da excelência do cardápio.
Um dos carros-chefes do restaurante do hotel era o pimentão ao forno recheado com camarão. Bah! Esse prato era mesmo de arrebentar a boca do balão. Com o passar dos anos, extinto o hotel, foi incorporado à tradição culinária da nossa família, com as necessárias adaptações que a vida impõe a cada um.
Daqui a pouco, vou preparar esses tais pimentões recheados com camarão. Eles irão ao forno em três cores: verde, vermelho e amarelo. Uma evocação da gloriosa camiseta tricolor do Sport Club Rio Grande. A homenagem vai para Paulino Modernell, que detestava futebol, mas (esteja onde estiver) vai ter que me perdoar mais essa.

💧 Texto publicado no Facebook em 9-8-2020

DESPEDIDA DO MACKENZIE

Pessoal, isto é uma despedida. Deixo o Mackenzie após 14 anos como professor do curso de Jornalismo.
Antes, como jornalista, jamais havia sonhado em ficar tanto tempo no mesmo emprego. Nem me passava pela cabeça um dia vir a ser professor. Felizmente, aconteceu. Trabalhar no ensino me deu chance de reavaliar, filtrar e organizar o que acumulei como saber de ofício ao longo de quatro décadas, nas atividades de escritor e jornalista. Ser professor, em suma, foi um privilégio da minha velhice.
Minha experiência como professor confirma uma premissa do psicólogo Carl Rogers que conheci ainda em meu primeiro ano como aluno da faculdade de Jornalismo: não podemos ensinar de modo direto, apenas facilitar aprendizagem de outra pessoa. Quem a escreveu a giz no quadro-negro da FAAP foi Isaac Epstein, meu professor genial e inesquecível.
Nunca me ocorreu escrever essa frase de Rogers, a canetão, em algum quadro-branco do Mackenzie. Talvez devesse tê-lo feito. Agora é tarde. Mas antes de sair de cena gostaria de repeti-la aqui como algo que me cabe transmitir aos jovens. Fora isso, espero ter passado duas ou três coisinhas úteis a pelo menos alguns dos milhares alunos que estiveram comigo nesses 14 anos. Mesmo quando em meio a um mar de indiferença, o professor sempre busca achar dois olhos brilhando durante a sua aula.
Dizem que vivemos tempos duros. Pode ser. Mas que tempos não foram duros? Sinceramente, não temo pelo que aguarda as novas gerações. Os melhores haverão de criar soluções. Alguns vão apoiá-los; outros, contestá-los. Foi sempre assim. Nada de novo sob o sol. Aos meus alunos, agora ex-alunos, insisto no seguinte: não se deixem levar por belas palavras, venham de onde vierem. Ousem buscar as palavras verdadeiras e exatas. Nossa missão é essa.
Ao me despedir, posto aqui uma das fotos que fiz há bastante tempo, por simples curtição, dentro do campus Higienópolis. Nela vemos o interior do prédio 35, o qual, pelo que me disseram, vão botar abaixo (sem comentários). Trabalhei bastante ali, nos primeiros anos. Muito me agradava estimular os jovens a escrever sob a primeira claridade da manhã.
Sentirei falta do ambiente universitário múltiplo e fervilhante, tal como era antes da quarentena. Não sentirei falta da burocracia acadêmica, por vezes sufocante, que a meu ver constitui outra espécie de pandemia. Essa nos condena a usar máscaras pesadas, embora invisíveis.
Sentirei saudade de alguns colegas com os quais gostaria de ter convivido mais, e se não o fiz foi talvez por negligência minha. Lamento isso, agora. Sempre tive e terei sempre grande apreço por pessoas com senso de humor e pensamento independente. Dessas, vou me lembrar por muito tempo. As outras, esquecerei tão rápido quanto serei esquecido.

💧 Texto publicado no Facebook em 24-6-2020