sábado, 15 de dezembro de 2007

ROSAS A TODOS

Um amigo pergunta o que leva alguém a manter um blogue. Para começar, a vaidade. Como o aspartame, ela está presente em tudo, de forma oculta ou explícita.

Porém, no meu caso, a razão principal é outra. Delicio-me até hoje com a possibilidade de publicar por conta própria, de forma instantânea. Na época em que escrevia livros, vi meus originais amargarem longos anos de gaveta. Nunca me foi fácil conseguir editores, que de resto se revelaram mais adversários do que aliados nessa empreitada tortuosa, talvez insana, de levar um texto aos olhos do leitor.

Num blogue, é vapt-vupt. Não sou um blogueiro comme il faut, que interage com os leitores e bota lenha na fogueira. Gostaria de sê-lo, porém mal tenho tempo para perpetrar estas crônicas quinzenais. Espanta-me constatar que já produzi 54, contando com esta.

A propósito de uma outra, Morin e a China, publicada em outubro, Geraldo Hasse me cobrava: “Acho bom tu explicares melhor o que significa a frase 'o individualismo gera dentro de si uma espécie de nostalgia humanitária, e vice-versa”. Ela é mesmo mandrake, admito. Não me agrada turvar as águas do rio para que elas pareçam profundas. Como redator, é cair para a Segundona. Tentarei explicar-me.

Acho que povos e indivíduos, por lucidez ou tédio, se alternam entre fases voltadas para um ideal coletivo ou a uma fixação no próprio umbigo. No primeiro caso, o foco pode ser a justiça social, a sobrevivência ou o esforço para virar uma página da história. No segundo caso, a preocupação com o lucro, os bens materiais e o prazer imediato falam mais alto.

O Oriente vive hoje um delírio consumista, e dane-se o resto. Em contrapartida, entre nós, alguns valores ascéticos e coletivistas da contracultura ressurgem nas pautas das corporações. Em parte por oportunismo, claro, mas também porque o senso comum já sabe aquilo que antes só os hippies sabiam: do jeito que está, a vaca vai pro brejo.

Não creio que essa alternância de sintonia se deva apenas a ameaças globais. Para ela também contribui a provinciana lembrança (real ou fictícia, pouco importa, mas sempre inspiradora) de um tempo em que éramos todos menos cínicos e mais felizes.

Isto posto, o blogue entra em recesso até depois do carnaval. Boa virada de ano a todos. Em 2008 teremos o centenário de Guimarães Rosa. Desde já, muitas rosas a nós todos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A ESTRELA ROUBADA

“Aqui se faz, aqui se paga”. Leo Vázquez evoca o velho ditado ao referir-se ao rebaixamento do Corinthians, cujo último título nacional considera espúrio. Insiste em que o Brasileiro de 2005 foi decidido pela soma dos feitos de quatro cavalheiros de alta estirpe que teriam formado, diz Leo, um “quadrado mágico”. Seriam eles: Ricardo Teixeira, caudilho vitalício da CBF, que agraciou o Corinthians com a chance de resgatar pontos que já havia perdido; Kia Joorabchian, o homem da mala, sócio anglo-iraniano da Media Sports Investments (MSI); Alberto Dualib, que dispensa comentários; e o árbitro Márcio Rezende de Freitas, que naquele jogo do Pacaembu, que valia por uma final, não viu o pênalti a favor do Internacional, assim como o presidente da república não via nada do que se passava na sala ao lado até que estourasse o escândalo do “Mensalão”.

Mesmo assim reluto em endossar o ditado evocado por Leo. Tenho grandes amigos corintianos. Não gostaria de estar na pele deles, hoje. Por outro lado, admito, seria hipocrisia de minha parte dizer que sinto muito pelo que aconteceu.

Naquele fatídico 2005, um constrangimento mútuo (no mínimo) se instalou entre corintianos e colorados, torcidas até então mais ou menos fraternas. No último confronto direto, no Pacaembu, há cerca de um mês, na arquibancada lilás os colorados ainda brandiam uma faixa alusiva à “estrela roubada”.

Roubada, também acho que foi. Porém temos de virar a página. O Inter, convenhamos, teve um 2007 quase tão inglório quanto o Corinthians. Após o título mundial no Japão, há um ano, entrou em depressão pós-parto. Ficou em 8º lugar no campeonato gaúcho, seu pior desempenho em quase um século de história; teve participação bisonha na Libertadores; e por fim deu com os burros n’água no Brasileiro, ficando em 11º lugar após dois vice-campeonatos nos anos anteriores. De certo modo, também fomos rebaixados.

A recuperação do Inter, em 2008, pressupõe a superação de um ressentimento. Para conquistar novas estrelas, precisamos esquecer a que nos foi roubada. O Corinthians que faça bom uso dela, nas estradas empoeiradas que vai ter de trilhar até voltar à primeira divisão. Daqui a um ano, estaremos todos com saudades.

domingo, 18 de novembro de 2007

AQUELA VALEU, TIÃO!

Reencontro Tião depois de muitos anos. Recordamos uma viagem, faz tempo, em meio a um grupo de outros jornalistas das boas casas do ramo. Chamam de famtur, “viagem de familiarização”. É quando os operadores de turismo levam o pessoal da mídia aos lugares que eles querem promover.

Aquela nossa viagem foi às Maldivas -- não confundir com Malvinas. Trata-se de um arquipélago no Oceano Índico, com mais de mil ilhas de coral, em grande parte desabitadas. Águas mornas, translúcidas, pontilhadas por filetes de terra com farfalhantes coqueirais. Entre os lugares que conheci, esse foi o único ao qual tive peito de aplicar, sem pejo, o adjetivo paradisíaco. Tião concorda comigo.

Relembramos um fato curioso. Passávamos de barco ao lado de uma ilha onde se via um sujeito sozinho. Era um alemão. Cumpria pena por um crime que teria algo a ver com droga, cousa esta satanizada num país islâmico. Mas lá estava ele, em seu bronzeado equatorial, tranqüilo como água de poço, dir-se-ia no Sul, e faceiro que nem gordo em camiseta regata.

Então cumprir pena, nas Maldivas, era aquela moleza? Um gringo solto na praia, de bermuda, sustentado pelo governo. Segundo Tião, o prisioneiro fora procurado por um representante do governo alemão disposto a repatriá-lo. Recusou. Casara com uma jovem maldívia. Familiarizara-se, digamos. Não pretendia sair dali. Enfim, estava muito bem, obrigado.

Então nos perguntamos: não seria o caso de cometer um pequeno assassinato, que fosse, para ganhar o direito de ser confinado a uma daquelas incontáveis ilhas que ainda estavam vagas? Aquilo é cumprir cena. Cumprir pena, mesmo, é ficar imobilizado ao volante de um carro na fuligem de um túnel engarrafado, com hordas de motoqueiros azucrinando a vida. São Paulo às seis da tarde.

Passaram-se mais de dez anos desde a nossa viagem. O alemão ainda estará por lá? Penso nas Maldivas quando leio sobre o efeito-estufa. Ontem o jornal disse que, com acréscimo de 5ºC no aquecimento global, o mar fustigaria Londres e Tóquio. Maldivas, ele nem cita, claro. Com muito menos aquecimento, aquelas finas lâminas de areia ficariam submersas. Sumiriam do mapa. Será que o alemão já sabe? O paraíso não existe, Tião.

sábado, 3 de novembro de 2007

LAIKA NO SPUTNIK

Ontem homenageamos os mortos. Hoje proponho outra homenagem. Faz 50 anos, exatos, que os russos lançaram ao espaço o primeiro ser vivo: uma cachorrinha de 3 anos de idade. Chamava-se Kudryavka (“crespinha”, na língua de Tolstói), mas se tornaria famosa pelo nome de sua raça de origem siberiana, Laika (“ladradora”), pertencente ou aparentada, creio, à família terrier.

Laika foi abduzida em 3 de novembro de 1957, a bordo do segundo satélite da série Sputnik (“companheiro de viagem”). Resistiu menos do que se esperava. Morreu sufocada dez dias depois. Até então nenhum terráqueo, e muito menos um terrier, havia sido submetido a uma situação de microgravidade. Se naquela época me tivessem pedido a opinião, eu diria que no lugar de Laika botassem Nikita Kruschev, um careca de nome sinistro que eu tremia só de ouvir no Repórter Esso.

Eram os tempos da Guerra Fria, ou seja, de paranóia geral. Mas também do Gumex e das galochas. Eu tinha 4 anos. Dei o nome Laika a uma cachorra vira-lata que apareceu lá em casa. Era um tributo à original, detonada por Kruschev. De noite, na cama, eu pensava na solidão de Laika, perdida no espaço.

“A Terra é azul e eu não vi Deus”, declararia em 1962 o astronauta Yuri Gagárin, que orbitou o planeta. E Neil Armstrong, ao caminhar na Lua, em 1969, cravou: “Este é um pequeno passo para o homem e um grande salto para a humanidade”. Frases de almanaque. Devem ter sido cunhadas bem antes por assessores de imprensa. Sabe-se lá o que Gagárin e Armstrong de fato pensaram lá em cima. No entanto, o que eu gostaria de saber, mesmo, foi o que Laika pensou, nos dez dias de pânico, a respeito dos russos que a fizeram de cobaia.

Vou mais longe. Gostaria de saber o que o touro pensa dos espanhóis; a raposa, dos ingleses; o lobo, dos franceses; a baleia, dos japoneses; a cobra, dos chineses; o camelo, dos marroquinos; o boi, dos catarinenses; a capivara, dos caçadores do Taim; os elefantes, dos donos de circo.

Mas não farei desta crônica num libelo zoomaníaco. Deixo de lado outros tantos animais sacrificados para pensar só em Laika. Ainda estará girando em torno da Terra? Só sei que, meio século depois, cá estou eu, sem Gumex, que de resto já não me seria necessário. Estou cada vez mais parecido com Kruschev.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

MORIN E A CHINA

O pensador francês Edgar Morin rememora sua viagem à China, em 1992, na entrevista concedida a Andrei Netto e publicada domingo retrasado no Estadão. “Pude comprovar a curiosidade e também a inteligência que talvez tenha origem nas fusões do taoísmo e do marxismo”, diz ele, referindo-se à juventude chinesa.

Contraponto instigante. O marxismo interpreta a vida social de modo evolutivo. Uma flecha desliza no ar em busca de um alvo hipotético, a igualdade. Seu propulsor é a luta de classes. Ou seja, a oposição de forças contrárias.

O taoísmo enfatiza não a disputa, mas a alternância. Não se trata de um movimento progressivo, mas giratório. O alvo não é algo externo, distante. Em vez da flecha, temos um carrossel. O eterno retorno. A China gira em seu próprio eixo. Abre e fecha, abre e fecha, ao longo dos séculos. Ninguém a entende. Só depois.

Há dez anos os chineses, que ainda ostentam a foice e o martelo, preservam seu enclave capitalista, Hong Kong, como um ambiente de proveta para monitorar as mutações de um vírus. Mas aplicam o resultado desses estudos do lado de fora de suas fronteiras. Inundam o mundo com bugigangas a preços incomparáveis. Eles são possíveis, sabemos, à custa de uma massa humana submetida a um regime de trabalho não muito diferente dos antigos egípcios que carregavam pedras para as pirâmides.

Os chineses disseminam uma espécie de “capitalismo pit bull”, expressão que tomo emprestada de um professor da Unicamp, Francisco Foot Hardman. Os marxistas chamariam isso de “contradições”. Ué, onde já se viu acender uma vela para Deus e outra para o Diabo?

Mas o taoísmo não tem essa de “contradições”. Tudo está contido no símbolo yin-yang. Naquele círculo em preto-e-branco, que gira como um carrossel, uma bolinha (uma Hong Kong) indica a presença de cada um dos elementos dentro do campo oposto. O individualismo gera dentro de si uma espécie de nostalgia humanitária, e vice-versa.

Aos chineses de hoje caberá descobrir como será possível construir um mundo mais solidário sem abrir mão dos fones do ouvido. Sejamos otimistas. A salvação sempre foi um milagre.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

SEIXOS QUE ROLAM

De uns anos para cá, os jogadores de futebol passaram a chamar o técnico de “professô”. Pronunciam a palavra com reverência e orgulho, escandindo as sílabas, saboreando as vogais como se sorvessem o sumo de uma suculenta picanha.

É compreensível. Grande parte dos jogadores não teve os professores que deveria ter tido. Encontrar o mestre nessa figura paternal e autocrática do treinador é um jeito de redimir-se de um passado de desamparo social, nas periferias.

Já os universitários bem nutridos pronunciam a palavra professor com a brevidade de quem toma um iogurte num gole só. Dizem “p’fssor”, pulando as vogais. Também isso é compreensível. Quem usa muito certa palavra tende a simplificá-la. Não só por força do hábito, como porque o interlocutor é capaz de captá-la, digamos, por amostragem. Uma pitada dela é o quanto basta.

Assim como meus alunos dizem “p’fssor”, os portugueses dizem “P’rtgal”, não “Portugal”, com todas as vogais, como dizemos no Brasil. Penso nas palavras como seixos que rolam e aparam as arestas. Ao longo do tempo, desvencilham-se do que não interessa mais. Foi assim que “à vossa mercê” virou “vosmecê”, “você”, “cê”.

Talvez o português ainda venha a se tornar uma língua eslava, como uma daquelas que nos assustam pela profusão de consoantes. Não entendo desse assunto. Entendo talvez um pouquinho de seixos rolados, por vê-los rolar.

Acho perda de tempo promover uma reforma ortográfica na ilusão de unificar o português em países tão díspares. As mudanças propostas são irrisórias. Vai ser um furo na água. Além disso, não sei se teríamos a ganhar com uma uniformização. Isto é coisa de milicos.

O mundo em que vivemos não pode mais ser pensado em termos de grandes estruturas. Valores e costumes já não são questões nacionais, mas antes de tribos e bairros. Assim haverá de ser também com a língua e seus milhares de palavras. Os seixos precisam rolar.

domingo, 23 de setembro de 2007

OS RAMOS DO CALANCÓI

Sobre o presidente, volta e meia ouço:
< Sair de onde saiu, chegar onde chegou: inteligente, isso ele é.
Mas também:
< Lula é burro. Nem sabe falar.
Juízos tão extremados se devem à paixão política, prima-irmã da miopia. Atrelar a inteligência à desenvoltura no uso da língua é tão pueril quanto supor que o destino é determinado por mérito pessoal.

Testes de Q.I. (quociente intelectual) já não têm a credibilidade que tinham no tempo das galochas. De lá para cá cunharam muitas definições de inteligência, algumas até engenhosas. Nenhuma chegou a emplacar. Definir a inteligência é quase tão difícil quanto definir Deus. São entidades que se revelam por seus efeitos. Algo sempre nos escapará.

Se eu precisasse definir a inteligência, talvez dissesse que é alguma coisa capaz de observar a si mesma. Mas logo apagaria com a tecla Del. E, mais realista, escreveria: inteligência é a capacidade de fazer o que precisa ser feito, na hora certa.

Porém, ao adotar esta pedra de toque, teria de tirar o chapéu para a planta que tenho sobre o balcão. É um calancói. Escapou do vaso com todos os ramos. Se o mudo de posição, ele se volta de novo na direção da janela. Mantém suas folhas no ângulo exato para captar a luz. Todas, menos duas, bem embaixo, que sustentam de leve cada ramo sobre o tampo do balcão, como pernas de bailarina.

Existem mil formas de inteligência. A das plantas, a dos políticos, a das bailarinas. Que as julguemos superiores ou inferiores é questão de foro íntimo. Ou de alinhamento externo.

Eu não diria que Lula é burro. Como não diria que FHC, seu antecessor, é todo aquele portento que apregoam. Sinto que seu brilho, indiscutível, vem menos da essência do que de uma espessa camada de verniz. Não é da estirpe, digamos, de Vaclav Havel.

Talvez nenhum país europeu tenha tido, no século XIX, um governante do mesmo nível de Dom Pedro II, que impressionou Nietzsche quando eles trocaram idéias num trem. No entanto, mesmo contando com um imperador iluminado, o Brasil ficou na rabeira na hora de abolir a escravidão.

A questão não é bem até onde vai a inteligência de certo governante, mas sim o quanto ela consegue se impor às circunstâncias. Temo que seja sempre bem menos do que gostaríamos.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

A FOTOCÓPIA AMARELADA

Sete de Setembro, feriado nacional. Léo Vázquez me aparece com a idéia de trocar o lema positivista Ordem e progresso (inserido na bandeira nacional pela vontade de um dos fundadores da república, o Coronel Benjamin Constant) por outro mais realista: É só sentar e aguardar.


Abro uma latinha de cerveja. Ofereço-a Leo. Com tato, tento convencê-lo de que sua idéia é inviável. Mostro-lhe uma fotocópia amarelada sobre a mesa. É uma notícia de jornal que caiu de dentro de um livro que emprestaram a minha filha. O texto tem o seguinte teor:

“O bobo da corte disse ao Rei Lear que ninguém deveria envelhecer sem primeiro se tornar sábio. É que a ingenuidade é bela nas crianças, compreensível nos jovens, mas trágica nos adultos. Dos adultos, mais do que imaturas manifestações de espontaneidade e temperamento, esperam-se o equilíbrio e a serenidade da experiência.

Radicais brasileiros, convençam-se: os tempos são outros, o Brasil cresceu. Ninguém vai industrializar a crise, ninguém vai virar a mesa, mesmo com os pratos vazios. Esta certeza não se assenta na possibilidade dos tanques saírem às ruas mas, antes, na convicção da maturidade política de um Brasil adulto.

Já pagamos todos os preços de todas as ingenuidades. Já seguimos homens pensando seguir idéias, já toleramos badernas em nome do que julgávamos ser democracia, já acreditamos em milagres antes de acreditar no trabalho. Basta. É preciso não confundir anseios com possibilidades. Basta. É preciso que o exemplo e a dor sejam as bases de nossa tranqüila maturidade.

Companheiros! Em 27 de novembro de 1935, a ingenuidade política nacional permitiu uma escalada de covardia e violência: a Intentona Comunista. Recordar aquela madrugada de sangue e espanto, de crime e tragédia, não é cultuar o ódio pelo ódio, é bendizer a liberdade, é exaltar princípios, é reafirmar a gratidão de um povo pelos que morreram em defesa da pátria ameaçada. Radicais brasileiros, não tentem.”

Trata-se de uma ordem do dia proferida pelo tenente-brigadeiro-do-ar Délio Jardim de Mattos, ministro da Aeronáutica entre 1979 e 1985. Não faz nem trinta anos. Parecem trezentos, concordo. Mas Léo Vázquez (sorte dele) não é desses sujeitos que acreditam que a história se repete.

sábado, 25 de agosto de 2007

ASTANA E PROPÍLIA

Estão construindo uma cidade babilônica no norte do Cazaquistão, com projeto do renomado arquiteto japonês Kisho Kurokawa. Os cazaques (“cavaleiros das estepes”) devem ter sua nova capital pronta em 2030. Dinheiro parece que não é problema. O presidente Nursultán Nazarbáev, como Chávez, deita e rola no lucro do petróleo que jorra dos fartos úberes do Mar Cáspio.

Inumeráveis governantes, de Nabudonosor a Mussolini, sempre cederam à tentação de eternizar seu nome por meio de obras de grande impacto, inclusive cidades. Eles se comprazem em fazê-las brotar em locais ermos, inóspitos, inesperados. Camberra, na Austrália; a Chandigarth de Le Corbusier, na Índia; e a Brasília de Niemeyer são exemplos de cidades que nasceram em pranchetas de escritório.

Mas o Cazaquistão agora chega a desafiar os deuses. A nova Astana surge numa região cuja temperatura atinge extremos de 40ºC, no verão, e -40ºC, no inverno. Não sei como pode haver pessoas dispostas a suportar uma variação térmica de 80ºC. É como viver numa montanha-russa. Mesmo assim, prevê-se que Astana abrigará mais de 1 milhão de habitantes em 2012.

Nazarbáev desviou o curso do Rio Ishim para ter o seu Tâmisa. Construiu um suntuoso palácio presidencial, Ak Orda, que imita a Casa Branca. E plantou uma floresta para desviar os ventos gelados das estepes de sua ousada Astana, que na verdade é um risoto de prédios em diferentes estilos. Pirâmides espelhadas convivem com trombudos edifícios residenciais que, como na Rússia stalinista, têm aspecto de penitenciária.

Não sei quanto vai custar a esbórnia urbanística de Nazarbáev. Também não sei (ninguém sabe) quanto petróleo resta nas entranhas da Terra. Já soube, não lembro, quanto custou a construção de Brasília. Naquela época, o sorriso aberto de Juscelino Kubitschek avalizava qualquer extravagância, mesmo que se tratasse de uma nova capital nos cafundós do cerrado. Eu era guri.

Cresci um pouco. Fiquei sabendo que Brasília (hoje eu a chamaria de Propília, capital da propina) foi o estopim da nossa dívida externa. De alguma forma, ajudou a colocar a economia brasileira numa montanha-russa. Tivemos de nos habituar ao sobe-e-desce, como os cavaleiros das estepes suportam os extremos do clima.

sábado, 11 de agosto de 2007

DINA SFAT, UMA RECORDAÇÃO

Não é fácil convencer uma adolescente de que ninguém sobrevive comendo três folhas de alface por dia. Os ditames da elegância são tirânicos. O shopping é o Kremlin. Essas meninas nem desconfiam.

Querer ser que nem os esguios manequins das vitrines, imutáveis e sem celulite, não passa de uma quimera. Na idade delas, também ansiávamos por um socialismo enxuto que só existiu mesmo na vitrine de alguns países. Mas como demonstrar a um adolescente que as coisas não são o que parecem ser?

Um dia desses, numa estação do metrô, minha filha e eu deparamos com uma frase de Machado de Assis: “Há mulheres elegantes e mulheres enfeitadas”. Ficamos certo tempo discutindo o assunto. Aí me saí com esta, desculpem:
> Mulher enfeitada é aquela que quer se parecer com as outras, e mulher elegante é a que quer se parecer consigo própria.

Quando disse isto, eu pensava naqueles sapatos bicudos, talvez de inspiração medieval, que as mulheres de hoje exibem em ocasiões formais. Informalmente, diz-se que se prestam para matar baratas nos cantos da cozinha. Não sei, mas calçá-los deve ser uma tortura. Duvido que alguma mulher os usasse se não fosse porque as outras também usam. Mais fácil seria acreditar que comer alface é a melhor coisa do mundo.

Como minha teoria metroviária não faz jus à sagacidade machadiana, decidi que só com um exemplo concreto eu conseguiria explicar a minha filha o que entendo por elegância feminina. Pensei em Sophia Loren e Claudia Cardinale. Mas não ousei abrir o baú. Limitei-me a recordar, com o silêncio dos inocentes, como era duro escolher entre aquelas duas, nas noites solitárias da minha adolescência, quando por sob as cobertas aprendi a pôr em prática (diria Machado) a verdadeira afinidade entre a mão e a luva.

Então pensei em nomes de hoje: Laura Morante, Isabelle Huppert, Diana Krall... Mas todas estão distantes da Terra Brasilis. Até que me veio em mente a figura saudosa e esbelta de Dina Sfat. Eis o exemplo prático capaz de confirmar qualquer teoria sobre a elegância feminina. Mesmo uma feita às pressas, dentro do metrô.

sábado, 28 de julho de 2007

A ERA DO FILHO ÚNICO

Passei uns dias em uma cidade cuja população é a de não mais de dois ou três quarteirões de São Paulo. Fiquei na casa de um casal de amigos. Eles têm um único filho, de quatro anos.

Numa manhã chuvosa apareceu uma van com nove colegas de escola para brincar com ele. Nas férias costumam fazer esse rodízio, um dia na casa de cada um. Grande idéia, pensei. Pena que não a tivessem tido naquelas nossas tardes de inverno do sul. A professora, que veio na van, informou:
< Todos eles são filhos únicos.
> Os nove?

Pois é: os nove. Dez, com o anfitrião. Eu sabia que a tendência ao filho único é um vento que sopra da China, varre a Europa e chega às capitais brasileiras. Conheço muita gente que só tem um, aliás como eu (ou assim espero, pois não conto com lobistas para me custear os gastos nos bastidores). Mas cala-te, boca! Basta dizer que, até ver a van chegar, eu não imaginava que um modelo minimalista de família estivesse em voga também no interior do país.

Limitei-me ao espanto. Já não tenho o receio de antes em relação ao filho único. No passado, ele enfrentava duas formas de solidão. Uma em casa, por não ter aliados no desafio de fazer face ao mundo dos adultos. Outra, fora, por ser visto como exceção à regra.

Este último desconforto já não existe, uma vez que o filho único deixou de ser avis rara. Quanto à solidão doméstica, bem, de repente pode chegar uma van com nove crianças. No tempo das galochas, tínhamos de ficar sozinhos em casa vendo pingos de chuva escorrer no vidro da janela.

Ser filho único tem vantagens e desvantagens. Não cabe lastimar nem enaltecer. Porém o fenômeno se torna inquietante se o associamos à tendência atual de os jovens saírem de casa cada vez mais tarde. Há nisso um fator econômico e outro cultural: para eles, hoje, morar sozinho é menos importante do que foi para nós. Recusam um ritual de passagem. Isto, sim, me preocupa.

Surge um modo de convivência familiar muito diferente do que tivemos até hoje. Vislumbro um homem adulto, com nome “no mercado”, que continua comendo à noite o prato de comida que um de seus pais, idoso, foi esquentar no microondas. Dessa vez, a van não vai chegar.