Alex ou Nilmar devem deixar o Inter. Talvez ambos. O futebol é um mundo efêmero. Já não dá para memorizar a escalação de um time com aquele gostinho de perenidade com que decorávamos os imperadores romanos: Tibério, Calígula, Cláudio e Nero. Baita defesa. Ou os afluentes da margem direita do Amazonas: Juruá, Purus, Madeira, Tapajós e Xingu. Um ataque arrasador.
Em um time, hoje, os nomes mudam num piscar de olhos. Rotatividade interessa aos atravessadores. O gramado do Beira-Rio e de outros estádios brasileiros tornaram-se pastagens para a engorda dos negócios internacionais. Mas essa rotatividade até que tem um lado bom: realça a tradição da camisa.
A do Inter fará um século em abril de 2009. Deste 2008, apesar da taça da Sul-Americana, a torcida colorada esperava mais. O sexto lugar no Brasileiro, embora não desonroso, é modesto para o potencial desse time. Quando ele superou o trauma da saída de Fernandão, era tarde para disputar o título.
Vamos tirar o chapéu para o São Paulo. Sem deixar de assinalar que, em matéria de títulos, quantidade e diversidade são igualmente importantes. Mais do mesmo pode não ser a melhor estratégia de sustentabilidade neste mundo turbulento em que grandes bancos se derretem como geleiras antárticas.
No atual cenário de incertezas, como gostam de dizer os economistas, por que o Inter haveria de botar todos os ovos na mesma cesta? As novas taças colocadas nas prateleiras do Beira-Rio, nos últimos anos, foram conquistadas em trilhas que incluem cidades tão díspares como Dubai, Yokohama, Buenos Aires. Nada contra Goiânia, Florianópolis, Ipatinga. Porém o nosso hexa, senão hepta, octa, já traz o selo multicultural que caracteriza o mundo contemporâneo.
Os jogadores passam, a camisa fica. O tricolor do Morumbi (não confundir com os demais) merece aplauso não apenas pelas novas estrelas colocadas sobre seu emblema, mas também por uma que jamais colocou. Sim, a da Segundona. Os clubes que a possuem tentam ocultá-la a qualquer custo. Arrancam-na, tentam disfarçar o rasgão. Levam a camisa na cerzideira, na calada da noite. Mas não adianta: não há cerzido invisível. Uma estrela da Segundona é para sempre, como os afluentes do Amazonas.
[Bom fim de ano a todos. Até 2009.]
domingo, 14 de dezembro de 2008
domingo, 30 de novembro de 2008
NON DUCOR DUCO
Os ônibus de São Paulo exibem o brasão da cidade no costado da carroceria. Nele se lê: Non ducor duco (Não sou conduzido, conduzo). Sinto ali mais a voz do cobrador do que a do motorista.
Com batidas sutis na barra da catraca, dlim-dlim, o cobrador determina em que momento o veículo deve andar, parar, abrir ou fechar as portas. Decide quem pode viajar sem pagar, descer fora do ponto. Ele organiza o fluxo. Interage com as pessoas. O cobrador é poderoso. É ele quem mexe com o dinheiro.
Empresas de transporte urbano são máquinas de lavar dinheiro, disseram-me. Não sei. Mas é óbvio que girar a catraca é mais rendoso que girar o volante. E não é de hoje. No tempo dos bondes, cobrador era condutor. O seu lema era: "Dlim-dlim, dois pra Light e um pra mim" (não me peçam em latim). Só sei dizer que aquela mutreta talvez recebesse, hoje, o pomposo nome de derivativo.
O motorista não pode derivar nada. Tem de obedecer tudo: trajeto, horário, código de trânsito. É um solitário. O passageiro não fala com ele. Só quem fala é o cobrador, para lhe dar ordens. Dlim-dlim: duas batidinhas com uma moeda ou, se for o caso, com a aliança. O rei reina, mas não governa. O motorista dirige, mas não conduz.
Quem conduz? Os governos? Claro que não. No mundo em que vivemos, os governos só mexem no volante. Quem mexe na catraca são as corporações privadas. Hoje o interesse delas é que os governos as socorram (com dinheiro público) para que sua rangente catraca não trave em definitivo.
Não é do interesse de ninguém que venha à tona o fato de que quem conduz o ônibus é o cobrador. Nem do passageiro. Ele prefere acreditar no motorista. Diz para si próprio que aquele sujeito sentado ao volante pode, sim, fazer as coisas acontecerem a seu modo. Ao nosso modo. Queremos acreditar na democracia.
Mesmo que os governos tomem as rédeas das finanças mundiais, e as coloquem nos eixos, não acho que isso deva inaugurar uma era de estatização, como já profetizam. Tão logo passe a turbulência, o motorista vai ouvir de novo o sinal do cobrador: dlim-dlim. Nós, passageiros, nem vamos notar. Vamos apenas continuar a ler, na lataria do ônibus, aquela sonora frase em latim: Non ducor duco.
Com batidas sutis na barra da catraca, dlim-dlim, o cobrador determina em que momento o veículo deve andar, parar, abrir ou fechar as portas. Decide quem pode viajar sem pagar, descer fora do ponto. Ele organiza o fluxo. Interage com as pessoas. O cobrador é poderoso. É ele quem mexe com o dinheiro.
Empresas de transporte urbano são máquinas de lavar dinheiro, disseram-me. Não sei. Mas é óbvio que girar a catraca é mais rendoso que girar o volante. E não é de hoje. No tempo dos bondes, cobrador era condutor. O seu lema era: "Dlim-dlim, dois pra Light e um pra mim" (não me peçam em latim). Só sei dizer que aquela mutreta talvez recebesse, hoje, o pomposo nome de derivativo.
O motorista não pode derivar nada. Tem de obedecer tudo: trajeto, horário, código de trânsito. É um solitário. O passageiro não fala com ele. Só quem fala é o cobrador, para lhe dar ordens. Dlim-dlim: duas batidinhas com uma moeda ou, se for o caso, com a aliança. O rei reina, mas não governa. O motorista dirige, mas não conduz.
Quem conduz? Os governos? Claro que não. No mundo em que vivemos, os governos só mexem no volante. Quem mexe na catraca são as corporações privadas. Hoje o interesse delas é que os governos as socorram (com dinheiro público) para que sua rangente catraca não trave em definitivo.
Não é do interesse de ninguém que venha à tona o fato de que quem conduz o ônibus é o cobrador. Nem do passageiro. Ele prefere acreditar no motorista. Diz para si próprio que aquele sujeito sentado ao volante pode, sim, fazer as coisas acontecerem a seu modo. Ao nosso modo. Queremos acreditar na democracia.
Mesmo que os governos tomem as rédeas das finanças mundiais, e as coloquem nos eixos, não acho que isso deva inaugurar uma era de estatização, como já profetizam. Tão logo passe a turbulência, o motorista vai ouvir de novo o sinal do cobrador: dlim-dlim. Nós, passageiros, nem vamos notar. Vamos apenas continuar a ler, na lataria do ônibus, aquela sonora frase em latim: Non ducor duco.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
A IDADE DOS METAIS
Ainda recordo a placa de meu primeiro carro: CV 2912. Um Fusca 1973, amarelo, 1500 cilindradas. Ele pisca as lanternas para me mandar lembranças. Para mim, foi a extensão do Submarino Amarelo, como na canção dos Beatles.
Comprei esse Fusca quando cursava o segundo ano da faculdade. Trabalhava como revisor de textos. Um bom emprego, mas nada do outro mundo. Este mundo, sim, é que era bem outro. Para um estudante, comprar um carro zero não era nenhuma façanha. Muitos outros o fizeram. Só mudava a cor.
Comprar um carro novo, hoje, me parece algo menos próximo no horizonte de um jovem de 19 ou 20 anos que só possa contar com suas próprias forças. Sem respaldo familiar, é jogo duro.
Volta e meia, alguém se refere à década de 1960 e à primeira metade da de 1970 como "anos dourados". De fato o foram, do ponto de vista econômico, para a classe média. Com fartas oportunidades, quem se importava com os desmandos da ditadura, a carnificina nos porões? Uma minoria.
Mas essa minoria é quem escreve a história. Por isso "anos dourados" soa tão despropositado quanto "milagre econômico", na linguagem oficial. Um livro didático atual deve ser, no mínimo, reticente em relação a isso. Um dia desses, minha filha veio me perguntar algo sobre a década de 1970 e usou a expressão "anos de chumbo". Surpreendi-me. Eu não sabia que a plúmbea metáfora já era de uso corrente nas escolas.
Foi a crise do petróleo, em 1974, que transformou o ouro em chumbo. Não fosse esse fato externo, creio eu, o regime militar brasileiro teria demorado mais a entregar a rapadura. Funcionar, ele funcionava. Panis et circenses para as massas. Fuscas coloridos para os jovens da classe média.
O que marcou a minha geração foi ter vivido a prosperidade junto com a falta de liberdade. Este dilaceramento nos diferencia das gerações anteriores. Tivemos de engolir ouro e chumbo no mesmo copo.
Espero que os jovens de hoje e do futuro não precisem passar por essa mesma experiência. Não recomendo. Ela produz uma espécie de culpa misturada com nostalgia. Esse desconforto só se desfaz quando aprendemos o óbvio. O rei está nu, como sempre esteve. Mas é preciso escolher outro metal para representar os tempos idos da juventude. Ouro e chumbo são águas passadas.
Comprei esse Fusca quando cursava o segundo ano da faculdade. Trabalhava como revisor de textos. Um bom emprego, mas nada do outro mundo. Este mundo, sim, é que era bem outro. Para um estudante, comprar um carro zero não era nenhuma façanha. Muitos outros o fizeram. Só mudava a cor.
Comprar um carro novo, hoje, me parece algo menos próximo no horizonte de um jovem de 19 ou 20 anos que só possa contar com suas próprias forças. Sem respaldo familiar, é jogo duro.
Volta e meia, alguém se refere à década de 1960 e à primeira metade da de 1970 como "anos dourados". De fato o foram, do ponto de vista econômico, para a classe média. Com fartas oportunidades, quem se importava com os desmandos da ditadura, a carnificina nos porões? Uma minoria.
Mas essa minoria é quem escreve a história. Por isso "anos dourados" soa tão despropositado quanto "milagre econômico", na linguagem oficial. Um livro didático atual deve ser, no mínimo, reticente em relação a isso. Um dia desses, minha filha veio me perguntar algo sobre a década de 1970 e usou a expressão "anos de chumbo". Surpreendi-me. Eu não sabia que a plúmbea metáfora já era de uso corrente nas escolas.
Foi a crise do petróleo, em 1974, que transformou o ouro em chumbo. Não fosse esse fato externo, creio eu, o regime militar brasileiro teria demorado mais a entregar a rapadura. Funcionar, ele funcionava. Panis et circenses para as massas. Fuscas coloridos para os jovens da classe média.
O que marcou a minha geração foi ter vivido a prosperidade junto com a falta de liberdade. Este dilaceramento nos diferencia das gerações anteriores. Tivemos de engolir ouro e chumbo no mesmo copo.
Espero que os jovens de hoje e do futuro não precisem passar por essa mesma experiência. Não recomendo. Ela produz uma espécie de culpa misturada com nostalgia. Esse desconforto só se desfaz quando aprendemos o óbvio. O rei está nu, como sempre esteve. Mas é preciso escolher outro metal para representar os tempos idos da juventude. Ouro e chumbo são águas passadas.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
A MANCHA BRANCA
O filme Ensaio sobre a cegueira não é uma obra-prima. Tem chão até lá. Mas consegue transpor à tela uma alegoria acachapante da crise de percepção em que vivemos hoje.
Tanto no filme de Fernando Meirelles quanto no romance homônimo de Saramago, no qual se baseia, a epidemia de cegueira se expressa numa mancha branca. Branca, não preta, como em geral se imagina. Em vez da falta de luz, um excesso, uma exorbitância. O efeito é o mesmo: a paralisia.
Não duvido de que estejamos mesmo diante do declínio do império americano, o império dos números, do excessivo. As torres do World Trade Center continuam a ruir, e os bancos quebram. Mas também pode ser outro exagero midiático como a gripe aviária e o "bug do milênio".
Quem consegue, hoje, separar o joio do trigo? Uma breve zapeada na memória. Alan Greenspan nos dizia que o mercado tem juízo, está disposto a praticar o bem. E Lula assegurava: o Brasil está a salvo da turbulência mundial, Deus é brasileiro.
Qualquer tolice pode ser sustentada em números. Eles hoje são tão velozes, tão voláteis, que se tornaram evasivos como as partículas sub-atômicas. E a mídia funciona como um grande acelerador. Qualquer irrelevância pisca com as cores do arco-íris nas telas de cristal líquido.
Ouço dizer que a turbulência atual se origina da crise de confiança no sistema financeiro. Portanto, é imponderável como qualquer epidemia. Nunca ouvi ninguém dizer o que me parece plausível: que a crise de confiança, por sua vez, resulta do excesso de informação.
O vomitório de números a que estamos submetidos, no metrô ou no elevador, nos ilude com a falsa sensação de que estamos bem informados. Patranhas. Se a velocidade da informação supera nossa capacidade de processamento, ela é desumana. Não nos serve, nos cega.
Alguns opiniam que a crise atual, por mais dura que seja, servirá para sanear a economia mundial. Oxalá venha a servir também para re-humanizar a mídia. Se os meios de comunicação funcionam como aceleradores de partículas, jamais haverá luz no fim do túnel. A mancha branca é igual à mancha preta.
Tanto no filme de Fernando Meirelles quanto no romance homônimo de Saramago, no qual se baseia, a epidemia de cegueira se expressa numa mancha branca. Branca, não preta, como em geral se imagina. Em vez da falta de luz, um excesso, uma exorbitância. O efeito é o mesmo: a paralisia.
Não duvido de que estejamos mesmo diante do declínio do império americano, o império dos números, do excessivo. As torres do World Trade Center continuam a ruir, e os bancos quebram. Mas também pode ser outro exagero midiático como a gripe aviária e o "bug do milênio".
Quem consegue, hoje, separar o joio do trigo? Uma breve zapeada na memória. Alan Greenspan nos dizia que o mercado tem juízo, está disposto a praticar o bem. E Lula assegurava: o Brasil está a salvo da turbulência mundial, Deus é brasileiro.
Qualquer tolice pode ser sustentada em números. Eles hoje são tão velozes, tão voláteis, que se tornaram evasivos como as partículas sub-atômicas. E a mídia funciona como um grande acelerador. Qualquer irrelevância pisca com as cores do arco-íris nas telas de cristal líquido.
Ouço dizer que a turbulência atual se origina da crise de confiança no sistema financeiro. Portanto, é imponderável como qualquer epidemia. Nunca ouvi ninguém dizer o que me parece plausível: que a crise de confiança, por sua vez, resulta do excesso de informação.
O vomitório de números a que estamos submetidos, no metrô ou no elevador, nos ilude com a falsa sensação de que estamos bem informados. Patranhas. Se a velocidade da informação supera nossa capacidade de processamento, ela é desumana. Não nos serve, nos cega.
Alguns opiniam que a crise atual, por mais dura que seja, servirá para sanear a economia mundial. Oxalá venha a servir também para re-humanizar a mídia. Se os meios de comunicação funcionam como aceleradores de partículas, jamais haverá luz no fim do túnel. A mancha branca é igual à mancha preta.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
O SILÊNCIO DE CACARECO
Em outubro de 1958, um rinoceronte-negro do zoológico de São Paulo apelidado Cacareco recebeu 100 mil votos para vereador. O caso ficou famoso. O presidente Juscelino Kubitschek comentou:
> Não sou intérprete de acontecimentos sociais e políticos. Aguardo as interpretações do próprio povo.
Tendo eu 5 anos, na época, não pude dar a interpretação que o presidente pediu. Tentarei hoje, aos 55, se já não se faz tarde, saldar meu débito com JK.
O silencioso Cacareco trouxe das savanas da África uma das mais eloqüentes lições aos brasileiros: o voto tem de ser voluntário. Senão é democracia de araque, de zoológico, para crianças de 5 anos. Mas não aprendemos a lição. Nunca vi uma matéria mostrando os países onde o voto é livre e onde é obrigatório. Por que a mídia nos nega tal informação? Ou por que a subestima?
Sempre que posso me manifesto a favor do voto voluntário. Uma vez cheguei a grudar um reclame no vidro do carro. Hoje, olhando pelo retrovisor, acho aquilo meio ridículo. Mas o que não fica ridículo com o passar dos anos? Uma declaração de amor? Uma calça boca-de-sino? Um político no qual depositamos nossas esperanças?
Voto voluntário não é para ficar em casa, de pijama, mas para ir votar com convicção. Antes da urna, o espelho. A decisão de ir votar ou não, por ser íntima, é mais civilizadora do que aquela que poderá vir depois, no candidato. Ela nos faria amadurecer.
< O Estado não tem interesse em nos transformar em adultos.
Ouvi esta frase de uma amiga, sábado, numa conversa sobre voto voluntário. Tomei nota, aí está. Espero um dia vê-la presente nas escolas, nos bares, na mídia, mas na forma de pergunta:
> Por que o Estado não tem interesse em nos transformar em adultos?
Pergunta incômoda. Obriga-nos a decifrar os 900 quilos de silêncio do rinoceronte Cacareco, que apesar do nome era fêmea.
Muitos que conheço são a favor do voto voluntário, mas o consideram coisa de somenos. Desculpem. Continuo a achá-lo tão essencial quanto o voto feminino, se quisermos chamar isso aí de democracia. Hoje damos como favas contadas a participação feminina na política. No entanto, foi uma conquista tardia.
Enquanto dá, vamos empurrando tudo com a barriga. Não sei se esta é a resposta que JK esperava. Mas foi ele que nos passou a bola, meio século atrás.
> Não sou intérprete de acontecimentos sociais e políticos. Aguardo as interpretações do próprio povo.
Tendo eu 5 anos, na época, não pude dar a interpretação que o presidente pediu. Tentarei hoje, aos 55, se já não se faz tarde, saldar meu débito com JK.
O silencioso Cacareco trouxe das savanas da África uma das mais eloqüentes lições aos brasileiros: o voto tem de ser voluntário. Senão é democracia de araque, de zoológico, para crianças de 5 anos. Mas não aprendemos a lição. Nunca vi uma matéria mostrando os países onde o voto é livre e onde é obrigatório. Por que a mídia nos nega tal informação? Ou por que a subestima?
Sempre que posso me manifesto a favor do voto voluntário. Uma vez cheguei a grudar um reclame no vidro do carro. Hoje, olhando pelo retrovisor, acho aquilo meio ridículo. Mas o que não fica ridículo com o passar dos anos? Uma declaração de amor? Uma calça boca-de-sino? Um político no qual depositamos nossas esperanças?
Voto voluntário não é para ficar em casa, de pijama, mas para ir votar com convicção. Antes da urna, o espelho. A decisão de ir votar ou não, por ser íntima, é mais civilizadora do que aquela que poderá vir depois, no candidato. Ela nos faria amadurecer.
< O Estado não tem interesse em nos transformar em adultos.
Ouvi esta frase de uma amiga, sábado, numa conversa sobre voto voluntário. Tomei nota, aí está. Espero um dia vê-la presente nas escolas, nos bares, na mídia, mas na forma de pergunta:
> Por que o Estado não tem interesse em nos transformar em adultos?
Pergunta incômoda. Obriga-nos a decifrar os 900 quilos de silêncio do rinoceronte Cacareco, que apesar do nome era fêmea.
Muitos que conheço são a favor do voto voluntário, mas o consideram coisa de somenos. Desculpem. Continuo a achá-lo tão essencial quanto o voto feminino, se quisermos chamar isso aí de democracia. Hoje damos como favas contadas a participação feminina na política. No entanto, foi uma conquista tardia.
Enquanto dá, vamos empurrando tudo com a barriga. Não sei se esta é a resposta que JK esperava. Mas foi ele que nos passou a bola, meio século atrás.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
AGORA AGUENTA
Se o Guinness não fosse um registro de recordes, mas de paliativos, o Brasil haveria de ser citado nele com maior freqüência. No tempo da ditadura, a dita cuja permitiu às revistas masculinas exibir apenas um seio feminino por vez, em cada foto.
Sim, era pouco para as nossas expectativas. Mas era muito para os ditames da época, a qual hoje se convencionou chamar de "anos de chumbo". A tal da abertura "lenta, gradual e segura" preconizada pelo general Geisel não se aplicava apenas à área política, mas também aos bons costumes, a começar pelo sutiã.
Falo de seios, se me perdoam a analogia, para poder falar do trema. Isto mesmo, da reforma ortográfica que vem aí. Em breve, o trema deixa de existir em todo o território nacional, após tantos e tantos anos de bons serviços prestados ao nosso idioma. O liqüidificador vai triturar, em seu copo em forma de u, os dois pontinhos que lhe servem de tampa.
A meu ver, é uma reforma ortográfica muito radical. O presidente Lula, que acaba de sancioná-la, devia antes ter-se inspirado no gradualismo seguro do general Geisel. Até porque também o apregoa, com outras palavras, quando se refere às medidas econômicas de seu governo.
No tocante a medidas ortográficas, um gesto mais sensato seria revogar apenas um dos pontos do trema de cada vez. Por que não usar o mesmo espírito de contenção dos anos 70, se ele funcionou tão bem na questão dos seios? Além disso, é temerário acabar com o trema no Brasil todo, de uma vez só. Devia ser só em Curitiba, de início. Sempre se diz que, por tratar-se de uma capital arraigada aos hábitos, é o local ideal para se testar lançamentos de produtos.
O trema, para muitos, é produto da imaginação. Milhões de brasileiros, se consultados, diriam que esse vetusto sinal gráfico é cousa que já não existe há muito tempo, como a espada e o espartilho. No entanto, o trema serve para alguma coisa. Não deviam triturá-lo no liqüidificador, como fez o presidente. Inútil, mesmo, é o pingo do i. Mas esse é imexível, diria aquele ministro.
Sim, era pouco para as nossas expectativas. Mas era muito para os ditames da época, a qual hoje se convencionou chamar de "anos de chumbo". A tal da abertura "lenta, gradual e segura" preconizada pelo general Geisel não se aplicava apenas à área política, mas também aos bons costumes, a começar pelo sutiã.
Falo de seios, se me perdoam a analogia, para poder falar do trema. Isto mesmo, da reforma ortográfica que vem aí. Em breve, o trema deixa de existir em todo o território nacional, após tantos e tantos anos de bons serviços prestados ao nosso idioma. O liqüidificador vai triturar, em seu copo em forma de u, os dois pontinhos que lhe servem de tampa.
A meu ver, é uma reforma ortográfica muito radical. O presidente Lula, que acaba de sancioná-la, devia antes ter-se inspirado no gradualismo seguro do general Geisel. Até porque também o apregoa, com outras palavras, quando se refere às medidas econômicas de seu governo.
No tocante a medidas ortográficas, um gesto mais sensato seria revogar apenas um dos pontos do trema de cada vez. Por que não usar o mesmo espírito de contenção dos anos 70, se ele funcionou tão bem na questão dos seios? Além disso, é temerário acabar com o trema no Brasil todo, de uma vez só. Devia ser só em Curitiba, de início. Sempre se diz que, por tratar-se de uma capital arraigada aos hábitos, é o local ideal para se testar lançamentos de produtos.
O trema, para muitos, é produto da imaginação. Milhões de brasileiros, se consultados, diriam que esse vetusto sinal gráfico é cousa que já não existe há muito tempo, como a espada e o espartilho. No entanto, o trema serve para alguma coisa. Não deviam triturá-lo no liqüidificador, como fez o presidente. Inútil, mesmo, é o pingo do i. Mas esse é imexível, diria aquele ministro.
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
A FÚRIA DE POSEIDON
Quando há tempestade na economia, a mídia pronuncia a palavra Mercado como se dissesse Poseidon. Ou seja, uma entidade sobrenatural que faz o que lhe dá na telha com os mares e os ventos.
Até aí morreu Neves. Sabemos que o Mercado é nossa primeira divindade planetária. Povos de outrora pelejavam para impor suas crenças aos outros. Era a forma cabal de domínio. Hoje, de norte a sul, de leste a oeste, todos nos curvamos diante do mesmo deus, cujo tridente é o vil metal, a bagalhoça. Não sei se devemos nos orgulhar disso.
A mídia usa expressões do tipo "o Mercado está nervoso", "acalmar o Mercado", "o Mercado amanheceu otimista..." Nem parece que o Mercado somos nós mesmos. A soma das nossas vontades.
Justo por isso, o Mercado é cousa menos concreta que o poste, a rede de esgotos, a próxima frente fria. Tudo isso continuaria por aí mesmo que todos nós deixássemos de existir. O Mercado, não. Ele desapareceria com o último suspiro do penúltimo dos moicanos. Sim, porque o último não teria mais com quem negociar. A quem iria hipotecar sua casa?
Nos Estados Unidos, o sumo-sacerdote quer torrar centenas de bilhões de dólares para que o Mercado deponha o tridente com o qual ameaça os súditos. Responsáveis estes, já se disse, pelo sopro vital da própria divindade. Tragédia grega, hein? O cara acaba por arcar com o prejuízo da besteira cometida lá atrás, por ingenuidade. Pouco importa. Ele vai suar para pagar a conta da hecatombe. A desculpa é a mesma de sempre: aplacar a fúria divina.
Nos épicos gregos, o narrador descortina as ações dos deuses com naturalidade. Parece enxergá-las de modo tão nítido quanto o que se passa à sua volta. Nossos pósteros também vão estranhar a linguagem subserviente que devotamos à divindade do momento. O tremor nos domina quando o sumo-sacerdote diz que o tridente está tinindo, a Bolsa fechou em baixa.
As gerações futuras (mais inteligentes que nós, espero) vão se dar conta de que, no fundo, o Mercado não existe. O que existe é o mercadinho da esquina.
Até aí morreu Neves. Sabemos que o Mercado é nossa primeira divindade planetária. Povos de outrora pelejavam para impor suas crenças aos outros. Era a forma cabal de domínio. Hoje, de norte a sul, de leste a oeste, todos nos curvamos diante do mesmo deus, cujo tridente é o vil metal, a bagalhoça. Não sei se devemos nos orgulhar disso.
A mídia usa expressões do tipo "o Mercado está nervoso", "acalmar o Mercado", "o Mercado amanheceu otimista..." Nem parece que o Mercado somos nós mesmos. A soma das nossas vontades.
Justo por isso, o Mercado é cousa menos concreta que o poste, a rede de esgotos, a próxima frente fria. Tudo isso continuaria por aí mesmo que todos nós deixássemos de existir. O Mercado, não. Ele desapareceria com o último suspiro do penúltimo dos moicanos. Sim, porque o último não teria mais com quem negociar. A quem iria hipotecar sua casa?
Nos Estados Unidos, o sumo-sacerdote quer torrar centenas de bilhões de dólares para que o Mercado deponha o tridente com o qual ameaça os súditos. Responsáveis estes, já se disse, pelo sopro vital da própria divindade. Tragédia grega, hein? O cara acaba por arcar com o prejuízo da besteira cometida lá atrás, por ingenuidade. Pouco importa. Ele vai suar para pagar a conta da hecatombe. A desculpa é a mesma de sempre: aplacar a fúria divina.
Nos épicos gregos, o narrador descortina as ações dos deuses com naturalidade. Parece enxergá-las de modo tão nítido quanto o que se passa à sua volta. Nossos pósteros também vão estranhar a linguagem subserviente que devotamos à divindade do momento. O tremor nos domina quando o sumo-sacerdote diz que o tridente está tinindo, a Bolsa fechou em baixa.
As gerações futuras (mais inteligentes que nós, espero) vão se dar conta de que, no fundo, o Mercado não existe. O que existe é o mercadinho da esquina.
domingo, 7 de setembro de 2008
ALGUÉM QUE PARTE
Um antigo colega de faculdade me escreve contando sua aflição. A filha e o genro receberam boas propostas de trabalho em países distantes. Vão por um ano, mas no íntimo (acredita ele) com o desejo de emigrar em definitivo.
"Não quero ser paranóico, mas quem sabe no futuro terei que me encontrar com uma neta ou um neto com quem nunca convivi, falando um idioma que desconheço, com uma cultura da qual não saberei nada", escreve meu colega. E mais adiante: "Será que não estou fora da realidade? Será que o homem contemporâneo é tão globalizado, que se torna na prática um apátrida? Gostaria de saber o que você pensa a respeito."
Meu colega me coloca numa sinuca de bico. Falar de pátria num sete de setembro? E com essa grampolinagem que corre por aí? Mas não vou fugir do pano verde. Quem sabe até pareça patriotismo.
A boa pátria é aquela que cabe na mochila. Andar pelo mundo, vendo outras coisas, refina o nacionalismo prêt-à-porter que nos incutem na escola. Sim, aquele mesmo que os locutores esportivos trombeteiam nos jogos da seleção.
A versão saudável do patriotismo é serena, portátil, light, se diria até. Pode fazer o cara parecer apátrida, quando não é nada disso. A meu ver, a globalização no mundo dos negócios e da tecnologia não atinge as camadas fundas da nossa subjetividade. Tudo está como dantes no quartel de Abrantes.
Não, meu amigo, você não está fora da realidade. Estamos todos bem dentro dela. Mais dentro que água-de-coco, como diz o outro. Nada mais humano que a chamada "síndrome do ninho vazio", essa que você vive por antecipação. Tenho amigos às voltas com a inquietude de ver os filhos partir para longe. Ou para perto, tanto faz. Mas partir, eis o xis da questão.
Partir é sempre uma traição. Mesmo quando não é. Mas isso passa, você sabe. Não pense no ronco da decolagem. Pense em quando você desembarcar no Japão para visitar sua filha. Quando voltar ao Brasil, sua pátria será maior do que é hoje. Mas isso você não vai conta para ninguém, claro. E não esqueça: o que se globaliza é a casca. Não a água-de-coco.
"Não quero ser paranóico, mas quem sabe no futuro terei que me encontrar com uma neta ou um neto com quem nunca convivi, falando um idioma que desconheço, com uma cultura da qual não saberei nada", escreve meu colega. E mais adiante: "Será que não estou fora da realidade? Será que o homem contemporâneo é tão globalizado, que se torna na prática um apátrida? Gostaria de saber o que você pensa a respeito."
Meu colega me coloca numa sinuca de bico. Falar de pátria num sete de setembro? E com essa grampolinagem que corre por aí? Mas não vou fugir do pano verde. Quem sabe até pareça patriotismo.
A boa pátria é aquela que cabe na mochila. Andar pelo mundo, vendo outras coisas, refina o nacionalismo prêt-à-porter que nos incutem na escola. Sim, aquele mesmo que os locutores esportivos trombeteiam nos jogos da seleção.
A versão saudável do patriotismo é serena, portátil, light, se diria até. Pode fazer o cara parecer apátrida, quando não é nada disso. A meu ver, a globalização no mundo dos negócios e da tecnologia não atinge as camadas fundas da nossa subjetividade. Tudo está como dantes no quartel de Abrantes.
Não, meu amigo, você não está fora da realidade. Estamos todos bem dentro dela. Mais dentro que água-de-coco, como diz o outro. Nada mais humano que a chamada "síndrome do ninho vazio", essa que você vive por antecipação. Tenho amigos às voltas com a inquietude de ver os filhos partir para longe. Ou para perto, tanto faz. Mas partir, eis o xis da questão.
Partir é sempre uma traição. Mesmo quando não é. Mas isso passa, você sabe. Não pense no ronco da decolagem. Pense em quando você desembarcar no Japão para visitar sua filha. Quando voltar ao Brasil, sua pátria será maior do que é hoje. Mas isso você não vai conta para ninguém, claro. E não esqueça: o que se globaliza é a casca. Não a água-de-coco.
domingo, 24 de agosto de 2008
O BONDE E O ZEPELIM
Mais de 40 cidades americanas redescobrem as vantagens de um sistema de bondes nas ruas centrais. Na Alemanha, a empresa Zeppelin, que entre 1908 e 1937 produziu 119 dirigíveis na região de Friedrichshafen, pretende retomar a produção em larga escala.
O século XXI parece ensaiar um revival de tecnologias de transporte tidas como obsoletas. No caso do zepelim, banido após a tragédia com o Hindenburg, em 1937, os novos não se destinariam mais a linhas regulares de passageiros, mas ao turismo, publicidade, transmissão de eventos, monitoramento ambiental e de redes elétricas, observação de multidões, prevenção de atos terroristas, pesquisas científicas e até como ocasionais substitutos dos helicópteros.
É curioso ver que o mesmo bife do almoço pode nos ser servido, à milanesa, na hora do jantar. Agora são os jovens que andam com mania de discos de vinil. Mas, quando se trata de tecnologia, e não de modismos, o revival custa caro. Custaria menos se o tradicional não fosse descartado de modo sumário.
Sociedades sensatas arranjam maneiras de fazer o novo conviver com o velho. A premissa inicial é de integração, e não de substituição. Claro, isso é querer demais num país como o nosso, que se modernizou pelo consumo, e não pela produção. Restou-nos essa pressa em virar a página. Uma ânsia.
Quando os bondes de Rio Grande (foto) sumiram, nos anos 60, a cidade respirou aliviada. O prefeito não sossegou enquanto não arrancou os trilhos de todas as ruas, como se aquilo fosse uma vergonha municipal. Até a simples lembrança dos bondes devia ser erradicada.
Como são as coisas. Nos anos 30, em uma cidade do interior paulista, se não me engano, o prefeito mandara pintar riscos paralelos nas ruas para dar a ilusão de trilhos a quem os observasse do alto. A localidade estava na rota do zepelim. O que é que os illustres passageiros aéreos iriam pensar de um lugar que nem bondes tinha?
Em São Paulo, agora se discute como fazer para restringir a circulação de carros no centro, sem causar convulsão social. Está na hora de alguém pensar em criar algumas pequenas linhas circulares de bondes. Antes que o zepelim passe. Lá de cima, eles vão ver que nem mesmo pintamos os riscos no asfalto.
O século XXI parece ensaiar um revival de tecnologias de transporte tidas como obsoletas. No caso do zepelim, banido após a tragédia com o Hindenburg, em 1937, os novos não se destinariam mais a linhas regulares de passageiros, mas ao turismo, publicidade, transmissão de eventos, monitoramento ambiental e de redes elétricas, observação de multidões, prevenção de atos terroristas, pesquisas científicas e até como ocasionais substitutos dos helicópteros.
É curioso ver que o mesmo bife do almoço pode nos ser servido, à milanesa, na hora do jantar. Agora são os jovens que andam com mania de discos de vinil. Mas, quando se trata de tecnologia, e não de modismos, o revival custa caro. Custaria menos se o tradicional não fosse descartado de modo sumário.
Sociedades sensatas arranjam maneiras de fazer o novo conviver com o velho. A premissa inicial é de integração, e não de substituição. Claro, isso é querer demais num país como o nosso, que se modernizou pelo consumo, e não pela produção. Restou-nos essa pressa em virar a página. Uma ânsia.
Quando os bondes de Rio Grande (foto) sumiram, nos anos 60, a cidade respirou aliviada. O prefeito não sossegou enquanto não arrancou os trilhos de todas as ruas, como se aquilo fosse uma vergonha municipal. Até a simples lembrança dos bondes devia ser erradicada.
Como são as coisas. Nos anos 30, em uma cidade do interior paulista, se não me engano, o prefeito mandara pintar riscos paralelos nas ruas para dar a ilusão de trilhos a quem os observasse do alto. A localidade estava na rota do zepelim. O que é que os illustres passageiros aéreos iriam pensar de um lugar que nem bondes tinha?
Em São Paulo, agora se discute como fazer para restringir a circulação de carros no centro, sem causar convulsão social. Está na hora de alguém pensar em criar algumas pequenas linhas circulares de bondes. Antes que o zepelim passe. Lá de cima, eles vão ver que nem mesmo pintamos os riscos no asfalto.
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
O OLHO-MAU SALTITANTE
Meu amigo Mouzar Benedito é jornalista, escritor e, como ele próprio diz, saciólogo. Ou seja, um estudioso do Saci, o mais abrangente mito brasileiro, segundo me convence com seus argumentos.
Fui presa fácil, admito. O Saci é o mascote colorado. Houve até uma churrascaria no Beira-Rio com esse nome, no tempo das galochas. Sei bastante sobre o Inter. Mas não o bastante sobre o Saci.
No anuário que Mouzar lançou há dois anos, fiquei sabendo que existem outros sacis além do Pererê (çaa cy perereg, "olho-mau saltitante", em guarani). E também que esse mito sintetiza as culturas formadoras da identidade nacional: a indígena, a africana e a européia (a colorada também, se me permitem).
Mouzar é um ativista da Sociedade dos Observadores do Saci (www.sosaci.org), fundada em 2003. A idéia é promover o simpático traquinas e outras lendas brasileiras que todos nós aprendemos, mas esquecemos. A cada ano ganha força a comemoração do Dia Nacional do Saci e Seus Amigos, em 31 de outubro. A data foi escolhida em contraponto ao halloween (raloin, prefere Mouzar), a bruxaria americanófila disseminada em São Paulo.
Os observadores propõem o Saci como mascote da copa de 2014, a ser disputada no Brasil. Grande sacada. Mas a parada é dura, eles sabem disso. Não faltarão marqueteiros ávidos para abocanhar verbas públicas, criar um bonequinho qualquer e ir esquiar em Aspen. E o governo (seja qual for) tentará descartar o Saci, que já está "pronto", e assim não daria para molhar a mão dos apaniguados.
Imaginem o ministro, cercado de microfones, a expor o argumento obtuso, mas previsível, de que um personagem perneta não serve como mascote de uma competição de futebol. E o movimento negro a rebater que isso é racismo etc. Imaginem as piadas no balcão da padaria.
Claro que o Saci pode -- e deve -- ser o nosso mascote. No futebol, que eu saiba, só se chuta com um pé de cada vez. O Saci nem precisa do outro. Se nos falta a magia, então o que é que nos resta?
Com sorte, ainda vamos ter um presidente saciólogo. Outro sociólogo é que seria temerário. Esse nos convenceria de que está na hora de privatizar o Saci.
Fui presa fácil, admito. O Saci é o mascote colorado. Houve até uma churrascaria no Beira-Rio com esse nome, no tempo das galochas. Sei bastante sobre o Inter. Mas não o bastante sobre o Saci.
No anuário que Mouzar lançou há dois anos, fiquei sabendo que existem outros sacis além do Pererê (çaa cy perereg, "olho-mau saltitante", em guarani). E também que esse mito sintetiza as culturas formadoras da identidade nacional: a indígena, a africana e a européia (a colorada também, se me permitem).
Mouzar é um ativista da Sociedade dos Observadores do Saci (www.sosaci.org), fundada em 2003. A idéia é promover o simpático traquinas e outras lendas brasileiras que todos nós aprendemos, mas esquecemos. A cada ano ganha força a comemoração do Dia Nacional do Saci e Seus Amigos, em 31 de outubro. A data foi escolhida em contraponto ao halloween (raloin, prefere Mouzar), a bruxaria americanófila disseminada em São Paulo.
Os observadores propõem o Saci como mascote da copa de 2014, a ser disputada no Brasil. Grande sacada. Mas a parada é dura, eles sabem disso. Não faltarão marqueteiros ávidos para abocanhar verbas públicas, criar um bonequinho qualquer e ir esquiar em Aspen. E o governo (seja qual for) tentará descartar o Saci, que já está "pronto", e assim não daria para molhar a mão dos apaniguados.
Imaginem o ministro, cercado de microfones, a expor o argumento obtuso, mas previsível, de que um personagem perneta não serve como mascote de uma competição de futebol. E o movimento negro a rebater que isso é racismo etc. Imaginem as piadas no balcão da padaria.
Claro que o Saci pode -- e deve -- ser o nosso mascote. No futebol, que eu saiba, só se chuta com um pé de cada vez. O Saci nem precisa do outro. Se nos falta a magia, então o que é que nos resta?
Com sorte, ainda vamos ter um presidente saciólogo. Outro sociólogo é que seria temerário. Esse nos convenceria de que está na hora de privatizar o Saci.
domingo, 27 de julho de 2008
NOOTEBOOM E O VAZIO
O escritor holandês Cees Nooteboom, que há pouco esteve no Brasil, é um globe-trotter. Deixou seu país aos dezessete anos em busca dos cenários luminosos da Europa meridional: Provença, Itália e por fim a Espanha, onde se fixou. Mora lá boa parte do ano, quando não está em trânsito por outras longitudes.
Seu livro Caminhos para Santiago – Desvios pelas terras e pela história da Espanha é uma obra formidável no gênero narrativas de viagem. Poucas vezes alguém conseguiu penetrar tão fundo nas veredas de um sertão que não é o seu, de nascença.
Numa entrevista em Paraty, perguntei a Nooteboom por que se encantou com a Espanha. Ele saiu pela tangente. Refletiu: nós nos apaixonamos por um país assim como por uma mulher, sem saber bem por que esta, e não aquela. Depois, respondeu a contento. Disse que a Espanha o fascina por ter uma zona quase desabitada no centro, em contraste com sua superpovoada Holanda. Para ele, encontrar esse vazio foi encontrar a liberdade.
No último romance de Nooteboom, Paraíso perdido, duas garotas de São Paulo se aventuram pela Austrália. Uma delas se envolve com um aborígene e sente uma atração irresistível pelo deserto (o vazio) que há no meio do país.
Não vou abusar da paciência de ninguém com a hipótese de que essa garota possa ser o alter ego do autor. Nem forçar a barra ao comparar o vazio demográfico, que atrai Nooteboom e sua personagem, ao vazio de que falam os budistas, o almejado estado mental em que cessam as necessidades e pensamentos.
Porém não deixa de ser significativo que viajantes sensíveis consigam se mover em busca de espaços amplos e desabitados. Ali deve haver energias sutis que as agências de turismo ainda não conseguiram empacotar.
Quantos vazios nos restam neste mundo globalizado por Deus, e bonito por natureza? Muitos, segundo Nooteboom. Ele viaja, viaja, viaja, e se dá conta de que cada vez viajou menos, pois ao viajar detecta vazios insuspeitados, na contramão do turismo.
O turista comum vive na ânsia ou na ilusão de que é possível conhecer tudo, ou quase tudo. Não dá valor ao vazio, nem se importa com isso. Vai ver, lá estão as vozes que o cara não quer ouvir.
Seu livro Caminhos para Santiago – Desvios pelas terras e pela história da Espanha é uma obra formidável no gênero narrativas de viagem. Poucas vezes alguém conseguiu penetrar tão fundo nas veredas de um sertão que não é o seu, de nascença.
Numa entrevista em Paraty, perguntei a Nooteboom por que se encantou com a Espanha. Ele saiu pela tangente. Refletiu: nós nos apaixonamos por um país assim como por uma mulher, sem saber bem por que esta, e não aquela. Depois, respondeu a contento. Disse que a Espanha o fascina por ter uma zona quase desabitada no centro, em contraste com sua superpovoada Holanda. Para ele, encontrar esse vazio foi encontrar a liberdade.
No último romance de Nooteboom, Paraíso perdido, duas garotas de São Paulo se aventuram pela Austrália. Uma delas se envolve com um aborígene e sente uma atração irresistível pelo deserto (o vazio) que há no meio do país.
Não vou abusar da paciência de ninguém com a hipótese de que essa garota possa ser o alter ego do autor. Nem forçar a barra ao comparar o vazio demográfico, que atrai Nooteboom e sua personagem, ao vazio de que falam os budistas, o almejado estado mental em que cessam as necessidades e pensamentos.
Porém não deixa de ser significativo que viajantes sensíveis consigam se mover em busca de espaços amplos e desabitados. Ali deve haver energias sutis que as agências de turismo ainda não conseguiram empacotar.
Quantos vazios nos restam neste mundo globalizado por Deus, e bonito por natureza? Muitos, segundo Nooteboom. Ele viaja, viaja, viaja, e se dá conta de que cada vez viajou menos, pois ao viajar detecta vazios insuspeitados, na contramão do turismo.
O turista comum vive na ânsia ou na ilusão de que é possível conhecer tudo, ou quase tudo. Não dá valor ao vazio, nem se importa com isso. Vai ver, lá estão as vozes que o cara não quer ouvir.
domingo, 13 de julho de 2008
PARATY E PARA TODOS
O primeiro milagre da Flip é transformar o centro histórico de Paraty no umbigo do mundo. Esquecemos que logo ali, do outro lado das correntes, está uma cidade brasileira (veja a foto) como qualquer outra: poluição visual, cheiro de esgoto, mamitex, igrejas evangélicas e antenas parabólicas. Ora, direis, às favas com a realidade!
Quando cheguei para cobrir a Flip, notei uma dúzia de traineiras atracadas defronte à praça. Vazias. Formavam uma seqüência de cores que tinha algo de irreal. Pensei: alguém deve ter disposto os barcos desse modo para compor o cenário da festa.
Dias antes, em São Paulo, uma amiga italiana me dizia que os panoramas rurais da Toscana são encantadores porque cada coisa que se vê (um bosque, um muro, um caminho) está ali por opção estética, e não prática. A Toscana não foi feita por camponeses, mas por artistas. Do mesmo modo, os barcos de Paraty, supus, não estariam dispostos daquele jeito por causa dos pescadores, mas dos decoradores.
Nada contra. Se a vida não vale pelas astúcias, pelas estratégias, pelas fantasias, vai valer pelo quê? E o que fazem, com palavras e frases, aqueles autores da Flip que aplaudimos com fervor, em alguns casos, senão arrumar os bosques, os barcos, os muros, os caminhos de um jeito que seus textos nos interessem mais que a vida cotidiana?
Eis o segundo milagre da Flip. Mergulhamos por cinco dias num alegre rebuliço de idéias, e até parece que no Brasil, em cada quarteirão, há um escritor para quatro leitores. Mesmo sabendo que, na realidade, a proporção é inversa: temos quatro escritores para cada leitor. O IBGE o provaria com um pé nas costas, se quisesse. Espero que não queira.
No período colonial, até o IBGE teria sido ludibriado pelo senso ficcional de Paraty. Alguém me contou que aquela profusão de portas e janelas, às vezes incrustados em fachadas soltas, sem nada atrás, já era um jeitinho brasileiro para dar um upgrade no orçamento. Contavam portas e janelas, não pessoas, para fazer uma localidade passar de freguesia a vila, ou algo assim.
Se é verdade, não sei. Importa? Paraty (a começar pelo ípsilon) é pura ficção. Com a Flip, mais ainda. Aqueles barcos arrumadinhos para a festa já eram uma história que alguém tentava contar.
Quando cheguei para cobrir a Flip, notei uma dúzia de traineiras atracadas defronte à praça. Vazias. Formavam uma seqüência de cores que tinha algo de irreal. Pensei: alguém deve ter disposto os barcos desse modo para compor o cenário da festa.
Dias antes, em São Paulo, uma amiga italiana me dizia que os panoramas rurais da Toscana são encantadores porque cada coisa que se vê (um bosque, um muro, um caminho) está ali por opção estética, e não prática. A Toscana não foi feita por camponeses, mas por artistas. Do mesmo modo, os barcos de Paraty, supus, não estariam dispostos daquele jeito por causa dos pescadores, mas dos decoradores.
Nada contra. Se a vida não vale pelas astúcias, pelas estratégias, pelas fantasias, vai valer pelo quê? E o que fazem, com palavras e frases, aqueles autores da Flip que aplaudimos com fervor, em alguns casos, senão arrumar os bosques, os barcos, os muros, os caminhos de um jeito que seus textos nos interessem mais que a vida cotidiana?
Eis o segundo milagre da Flip. Mergulhamos por cinco dias num alegre rebuliço de idéias, e até parece que no Brasil, em cada quarteirão, há um escritor para quatro leitores. Mesmo sabendo que, na realidade, a proporção é inversa: temos quatro escritores para cada leitor. O IBGE o provaria com um pé nas costas, se quisesse. Espero que não queira.
No período colonial, até o IBGE teria sido ludibriado pelo senso ficcional de Paraty. Alguém me contou que aquela profusão de portas e janelas, às vezes incrustados em fachadas soltas, sem nada atrás, já era um jeitinho brasileiro para dar um upgrade no orçamento. Contavam portas e janelas, não pessoas, para fazer uma localidade passar de freguesia a vila, ou algo assim.
Se é verdade, não sei. Importa? Paraty (a começar pelo ípsilon) é pura ficção. Com a Flip, mais ainda. Aqueles barcos arrumadinhos para a festa já eram uma história que alguém tentava contar.
domingo, 29 de junho de 2008
O HOMEM QUE ESTAVA LÁ
Em prateleiras empoeiradas, deparo com revistas esportivas francesas que comprei durante a copa de 1998. Faz dez anos. Zidane.
Não só Zidane. Houve a convulsão no hotel, as suspeitas de trambique, tudo aquilo. E me lembro de um detalhe: na copa da França, pela primeira vez, o número de fotógrafos superou o de jogadores.
Da tribuna de imprensa, eu me espantava ao enxergar, lá embaixo, o tropel dos fotógrafos em busca das melhores posições à beira do campo. Um jogo de rúgbi. Às vezes, mais disputado do que a partida que eles iriam fotografar horas depois. E todos eles com um peso de não sei quantos quilos nas costas.
Apesar das hordas de fotógrafos em torno do campo, o que eu via depois, nas bancas, eram fotos muito semelhantes entre si. Previsíveis. Nada autorais. Pareciam feitas pelo mesmo fotógrafo. Mas claro. No campo, eles mal tinham espaço para se coçar. Trabalhavam sob o bafo do sujeito ao lado. Quase podiam espiar pela objetiva alheia. Que graça pode ter isso?
Ponha dez pintores, de Giotto a Miró, para trabalharem juntos no mesmo estúdio. Cavaletes encavalados, modelos entrelaçadas. Imagine o resultado.
< Que ótimo, a história da arte seria o samba do crioulo doido.
> Não creio. Acho que seria o samba de uma nota só.
Diante da mesmice de imagens, eu imaginava a besteira subseqüente, que relato sem pejo. Suponhamos que a Fifa, na copa, credenciasse não quatrocentos fotógrafos, nem quarenta. Apenas quatro. Escolhidos por sorteio. Melhor ainda, por concurso, por clicagens. Quatro. Mas cada um desses quatro teria liberdade para se locomover à vontade ao longo de cada uma das linhas externas do campo. Iam produzir obras-primas.
Imagine a voz de Fiori Gigliotti a ecoar no velho Pacaembu:
< Na linha de fundo do lado da concha acústica, temos hoje Sebastião Salgado! E no lado oposto, o dos portões monumentais, Henri Cartier-Bresson! Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira!
Não fossem tantos os fotógrafos, talvez tivéssemos mais fotos que valeria a pena guardar para sempre. Chega de saudade. Vou é jogar no lixo aquelas revistas. Cansei de ver tanta foto de Zidane a levantar a taça. Bah, tudo igual. Será que aquele sujeito lá em cima foi o único que registrou a convulsão do Ronaldaço? Dizem que foi ali que se decidiu aquela copa.
Não só Zidane. Houve a convulsão no hotel, as suspeitas de trambique, tudo aquilo. E me lembro de um detalhe: na copa da França, pela primeira vez, o número de fotógrafos superou o de jogadores.
Da tribuna de imprensa, eu me espantava ao enxergar, lá embaixo, o tropel dos fotógrafos em busca das melhores posições à beira do campo. Um jogo de rúgbi. Às vezes, mais disputado do que a partida que eles iriam fotografar horas depois. E todos eles com um peso de não sei quantos quilos nas costas.
Apesar das hordas de fotógrafos em torno do campo, o que eu via depois, nas bancas, eram fotos muito semelhantes entre si. Previsíveis. Nada autorais. Pareciam feitas pelo mesmo fotógrafo. Mas claro. No campo, eles mal tinham espaço para se coçar. Trabalhavam sob o bafo do sujeito ao lado. Quase podiam espiar pela objetiva alheia. Que graça pode ter isso?
Ponha dez pintores, de Giotto a Miró, para trabalharem juntos no mesmo estúdio. Cavaletes encavalados, modelos entrelaçadas. Imagine o resultado.
< Que ótimo, a história da arte seria o samba do crioulo doido.
> Não creio. Acho que seria o samba de uma nota só.
Diante da mesmice de imagens, eu imaginava a besteira subseqüente, que relato sem pejo. Suponhamos que a Fifa, na copa, credenciasse não quatrocentos fotógrafos, nem quarenta. Apenas quatro. Escolhidos por sorteio. Melhor ainda, por concurso, por clicagens. Quatro. Mas cada um desses quatro teria liberdade para se locomover à vontade ao longo de cada uma das linhas externas do campo. Iam produzir obras-primas.
Imagine a voz de Fiori Gigliotti a ecoar no velho Pacaembu:
< Na linha de fundo do lado da concha acústica, temos hoje Sebastião Salgado! E no lado oposto, o dos portões monumentais, Henri Cartier-Bresson! Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, torcida brasileira!
Não fossem tantos os fotógrafos, talvez tivéssemos mais fotos que valeria a pena guardar para sempre. Chega de saudade. Vou é jogar no lixo aquelas revistas. Cansei de ver tanta foto de Zidane a levantar a taça. Bah, tudo igual. Será que aquele sujeito lá em cima foi o único que registrou a convulsão do Ronaldaço? Dizem que foi ali que se decidiu aquela copa.
segunda-feira, 16 de junho de 2008
ADEUS ÀS ARMAS
Recebo brilhantes comentários em mensagens particulares. O remetente se preserva, quando o tema é controverso, ou talvez imagine, equivocadamente, poupar-me da crítica aberta. Não é necessário. Lamento quando um comentário adverso não é compartilhado com meus dez ou doze leitores. Quinze, vá lá. Ainda caberiam numa Kombi.
Publicadas, essas críticas encantariam os que preferem reflexões articuladas em vez de adjazzcências. Se há debate autônomo entre leitores, libero-me da mochila de articulista e, com a leveza do blogueiro, saio em busca de novos temas.
Um velho amigo, jornalista e pintor, reprova-me ter colocado no mesmo saco um punhado de gatos de diferentes raças (Para entrar no clima). Ele acha que Bush e Putin são hors-concours, devido aos genocídios no Iraque e na Chechênia.
Mais do que ao aspecto político, naquele texto eu me referia ao caráter tosco, raso, por vezes ridículo, que caracteriza os políticos atuais. Lá onde antes se via um estadista, vemos uma toupeira de topete. É saudosismo, eu sei, pensar em tipos encantadores como Churchill, Václav Havel, Berlinguer, Gorbachev, ou mesmo Al Gore.
Ah, sim, o ambiente. Vamos fazer um devaneio, uma adjazzcência. Imaginemos que Lula, amanhã, acordasse achando que é Chávez. Manda 140 mil soldados (o efetivo que Bush mantém no Iraque) tomar de assalto a Amazônia e sustar de uma vez por todas a barbárie social e ambiental. Acabou a festa: nem mais uma árvore derrubada. Tratores e motosserras apreendidos e mostrados ao mundo como se fossem armas de destruição em massa. Não são?
Ah, mas peraí. Isto aqui não é a casa da mãe joana, uma republiqueta de bananas. Existe um Congresso. Vivemos em um estado de direito.
Vivemos? O Congresso pode protelar a defesa da Amazônia até onde isso interessar aos madeireiros e mineradores. O Brasil do século XIX protegeu até o fim os investimentos dos proprietários de escravos. Fomos o último país a acabar com a escravatura. O canetaço da princesa veio quando não havia mais riscos para a casa-grande.
Benjamin Franklin disse que quem não faz nada está perto de fazer o mal. Se isto é verdade, um genocídio pode ser cometido não só por intervenção, mas também por omissão. Empurrando com a barriga. Acredite, meu amigo: ainda cabem muitos gatos naquele saco.
Publicadas, essas críticas encantariam os que preferem reflexões articuladas em vez de adjazzcências. Se há debate autônomo entre leitores, libero-me da mochila de articulista e, com a leveza do blogueiro, saio em busca de novos temas.
Um velho amigo, jornalista e pintor, reprova-me ter colocado no mesmo saco um punhado de gatos de diferentes raças (Para entrar no clima). Ele acha que Bush e Putin são hors-concours, devido aos genocídios no Iraque e na Chechênia.
Mais do que ao aspecto político, naquele texto eu me referia ao caráter tosco, raso, por vezes ridículo, que caracteriza os políticos atuais. Lá onde antes se via um estadista, vemos uma toupeira de topete. É saudosismo, eu sei, pensar em tipos encantadores como Churchill, Václav Havel, Berlinguer, Gorbachev, ou mesmo Al Gore.
Ah, sim, o ambiente. Vamos fazer um devaneio, uma adjazzcência. Imaginemos que Lula, amanhã, acordasse achando que é Chávez. Manda 140 mil soldados (o efetivo que Bush mantém no Iraque) tomar de assalto a Amazônia e sustar de uma vez por todas a barbárie social e ambiental. Acabou a festa: nem mais uma árvore derrubada. Tratores e motosserras apreendidos e mostrados ao mundo como se fossem armas de destruição em massa. Não são?
Ah, mas peraí. Isto aqui não é a casa da mãe joana, uma republiqueta de bananas. Existe um Congresso. Vivemos em um estado de direito.
Vivemos? O Congresso pode protelar a defesa da Amazônia até onde isso interessar aos madeireiros e mineradores. O Brasil do século XIX protegeu até o fim os investimentos dos proprietários de escravos. Fomos o último país a acabar com a escravatura. O canetaço da princesa veio quando não havia mais riscos para a casa-grande.
Benjamin Franklin disse que quem não faz nada está perto de fazer o mal. Se isto é verdade, um genocídio pode ser cometido não só por intervenção, mas também por omissão. Empurrando com a barriga. Acredite, meu amigo: ainda cabem muitos gatos naquele saco.
domingo, 1 de junho de 2008
CHURRASCO OU PIZZA?
Em Porto Alegre, um bagual foi assaltar a residência de um casal de velhinhos e entalou-se na chaminé da churrasqueira. A foto mostra duas pernas pendentes acima da grelha. Parece até um daqueles pastelões de Oscarito.
Houve casos similares no bairro paulistano do Tucuruvi e numa pizzaria de Belo Horizonte. Talvez outros, que a história não registra por terem acabado em pizza ou até, sabe-se lá, em churrasco.
Os gostos variam. Aposto que Léo Vázquez, se flagrasse um intruso entalado na sua churrasqueira, testaria a receita culinária que, dizem, os caetés teriam aplicado com amplo sucesso no bispo Sardinha.
Em compensação, a Anistia Internacional pode contar com os princípios humanitários de Ângelo Scannapieco. Apesar do sobrenome napolitano que remete à degola de ovelhas, ele acha que a ninguém deve ser dado o direito de fazer justiça pelas próprias mãos. Nem mesmo a quem vive num país cujas churrasqueiras costumam funcionar melhor que as instituições.
O bispo Sardinha era corrupto? Era. O homem entalado na churrasqueira era assaltante? Era. Mataria os velhinhos? Talvez. Mas e daí? Isso não cabe a você julgar, e sim às instâncias competentes, se assim o forem. Em suma: limite-se à sua churrasqueira, e deixe o resto com quem entende.
Eis o que pensa o Anjo, em oposição ao Leão. Ângelo é homem tolerante, aberto ao diálogo, defensor da justiça, dos direitos individuais, essas coisas todas. Para ele, ninguém merece mais o benefício do habeas corpus do que um homem entalado numa chaminé. Na época de Natal, seria até o caso de conceder a ele o benefício da dúvida, caso estivesse de roupa vermelha.
Enfim, o Anjo defende que todos devemos fazer uso da nossa parte angelical, se a tivermos de fato. Lutar pelos direitos humanos enquanto restar um fio de esperança (mesmo na ausência de John Wayne) de tudo acabar em pizza.
A mídia não publicará a matéria que eu gostaria de ler. Uma ampla pesquisa nacional a partir da seguinte questão: o que você faria se encontrasse um assaltante entalado na chaminé da sua churrasqueira? Não me atrevo a responder em nome de milhões de brasileiros. Mas, por dever de ofício, reporto aqui a opinião desses dois, o Leão e o Anjo, que conheço melhor que os demais.
Houve casos similares no bairro paulistano do Tucuruvi e numa pizzaria de Belo Horizonte. Talvez outros, que a história não registra por terem acabado em pizza ou até, sabe-se lá, em churrasco.
Os gostos variam. Aposto que Léo Vázquez, se flagrasse um intruso entalado na sua churrasqueira, testaria a receita culinária que, dizem, os caetés teriam aplicado com amplo sucesso no bispo Sardinha.
Em compensação, a Anistia Internacional pode contar com os princípios humanitários de Ângelo Scannapieco. Apesar do sobrenome napolitano que remete à degola de ovelhas, ele acha que a ninguém deve ser dado o direito de fazer justiça pelas próprias mãos. Nem mesmo a quem vive num país cujas churrasqueiras costumam funcionar melhor que as instituições.
O bispo Sardinha era corrupto? Era. O homem entalado na churrasqueira era assaltante? Era. Mataria os velhinhos? Talvez. Mas e daí? Isso não cabe a você julgar, e sim às instâncias competentes, se assim o forem. Em suma: limite-se à sua churrasqueira, e deixe o resto com quem entende.
Eis o que pensa o Anjo, em oposição ao Leão. Ângelo é homem tolerante, aberto ao diálogo, defensor da justiça, dos direitos individuais, essas coisas todas. Para ele, ninguém merece mais o benefício do habeas corpus do que um homem entalado numa chaminé. Na época de Natal, seria até o caso de conceder a ele o benefício da dúvida, caso estivesse de roupa vermelha.
Enfim, o Anjo defende que todos devemos fazer uso da nossa parte angelical, se a tivermos de fato. Lutar pelos direitos humanos enquanto restar um fio de esperança (mesmo na ausência de John Wayne) de tudo acabar em pizza.
A mídia não publicará a matéria que eu gostaria de ler. Uma ampla pesquisa nacional a partir da seguinte questão: o que você faria se encontrasse um assaltante entalado na chaminé da sua churrasqueira? Não me atrevo a responder em nome de milhões de brasileiros. Mas, por dever de ofício, reporto aqui a opinião desses dois, o Leão e o Anjo, que conheço melhor que os demais.
quinta-feira, 15 de maio de 2008
PARA ENTRAR NO CLIMA
Nunca antes neste país as coisas foram tão iguais ao que sempre foram. Em ano eleitoral, temos de aturar um monte de baboseiras. Leo Vázquez diz que, se voltarmos ao absolutismo, será mais barato sustentar a família real do que uma corja de políticos.
Bem, cada partido deve ter lá seus cinco por cento de pessoas dignas, capacitadas, mas nunca as veremos reunidas numa mesma agremiação. A banda limpa não é um fenômeno ideológico, mas estatístico. As pessoas são como são, e fazem o que fazem, com base em duas variáveis: o que têm a ganhar e o que têm a perder.
O resto é um baile de máscaras. Arlotões, javardos, labregos e lambuças surgem no vídeo como figuras da mais alta relevância. No plano internacional, arre! Nunca antes neste planeta a coisa esteve nivelada tão por baixo como agora. Bush, Chávez, Lula, Berlusconi, Putin, a lista vai longe. No tempo do forde-de-bigode, acredita Leo Vázquez, esses sujeitos não dariam nem para zapatero do rei Juan Carlos I. Não se refere ao sangue azul, diga-se, mas à postura pública e à qualidade intelectual.
No Brasil, há pelo menos vinte anos (uma geração) tucanos e petistas disputam a rapadura. A diferença entre eles é mais ilusória do que real. Torrar empresas estatais a preço de banana ou, ao contrário, mantê-las para abrigar cupinchas, povoar de aspones, são ambas formas de rapinagem, direta ou indireta. Quando ouço petistas e tucanos trocando farpas ou insultos, recordo Alain-Fournier: “O que os partidos políticos dizem uns dos outros é justamente o que eu penso de todos eles”.
Daqui a alguns meses, eleição. E aquele dilema, de novo. Chega uma hora que cansa essa história de ter de votar sempre no menos pior. Recordo-me do quanto a gente torcia (só isso, no meu caso) nos anos negros para que prevalecesse um general menos linha-dura. Sabendo, no fundo, que tudo aquilo era a mesma porcaria.
Não é de admirar que os jovens de hoje estejam tão descrentes da política. Eu não saberia o que dizer a eles. Mas Leo Vázquez acha que os jovens deviam fazer, tipo assim, um panelaço (que nem na Argentina) pelo voto voluntário. Quem sabe fosse o começo de algo novo. Ao menos depois poderiam dizer que isso não havia sido feito nunca antes neste país.
Bem, cada partido deve ter lá seus cinco por cento de pessoas dignas, capacitadas, mas nunca as veremos reunidas numa mesma agremiação. A banda limpa não é um fenômeno ideológico, mas estatístico. As pessoas são como são, e fazem o que fazem, com base em duas variáveis: o que têm a ganhar e o que têm a perder.
O resto é um baile de máscaras. Arlotões, javardos, labregos e lambuças surgem no vídeo como figuras da mais alta relevância. No plano internacional, arre! Nunca antes neste planeta a coisa esteve nivelada tão por baixo como agora. Bush, Chávez, Lula, Berlusconi, Putin, a lista vai longe. No tempo do forde-de-bigode, acredita Leo Vázquez, esses sujeitos não dariam nem para zapatero do rei Juan Carlos I. Não se refere ao sangue azul, diga-se, mas à postura pública e à qualidade intelectual.
No Brasil, há pelo menos vinte anos (uma geração) tucanos e petistas disputam a rapadura. A diferença entre eles é mais ilusória do que real. Torrar empresas estatais a preço de banana ou, ao contrário, mantê-las para abrigar cupinchas, povoar de aspones, são ambas formas de rapinagem, direta ou indireta. Quando ouço petistas e tucanos trocando farpas ou insultos, recordo Alain-Fournier: “O que os partidos políticos dizem uns dos outros é justamente o que eu penso de todos eles”.
Daqui a alguns meses, eleição. E aquele dilema, de novo. Chega uma hora que cansa essa história de ter de votar sempre no menos pior. Recordo-me do quanto a gente torcia (só isso, no meu caso) nos anos negros para que prevalecesse um general menos linha-dura. Sabendo, no fundo, que tudo aquilo era a mesma porcaria.
Não é de admirar que os jovens de hoje estejam tão descrentes da política. Eu não saberia o que dizer a eles. Mas Leo Vázquez acha que os jovens deviam fazer, tipo assim, um panelaço (que nem na Argentina) pelo voto voluntário. Quem sabe fosse o começo de algo novo. Ao menos depois poderiam dizer que isso não havia sido feito nunca antes neste país.
domingo, 4 de maio de 2008
A MENINA, O PADRE E A MÍDIA
Outono de 2008. Uma menina de 5 anos é jogada do sexto andar. Um padre de 41 anos pendura-se em mil balões e some nas nuvens. O mundo está ficando como o diabo gosta.
Ou como a mídia gosta. Ela sorveu até a última gota a tragédia de Isabella Nardoni. Era como se até o cachorro do pipoqueiro da esquina tivesse algo de relevante a declarar ao povo brasileiro.
Contam que um fotógrafo da velha guarda do jornalismo guardava uma boneca na gaveta para quando o chamassem a cobrir desastres aéreos. Então a levava para fotografar em primeiro plano, junto aos destroços do avião. A vendagem do jornal ia às nuvens.
Se o lado trágico foi exacerbado no caso de Isabella Nardoni, ao do padre Aderli de Carli restaria um timbre burlesco. Era a necessária descompressão emocional para quase um mês de celebração do martírio infantil. Ninguém agüentava mais. Mas todo mundo queria mais.
Para a mídia, a aventura (midiática) de um padre que subia aos ares em mil balões coloridos era uma história que – permitam-me a expressão – caiu do céu. Um conto de García Márquez prontinho. Era só mandar o repórter chegar antes do outro repórter.
O epíteto que coube a Aderli de Carli, “padre voador”, já traz embutido o caráter jocoso que se impingiu à sua desditosa aventura. Tivesse ela dado certo, e o padre estaria nas bancas de revista e programas de auditório. Talvez até em palácios e palanques. É assim que funciona. Não duvido que revistas masculinas já não estejam pensando em sondar alguma das mulheres que ganharam notoriedade com a tragédia do Edifício London. Nada como um dia depois do outro.
No que andei lendo (não muito) sobre Aderli de Carli, senti falta de referência a um outro “padre voador”. No século XVIII, o jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão também concebeu ousados projetos aerostáticos. Saramago o celebra numa obra-prima, Memorial do convento (1982). Mas pouco se fala dele no Brasil. Nem mesmo em São Paulo, que abriga seus restos mortais na Catedral da Sé.
Para Santos Dumont, tudo. Para Gusmão, nada. Para a Isabella defenestrada, o estrelato. Para a Isabella desnutrida, a estatística. Às vezes me parece que a mídia, a exemplo do padre Aderli de Carli, também se pendurou num monte de balões coloridos. E voa para o oceano.
Ou como a mídia gosta. Ela sorveu até a última gota a tragédia de Isabella Nardoni. Era como se até o cachorro do pipoqueiro da esquina tivesse algo de relevante a declarar ao povo brasileiro.
Contam que um fotógrafo da velha guarda do jornalismo guardava uma boneca na gaveta para quando o chamassem a cobrir desastres aéreos. Então a levava para fotografar em primeiro plano, junto aos destroços do avião. A vendagem do jornal ia às nuvens.
Se o lado trágico foi exacerbado no caso de Isabella Nardoni, ao do padre Aderli de Carli restaria um timbre burlesco. Era a necessária descompressão emocional para quase um mês de celebração do martírio infantil. Ninguém agüentava mais. Mas todo mundo queria mais.
Para a mídia, a aventura (midiática) de um padre que subia aos ares em mil balões coloridos era uma história que – permitam-me a expressão – caiu do céu. Um conto de García Márquez prontinho. Era só mandar o repórter chegar antes do outro repórter.
O epíteto que coube a Aderli de Carli, “padre voador”, já traz embutido o caráter jocoso que se impingiu à sua desditosa aventura. Tivesse ela dado certo, e o padre estaria nas bancas de revista e programas de auditório. Talvez até em palácios e palanques. É assim que funciona. Não duvido que revistas masculinas já não estejam pensando em sondar alguma das mulheres que ganharam notoriedade com a tragédia do Edifício London. Nada como um dia depois do outro.
No que andei lendo (não muito) sobre Aderli de Carli, senti falta de referência a um outro “padre voador”. No século XVIII, o jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão também concebeu ousados projetos aerostáticos. Saramago o celebra numa obra-prima, Memorial do convento (1982). Mas pouco se fala dele no Brasil. Nem mesmo em São Paulo, que abriga seus restos mortais na Catedral da Sé.
Para Santos Dumont, tudo. Para Gusmão, nada. Para a Isabella defenestrada, o estrelato. Para a Isabella desnutrida, a estatística. Às vezes me parece que a mídia, a exemplo do padre Aderli de Carli, também se pendurou num monte de balões coloridos. E voa para o oceano.
domingo, 20 de abril de 2008
BOLINHAS DE GUDE
Aqui perto há uma loja acolhedora, meio caótica, apinhada de cousas e lousas. Às vezes entro lá para saber se estou precisando de algo inútil. Sábado, notei no balcão dois recipientes cheios de bolinhas de gude.
> Ainda tem quem jogue?
< Crianças, não. Mas os antigos compram.
Vi que a atendente não me incluía entre os antigos, fosse por cortesia ou erro de avaliação. Quem sabe até me incluísse, mas essa categoria teria para ela algum aspecto honroso que ainda me escapa. Na dúvida, abstive-me de comprar bolinhas de gude.
Essas esferas de vidro têm valor histórico para muitas gerações. Foi o inocente joguinho de rua que precedia a sinuca, na época em que era fácil encontrar um canteiro de terra em qualquer quarteirão. Na ditadura militar, quando o chão das cidades foi impermeabilizado pela febre da construção civil, as mesmas bolinhas de gude serviram para derrubar cavalos da polícia, no momento em que a repressão investia contra os estudantes.
Os cassetetes, então, ainda eram temidos. Hoje parecem elementos decorativos, como as espadas dos Dragões da Independência. Neste tempo de violência generalizada, comprar um fuzil automático deve ser tão simples, para uns e outros, quanto para mim teria sido comprar bolinhas de gude. Que lugar sobra para o velho cassetete no mundo globalizado? A própria polícia, com seu arsenal de recursos (gases, jatos d’água, balas de borracha etc.), não deve se dar mais ao trabalho artesanal de reprimir os ímpios à base de bordoadas nas nádegas.
Há muito não vejo na mídia a palavra cassetete, antes comum no noticiário. Para os redatores jovens, ela deve soar tão passadista quanto palmatória, o instrumento punitivo que um dia se usava nas escolas. Não que o cassetete, mesmo outrora, fosse capaz de resolver todos os problemas de ordem pública. Mas funcionava como símbolo da autoridade policial, do mesmo modo como as bolinhas de gude davam identidade ao menino impúbere.
Na vitrine dessa loja, um brinquedo reproduz o equipamento de um policial, com cassetete e tudo. Custo a crer que um garoto de hoje possa se interessar por aquilo. Mas, se está lá, é porque vende. Vai ver, quem compra também são os antigos. Temos de descobrir quem são eles.
> Ainda tem quem jogue?
< Crianças, não. Mas os antigos compram.
Vi que a atendente não me incluía entre os antigos, fosse por cortesia ou erro de avaliação. Quem sabe até me incluísse, mas essa categoria teria para ela algum aspecto honroso que ainda me escapa. Na dúvida, abstive-me de comprar bolinhas de gude.
Essas esferas de vidro têm valor histórico para muitas gerações. Foi o inocente joguinho de rua que precedia a sinuca, na época em que era fácil encontrar um canteiro de terra em qualquer quarteirão. Na ditadura militar, quando o chão das cidades foi impermeabilizado pela febre da construção civil, as mesmas bolinhas de gude serviram para derrubar cavalos da polícia, no momento em que a repressão investia contra os estudantes.
Os cassetetes, então, ainda eram temidos. Hoje parecem elementos decorativos, como as espadas dos Dragões da Independência. Neste tempo de violência generalizada, comprar um fuzil automático deve ser tão simples, para uns e outros, quanto para mim teria sido comprar bolinhas de gude. Que lugar sobra para o velho cassetete no mundo globalizado? A própria polícia, com seu arsenal de recursos (gases, jatos d’água, balas de borracha etc.), não deve se dar mais ao trabalho artesanal de reprimir os ímpios à base de bordoadas nas nádegas.
Há muito não vejo na mídia a palavra cassetete, antes comum no noticiário. Para os redatores jovens, ela deve soar tão passadista quanto palmatória, o instrumento punitivo que um dia se usava nas escolas. Não que o cassetete, mesmo outrora, fosse capaz de resolver todos os problemas de ordem pública. Mas funcionava como símbolo da autoridade policial, do mesmo modo como as bolinhas de gude davam identidade ao menino impúbere.
Na vitrine dessa loja, um brinquedo reproduz o equipamento de um policial, com cassetete e tudo. Custo a crer que um garoto de hoje possa se interessar por aquilo. Mas, se está lá, é porque vende. Vai ver, quem compra também são os antigos. Temos de descobrir quem são eles.
domingo, 6 de abril de 2008
PATO E AS MUSAS
Não sei quem disse isto: “Ter talento é acertar o alvo que ninguém acertou, e ser gênio é acertar o alvo que ninguém viu”. A frase me veio em mente ao assistir àquele gol de Alexandre Pato na vitória do Brasil sobre a Suécia, semanas atrás, em Londres.
Pato pressentiu um caminho impensável para a bola num instante do jogo em que ninguém (nem ele, talvez, um segundo antes) poderia esperar um chute direto ao gol. Aquele atalho não fazia parte da nossa experiência anterior. Agora faz.
A beleza do futebol reside na relação entre os movimentos do corpo e os movimentos da bola. Gostamos de ter a impressão de que são coisas independentes, mesmo sabendo que não são, nem poderiam ser. Na arte também é assim. Quando vemos Bill Evans tocar piano (no You Tube há magníficos trechos de concertos dele gravados em Oslo na década de 1960), temos a sensação ilusória de ouvir mais notas do que as teclas que ele de fato aperta. O sentido geral é de uma economia de movimentos, como na caligrafia oriental. Ali está a essência.
Assim é o jeito de Pato jogar. Como Bill Evans toca. A precisão do toque é tamanha, na bola ou nas teclas, que o resultado como que ultrapassa a intenção ou o impulso inicial, tal como deve acontecer, suponho, dentro de um acelerador de partículas atômicas. É como dizer em relação às coisas da vida: bah, vamos deixar de nove-horas, vamos logo ao que interessa.
Existem outras maneiras, prolixas, de fazer coisas geniais. A bicicleta de Leônidas, a paradinha de Pelé, a ginga de Garrincha, a pedalada de Robinho. Porém essas todas são situações nas quais os movimentos do corpo excedem os movimentos da bola. São coisas exuberantes, “barrocas”, assim como costumam dizer do estilo literário de Saramago, cheio de digressões. Nada contra. Estou aqui para aplaudir.
Só que, no caso de Pato, às vezes nem dá tempo de aplaudir. Antes do prazer, vem o espanto, como em Bill Evans. Quando a gente vê, já foi. É o tipo de genialidade que eu chamaria de econômica: já dá origem a uma coisa passada a limpo. Como na folha-seca de Didi. A gente gostaria que a vida fosse assim. Mas ela não é.
Como consolo, resta-nos acompanhar a fulgurante carreira internacional de Alexandre Pato. A exemplo de Falcão, que também foi para a Itália, esse garoto genial sabe honrar as musas do Beira-Rio.
Pato pressentiu um caminho impensável para a bola num instante do jogo em que ninguém (nem ele, talvez, um segundo antes) poderia esperar um chute direto ao gol. Aquele atalho não fazia parte da nossa experiência anterior. Agora faz.
A beleza do futebol reside na relação entre os movimentos do corpo e os movimentos da bola. Gostamos de ter a impressão de que são coisas independentes, mesmo sabendo que não são, nem poderiam ser. Na arte também é assim. Quando vemos Bill Evans tocar piano (no You Tube há magníficos trechos de concertos dele gravados em Oslo na década de 1960), temos a sensação ilusória de ouvir mais notas do que as teclas que ele de fato aperta. O sentido geral é de uma economia de movimentos, como na caligrafia oriental. Ali está a essência.
Assim é o jeito de Pato jogar. Como Bill Evans toca. A precisão do toque é tamanha, na bola ou nas teclas, que o resultado como que ultrapassa a intenção ou o impulso inicial, tal como deve acontecer, suponho, dentro de um acelerador de partículas atômicas. É como dizer em relação às coisas da vida: bah, vamos deixar de nove-horas, vamos logo ao que interessa.
Existem outras maneiras, prolixas, de fazer coisas geniais. A bicicleta de Leônidas, a paradinha de Pelé, a ginga de Garrincha, a pedalada de Robinho. Porém essas todas são situações nas quais os movimentos do corpo excedem os movimentos da bola. São coisas exuberantes, “barrocas”, assim como costumam dizer do estilo literário de Saramago, cheio de digressões. Nada contra. Estou aqui para aplaudir.
Só que, no caso de Pato, às vezes nem dá tempo de aplaudir. Antes do prazer, vem o espanto, como em Bill Evans. Quando a gente vê, já foi. É o tipo de genialidade que eu chamaria de econômica: já dá origem a uma coisa passada a limpo. Como na folha-seca de Didi. A gente gostaria que a vida fosse assim. Mas ela não é.
Como consolo, resta-nos acompanhar a fulgurante carreira internacional de Alexandre Pato. A exemplo de Falcão, que também foi para a Itália, esse garoto genial sabe honrar as musas do Beira-Rio.
segunda-feira, 24 de março de 2008
O AVIÃO DE VIDRO
Investem bilhões para que os passageiros de aviões logo possam acessar a Internet, assistir à TV e falar ao celular. Pelo andar da carruagem, em breve o ambiente a bordo vai ser uma lan house voadora. É o pogréssio, diria Adoniran Barbosa.
Imagine essa zoada dentro de um tubo pressurizado que desliza por cima das nuvens. Centenas de passageiros, afivelados em poltronas estreitas, diante de telas nas quais cintilam cartelas de bingos, piadas, jogos de salão, fóruns de discussão sobre dietas e lipoaspiração, ferramentas de busca ao parceiro ideal naquele mesmo vôo. Claro, muitos vão preferir sintonizar a novela que estão habituados a assistir junto ao cônjuge, no sofá de casa. Afinal, por que se arriscar a descobrir que talvez na poltrona da frente esteja a pessoa dos seus sonhos?
Mas isto não é pobrema. O pobrema é que deslocar-se levando de arrasto um enxoval de velhos hábitos conspira contra uma tradição milenar. O momento da viagem sempre foi um rito de passagem. É uma lacuna, um lapso, durante o qual o viajante desfaz os laços com o mundo habitual sem ter ainda estabelecido contato com o lugar de destino. Mergulha num estado psicológico especial ao lidar com o desamparo, a aprendizagem e o desafio, mesmo que esse desafio seja achar um jeito novo de enfrentar o tédio. Já a tela do monitor é um continuum. Ela nos leva aos lugares de sempre.
De um século para cá, os aviões têm evoluído de forma espantosa em conforto e tamanho. Mas suas janelas continuam diminutas como as escotilhas dos navios. A indústria aeroviária, que agora se empenha em atrelar nossos olhos aos monitores, não foi capaz (talvez por falta de patrocínio) de criar janelas panorâmicas que nos permitissem apreciar, no cenário externo, recortes litorâneos, selvas, cordilheiras, cidades, nuvens, horizontes, crepúsculos.
Pensar num avião de vidro pode parecer um delírio, hoje. Mas não menos delirante teria sido, no tempo de Santos Dumont e dos irmãos Wright, a idéia de um dia se ter TV e Internet a bordo. Não é impossível que nossos tetranetos tenham o privilégio de viajar num avião transparente. Vão reencontrar no céu as mesmas estrelas vistas por nossos tetravós no convés dos navios. Quem sabe, é isso que nos faz falta. O verdadeiro pogréssio.
Imagine essa zoada dentro de um tubo pressurizado que desliza por cima das nuvens. Centenas de passageiros, afivelados em poltronas estreitas, diante de telas nas quais cintilam cartelas de bingos, piadas, jogos de salão, fóruns de discussão sobre dietas e lipoaspiração, ferramentas de busca ao parceiro ideal naquele mesmo vôo. Claro, muitos vão preferir sintonizar a novela que estão habituados a assistir junto ao cônjuge, no sofá de casa. Afinal, por que se arriscar a descobrir que talvez na poltrona da frente esteja a pessoa dos seus sonhos?
Mas isto não é pobrema. O pobrema é que deslocar-se levando de arrasto um enxoval de velhos hábitos conspira contra uma tradição milenar. O momento da viagem sempre foi um rito de passagem. É uma lacuna, um lapso, durante o qual o viajante desfaz os laços com o mundo habitual sem ter ainda estabelecido contato com o lugar de destino. Mergulha num estado psicológico especial ao lidar com o desamparo, a aprendizagem e o desafio, mesmo que esse desafio seja achar um jeito novo de enfrentar o tédio. Já a tela do monitor é um continuum. Ela nos leva aos lugares de sempre.
De um século para cá, os aviões têm evoluído de forma espantosa em conforto e tamanho. Mas suas janelas continuam diminutas como as escotilhas dos navios. A indústria aeroviária, que agora se empenha em atrelar nossos olhos aos monitores, não foi capaz (talvez por falta de patrocínio) de criar janelas panorâmicas que nos permitissem apreciar, no cenário externo, recortes litorâneos, selvas, cordilheiras, cidades, nuvens, horizontes, crepúsculos.
Pensar num avião de vidro pode parecer um delírio, hoje. Mas não menos delirante teria sido, no tempo de Santos Dumont e dos irmãos Wright, a idéia de um dia se ter TV e Internet a bordo. Não é impossível que nossos tetranetos tenham o privilégio de viajar num avião transparente. Vão reencontrar no céu as mesmas estrelas vistas por nossos tetravós no convés dos navios. Quem sabe, é isso que nos faz falta. O verdadeiro pogréssio.
domingo, 9 de março de 2008
A VIDA ON LINE
Os ônibus de São Paulo mostram o aviso: Proibido o uso de aparelhos sonoros. Lei Municipal 6.681/65. Meus profundos conhecimentos jurídicos me permitem supor que os dois últimos algarismos referem-se ao ano. Desde 1965 (Help!) são 43 anos, tempo suficiente para uma lei pegar.
Essa, se pegou, só vale para o passageiro, não para quem explora a TV de bordo, cheia de anúncios. Pois dane-se o direito individual de ignorar baboseiras e novos lançamentos de xampus. No ônibus, no metrô, acabou o sossego.
Nos elevadores, além da TV, nota-se uma discreta redoma emborcada no teto. É a câmara do circuito interno. Ele grampeia o que cada um de nós faz lá dentro. Mesmo que você não faça nada, alguém saberá. É para o bem, uma voz dirá. Questão de segurança. É para que você, observado, possa gozar na plenitude o seu direito de não fazer nada no elevador. Até o dia em que ali houver serviço de bordo, bebedouro, engraxate, café expresso. Então afinal vão descobrir se você prefere açúcar ou adoçante.
Se querem “monitorar” você, não deviam informá-lo disso? Quando filmam, pelo menos colocam (a lei obriga, creio) o bonequinho amarelo com aquele aviso cretino, mas honesto: Sorria, você está sendo filmado.
Cresce a cada dia a teia tecnológica concebida para nos manter on line o tempo todo, desde que botamos o nariz fora de casa. George Orwell descreveu esse esquema de vigilância total em seu livro 1984, que apresenta o Big Brother pela primeira vez. Ele veio para ficar. Mas há esperança.
Hoje dei uma zapeada em Dez roteiros históricos a pé em São Paulo, livro recente da Ed. Narrativa-um. Ele propõe que se caminhe mais pela cidade. A idéia é boa para o corpo e a mente. Caminhar serve não apenas para queimar calorias, mas também para não queimar neurônios. Assim os poupamos da enxurrada de anúncios e informações indesejadas. Agora que as ruas estão livres de outdoors, a publicidade migra para os recintos fechados.
Não ouso aconselhar alguém a evitar elevadores, e usar mais as escadas. Mas ao entrar num deles pode-se dar as costas para a bolha negra no teto, que lembra uma sirene da polícia. Por falar nela, não faça gestos suspeitos no elevador. Nem com o batom ou o corta-unhas. De resto, fique tranqüilo: por enquanto a câmara ainda não lê pensamentos.
Essa, se pegou, só vale para o passageiro, não para quem explora a TV de bordo, cheia de anúncios. Pois dane-se o direito individual de ignorar baboseiras e novos lançamentos de xampus. No ônibus, no metrô, acabou o sossego.
Nos elevadores, além da TV, nota-se uma discreta redoma emborcada no teto. É a câmara do circuito interno. Ele grampeia o que cada um de nós faz lá dentro. Mesmo que você não faça nada, alguém saberá. É para o bem, uma voz dirá. Questão de segurança. É para que você, observado, possa gozar na plenitude o seu direito de não fazer nada no elevador. Até o dia em que ali houver serviço de bordo, bebedouro, engraxate, café expresso. Então afinal vão descobrir se você prefere açúcar ou adoçante.
Se querem “monitorar” você, não deviam informá-lo disso? Quando filmam, pelo menos colocam (a lei obriga, creio) o bonequinho amarelo com aquele aviso cretino, mas honesto: Sorria, você está sendo filmado.
Cresce a cada dia a teia tecnológica concebida para nos manter on line o tempo todo, desde que botamos o nariz fora de casa. George Orwell descreveu esse esquema de vigilância total em seu livro 1984, que apresenta o Big Brother pela primeira vez. Ele veio para ficar. Mas há esperança.
Hoje dei uma zapeada em Dez roteiros históricos a pé em São Paulo, livro recente da Ed. Narrativa-um. Ele propõe que se caminhe mais pela cidade. A idéia é boa para o corpo e a mente. Caminhar serve não apenas para queimar calorias, mas também para não queimar neurônios. Assim os poupamos da enxurrada de anúncios e informações indesejadas. Agora que as ruas estão livres de outdoors, a publicidade migra para os recintos fechados.
Não ouso aconselhar alguém a evitar elevadores, e usar mais as escadas. Mas ao entrar num deles pode-se dar as costas para a bolha negra no teto, que lembra uma sirene da polícia. Por falar nela, não faça gestos suspeitos no elevador. Nem com o batom ou o corta-unhas. De resto, fique tranqüilo: por enquanto a câmara ainda não lê pensamentos.
sábado, 23 de fevereiro de 2008
A VIDA COMO ELA NÃO É
Duas moças conversam:
> ‘Tou com um poblema.
< ‘Peraí, um poblema ou um pobrema?
> Não é a mesma coisa?
< Não. Poblema é de matemática, ensinam na escola. Pobrema é em casa. O marido bebe, bate na gente...
Contaram-me isso como fato verídico, mas tem jeito de piada. Pouco importa. Nesse diálogo, nada inverossímil, alguém verá o retrato tragicômico de uma população iletrada. Pode ser. Mas não é tudo. Há também algo de genial nessa cena. Perspicácia e sutileza se juntam, na contramão da gramática, para expressar um fino discernimento.
A segunda moça a falar nos diz, a seu modo, que as questões abstratas tratadas no mundo culto (poblemas) nada têm a ver com nossos dramas cotidianos (pobremas). Exigem, portanto, palavras diferentes. Seria uma generalização grosseira colocar esses dois conceitos sob o mesmo guarda-chuva, a palavra oficial, problema.
A intimidade com a vida real revela nuances e, claro, estimula a diversidade semântica. Povos berberes, por conta de sua imemorial convivência com o camelo, dão nomes distintos a cada pata do animal. É assim que funciona. Pouco importa se essa diversidade semântica, de início, se expresse por infrações à gramática. Deturpações e corruptelas com o tempo são assimiladas, se fizerem sentido.
< ‘Peraí, poblema ou pobrema?
Eis a questão. Se aprendêssemos a perceber essa diferença, talvez fôssemos mais felizes. Muitas das coisas que nos atormentam existem apenas no plano imaginário, como era, para os homens da Idade Média, a iminência do fim do mundo. Um mero poblema. Sem lastro no cotidiano.
A crucial diferença entre poblema e pobrema talvez venha a ser definida de maneira clara nas páginas do Houaiss ou do Aurélio. Isso num dia distante do futuro, quando o vocábulo-raiz, problema, cair em desuso. Só será lembrado em afetados textos jurídicos e, outrossim, na bula da pomada Minâncora.
Pode acontecer, por que não? Menos provável, no entanto, será que os burocratas da língua desistam dessa idéia de uniformizar o português falado por gente de diferentes climas e fusos horários. Não seremos nós, tropicais açodados, a convencer os lusos a abrir mão do agá na palavra húmido. Reforma ortográfica boa, mesmo, é quando começa no bairro. Pena que os burocratas não prestem atenção no que as moças dizem. Esse é o pobrema.
> ‘Tou com um poblema.
< ‘Peraí, um poblema ou um pobrema?
> Não é a mesma coisa?
< Não. Poblema é de matemática, ensinam na escola. Pobrema é em casa. O marido bebe, bate na gente...
Contaram-me isso como fato verídico, mas tem jeito de piada. Pouco importa. Nesse diálogo, nada inverossímil, alguém verá o retrato tragicômico de uma população iletrada. Pode ser. Mas não é tudo. Há também algo de genial nessa cena. Perspicácia e sutileza se juntam, na contramão da gramática, para expressar um fino discernimento.
A segunda moça a falar nos diz, a seu modo, que as questões abstratas tratadas no mundo culto (poblemas) nada têm a ver com nossos dramas cotidianos (pobremas). Exigem, portanto, palavras diferentes. Seria uma generalização grosseira colocar esses dois conceitos sob o mesmo guarda-chuva, a palavra oficial, problema.
A intimidade com a vida real revela nuances e, claro, estimula a diversidade semântica. Povos berberes, por conta de sua imemorial convivência com o camelo, dão nomes distintos a cada pata do animal. É assim que funciona. Pouco importa se essa diversidade semântica, de início, se expresse por infrações à gramática. Deturpações e corruptelas com o tempo são assimiladas, se fizerem sentido.
< ‘Peraí, poblema ou pobrema?
Eis a questão. Se aprendêssemos a perceber essa diferença, talvez fôssemos mais felizes. Muitas das coisas que nos atormentam existem apenas no plano imaginário, como era, para os homens da Idade Média, a iminência do fim do mundo. Um mero poblema. Sem lastro no cotidiano.
A crucial diferença entre poblema e pobrema talvez venha a ser definida de maneira clara nas páginas do Houaiss ou do Aurélio. Isso num dia distante do futuro, quando o vocábulo-raiz, problema, cair em desuso. Só será lembrado em afetados textos jurídicos e, outrossim, na bula da pomada Minâncora.
Pode acontecer, por que não? Menos provável, no entanto, será que os burocratas da língua desistam dessa idéia de uniformizar o português falado por gente de diferentes climas e fusos horários. Não seremos nós, tropicais açodados, a convencer os lusos a abrir mão do agá na palavra húmido. Reforma ortográfica boa, mesmo, é quando começa no bairro. Pena que os burocratas não prestem atenção no que as moças dizem. Esse é o pobrema.
domingo, 10 de fevereiro de 2008
NEM MESMO RUI
Os professores se queixam. A cada ano deparam com alunos mais tatuados e menos instruídos. Muitos estão pouco se lixando para qualquer coisa que veio ao mundo antes deles.
A curto prazo, não há como desenroscar o nó górdio da educação no Brasil. Nem se o presidente vendesse a Amazônia aos chineses e construísse tantas escolas quanto os salões de beleza que pululam por aí, com seu bafo morno de acetona.
O problema transcende os tristes trópicos. É geral. A qualidade da educação caiu até na Escócia, jóia da Coroa. Nem vamos falar da África. Lá, acho que nem teria o que cair.
Brasil, 2008. O que pode um professor diante da realidade que tem pela frente? Simples: basta uma mágica. Ele tem de arrumar um jeito de fazer, com o bonde andando, a triagem que o vestibular não fez. Sobrou para ele a tarefa de separar o joio do trigo. Se houver trigo, claro.
Rui Barbosa disse:
> Devemos tratar desigualmente os desiguais.
Não sei se aí fala mais alto o jurista, o jornalista, o político ou o intelectual que participou da reforma do ensino nos últimos anos do império. Seja como for, hoje um professor não se arriscaria a endossar a frase ruiana, tão lúcida quanto politicamente incorreta.
No entanto o professor é aquele que mais sente na carne o conflito que ela encerra. Ele sabe que seu dever é garantir aos alunos a igualdade de oportunidades. Mas também sabe que não adianta malhar em ferro frio. Nivelar por baixo é trair os melhores.
A encrenca do professor é a mesma do artista, do terapeuta e de todos os que lidam com conteúdos humanos. O drama é o seguinte: pensar o mundo de forma democrática e senti-lo de forma aristocrática. Não me refiro à pirâmide social, por favor, mas à convicção profunda de que a qualidade importa mais que a quantidade. O mercado não pensa assim. Mas o mercado pensa?
Os tempos são outros. Talvez nem mesmo Rui Barbosa, se estivesse vivo, diria aquilo que disse. Pelo menos não na frente das câmaras de televisão. O óbvio não foi feito para ser dito em público. Tem que destilado à boca pequena, à socapa, no recôndito aconchego de uma superquadra de Brasília, após o terceiro uísque, que entrou na conta de um polpudo cartão corporativo. Em público, o que se deve falar é em inclusão social.
A curto prazo, não há como desenroscar o nó górdio da educação no Brasil. Nem se o presidente vendesse a Amazônia aos chineses e construísse tantas escolas quanto os salões de beleza que pululam por aí, com seu bafo morno de acetona.
O problema transcende os tristes trópicos. É geral. A qualidade da educação caiu até na Escócia, jóia da Coroa. Nem vamos falar da África. Lá, acho que nem teria o que cair.
Brasil, 2008. O que pode um professor diante da realidade que tem pela frente? Simples: basta uma mágica. Ele tem de arrumar um jeito de fazer, com o bonde andando, a triagem que o vestibular não fez. Sobrou para ele a tarefa de separar o joio do trigo. Se houver trigo, claro.
Rui Barbosa disse:
> Devemos tratar desigualmente os desiguais.
Não sei se aí fala mais alto o jurista, o jornalista, o político ou o intelectual que participou da reforma do ensino nos últimos anos do império. Seja como for, hoje um professor não se arriscaria a endossar a frase ruiana, tão lúcida quanto politicamente incorreta.
No entanto o professor é aquele que mais sente na carne o conflito que ela encerra. Ele sabe que seu dever é garantir aos alunos a igualdade de oportunidades. Mas também sabe que não adianta malhar em ferro frio. Nivelar por baixo é trair os melhores.
A encrenca do professor é a mesma do artista, do terapeuta e de todos os que lidam com conteúdos humanos. O drama é o seguinte: pensar o mundo de forma democrática e senti-lo de forma aristocrática. Não me refiro à pirâmide social, por favor, mas à convicção profunda de que a qualidade importa mais que a quantidade. O mercado não pensa assim. Mas o mercado pensa?
Os tempos são outros. Talvez nem mesmo Rui Barbosa, se estivesse vivo, diria aquilo que disse. Pelo menos não na frente das câmaras de televisão. O óbvio não foi feito para ser dito em público. Tem que destilado à boca pequena, à socapa, no recôndito aconchego de uma superquadra de Brasília, após o terceiro uísque, que entrou na conta de um polpudo cartão corporativo. Em público, o que se deve falar é em inclusão social.
Assinar:
Postagens (Atom)